Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Introdução à metafísica – IX

19/04/2021

 

  1. O ser da substância: o ontologicum – substancialidade

Com o termo “ontologicum” queremos indicar um determinado sentido do ser que age no fundo do ente na totalidade, constituindo os gonzos principais das ramificações na  estruturação do mundo. Esses gonzos principais se expressam em assim chamados conceitos ou categorias de fundo de um mundo constituído. Segundo o texto mencionado bem no início das nossas anotações sobre a objetivação, uma das categorias fundamentais do mundo medieval é substância. Tentemos anotar algumas implicações do mundo, cujo ontologicum é substância. De início nos coloquemos dentro de uma “paisagem” bem banal do cotidiano de um pescador do fim de semana, tirado das narrações escritas por Tokaishige Sadao, um chargista japonês, hoje bastante conhecido na mídia do seu país. A paisagem só nos serve para nos ambientarmos numa situação que poderia ser nossa. No pequeno livro “Visão nipônica do Sr. Jooji”, na primeira estória, intitulada “Modinha pesqueira do Pacífico”, implica ele: Antigamente, era só sair um “tantinho” fora do subúrbio, havia riacho, lagoa e lago. E uma porção de pequenas lojas de secos e molhados, onde se podiam comprar bem barato, anzóis e varas de pescar e chapéu de palha. A gente se munia desses apetrechos, e um dois três!, se abancava à beira do riacho, e pronto, tinha-se a panca de um pescador. A pesca, hoje em dia, não vai assim tão facilmente. Não dá para ir pescar, assim, sem mais nem menos. É domingo. Você dormiu bem, acorda tarde. O sol está já há tempo a aquecer a varanda. Depois de ter lido o jornal do dia, de repente, dá-lhe a vontade de ir pescar. Ajeita a camisa, desabotoada, enfia os pés num par de velhas sandálias, e lá vai você à loja de materiais de caça e pesca, comprar anzóis, vara e chapéu de palha e pedir conselho do vendedor. E, então, é ali que você sente na carne a vergonha de ter sido tão descuidado, frívolo e superficial nas coisas da vida humana. E vem o interrogatório: “O que o Sr. quer pescar?” “Ora, quero pescar peixes! A pesca não é para pescar peixes?” Com dignidade grave e solene, o vendedor especializado e perito inquire: “Peixe do mar? Peixe do rio? De lagos? E se peixe do mar, numa embarcação grande, ou na canoa, ou simplesmente à margem do lago e do rio? E que espécie de peixes, o Sr. quer pescar, salmão, atum, pescado, enguia?, lambari?”. Você um tanto deprimido sob a pressão de tantas perguntas, envergonhado pela ingenuidade e despreparo na abordagem da pesca, um tanto ferido no seu brio, tenta se salvar, timidamente: “Pois, eu quero só pegar peixes…, pode ser bem pequeninos, pensei só pescar assim, assim, …e comprar anzol e vara de pescar…!” O vendedor competente, com rigor e precisão, não me vende nem anzol nem vara, assim sem mais nem menos: “Há anzol e anzol, vara e vara, linha e linha e isca e isca, conforme que peixe o Sr. quer pegar, onde e como quer pescar. Por isso, o Sr. que é o sujeito e agente da pesca, se não determinar com maior precisão e responsabilidade a mira e meta de seus atos e projetos, e não me disser o que, como e onde quer pescar, não lhe posso ajudar em nada, nem se quer lhe vender os materiais de pesca e seus acessórios. Hoje, não é mais possível, nem é permitido pescar, sim viver a vida, considerando a vida e o mundo assim tão facilitados, numa postura vaga de “quero pescar apenas peixes!”

Vou pescar. Levo comigo coisas: a vara de pescar, linha de nailon, anzol de aço, minhoca como isca e chapéu de palha. Mas não vou pescar assim secamente, tendo essas coisas, dadas ai simplesmente. Vou já dentro de um humor do meu “ir pescar”, proveniente da situação em que ao ir arranjar as coisas da pesca, de ter levado uma ducha fria de excelência tecnológica, despejada sobre o meu descuido e despreparo amador. Vai comigo meu irmão caçula, que carrega consigo um filhote de cachorro. Segundo a compreensão do subiectum como substância e substância como hypokeímenon, quantas coisas ou entes ou substâncias estão ali nessa pescaria? A resposta usual nossa é 8, incluindo na contagem a mim mesmo e contando p. ex. minhocas como iscas ou diferentes anzóis e linhas e varas em conjunto, como cada vez 1. E cada uma dessas sub-stâncias possui seus modos de ser, i. é, acidentes como tamanho, cor, peso, qualidade etc. Digamos que nessas coisas de contagem sou um cri-cri e pergunto: dentro de você e de seu irmão caçula, do cachorrinho e de infinidades de minhocas que você trouxe como isca, na superfície de anzóis, de linhas de náilon, devem existir milhares de micróbios. Aliás, todas essas substancias devem estar compostas de milhões e milhões de moléculas, átomos e partículas subatômicas. É meu irmão? O cachorrinho? As pulgas nele? E o resto de raiva e do sentimento de humilhação sofridos ontem na loja de pesca? E o rio? Aliás os peixes que espero pescar? Os peixes têm sentimentos? De dor? Mas como sei que eles têm dor? Essa minha pergunta? O meu relacionamento com os peixes? O meu especular o que seja esse relacionamento filosoficamente? Psicologicamente? Também sociologicamente, biologicamente, quimicamente? E o céu aberto, azul, o sol, a paisagem verde, os ventos. Esses juncos a baloiçar ao sabor do vento? E o horizonte longínquo, e essa proximidade da nitidez da cor vermelha do bico de um pequenino pato selvagem a buscar alimento bem diante de mim na lagoa? E esse alguém, a que tenho vontade de agradecer que hoje é feriado, esse alguém que de vez em quando fico duvidando se não é minha pura fantasia, ou complexo criado por minha educação rígida tradicionalista teísta? A mania que não me deixa, mesmo que esteja pescando, mesmo que meu chapéu tenha caído no lago e eu tento tirá-lo da água, a saber, a mania de querer ver tudo isso e outras mais coisas fenomenologicamente…  Todas essas coisas são substâncias? Hipokeímena!??? Ou são modos de ser? Acidentes? Modos de ser objetivo e modos de ser subjetivo; coisas, objetos de um lado, sentimentos, vivências, idéias, representações de outro lado?

Ou não será que na concepção medieval da realidade, do ser, todas essas coisas “substancias” e não-substâncias, todas as coisas, cada qual de modo diferente, assim manifestas ou colocadas são obiectum (não objeto, no nosso sentido atual), mas o lançado, i. é, aberto e mantido aberto de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar como imensidão, profundidade e soltura de uma possível paisagem do ser? Mas então o que é subiectum, substância, hypokeímenon? O fundo da totalidade dessa paisagem, o fundo imenso, profundo, cada vez e sempre de novo vigente na sua possibilidade insondável, perfazendo presença una e bem assentada, estruturante de obiectum, i. é, da coisa ou das coisas no seu todo, lançado, estendido e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar, de quem? Do subiectum, na sua significação transformada, por Descartes, a saber, do Homem-sujeito? A quem tudo deve estar em referência, de alguma forma estar centrado? Talvez o medieval: Não, não do sujeito, nem do objeto, mas sim da substância homem, imagem e semelhança de Deus, de cujo ser que é a plenitude do ser, participa; da substância homem a quem Ele se comunica, se doa de modo todo singular e único, unindo-o a Ele no assim chamado mistério da Encarnação, na qual Ele, a substância a se, se identifica com a substância ab alio, de tal modo que nessa coisa, nessa e através dessa substância toda própria e especial, Ele se torna presença, pregnância, coisa ou causa de todas as coisas, de todas as causas, ou tout court se torna todos os seres, desde o pó da terra até os anjos, os mais sublimes, em diferentes níveis de participação, tornando-os também imagem e semelhança do homem assim agraciado. Sendo assim, todos os entes que constituem as diferentes ordenações das esferas dos entes do universo medieval, desde a esfera das coisas sem vida, das coisas viventes (vegetais), das coisas sensíveis (animais), das coisas humanas (homem, animal-racional), dos espíritos em diferentes níveis de intensidade do ser (os coros dos anjos) até o próprio Deus, enquanto Criador de todas as coisas, é fonte de todo o ser, são chamados substâncias (substâncias compostas e simples). Assim, todos os entes, enquanto obiecta, i. é, lançados e mantidos de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar, se assentam numa vigência de fundo, cuja imensidão, profundidade e criatividade prenunciam o ser, uma presença inominável, ‘denominada’ Deus, cuja caracterização é assinalada como substância simples, a se, i. é, ab-soluto assentamento da e na plenitude do ser, por e para si. Aqui é interessante observar que o homem, de encontro a e em face do qual (aperceber, imaginar, julgar, desejar, mirar) são lançados e mantidos os obiecta, a partir e na vigência do fundo da totalidade do universo medieval, a partir e no vigor da prejacência ab-soluta da deidade, é também ou melhor por excelência, prejacência substancial, enquanto imagem e semelhança de Deus. Aqui o que denominamos obiectum e subiectum, ambos como vir à fala da vigência da plenitude do ser, do apriori prejacente do universo medieval consiste na escalação da densidade de ser no ente na sua totalidade, e não relação entre dois entes, um ao lado do outro, chamados homem-sujeito e objeto, duas coisas pontuais, dois blocos diferentes, cuja característica consiste em ocorrer como simplesmente dado como isto e aquilo.

Entender ente e ser e o sentido do ser na intensidade, imensidão, profundidade e criatividade da vigência da presença como na paisagem do universo medieval sob o nome substância, prejacência, hypokeímenon, portanto entender ente e ser e o sentido do ser nesse médium mediveal  e entender ente e ser e o sentido do ser na vacuidade de um espaço dentro do qual se acham entes-bloco-subsitentes como pontos atômicos, como algo e algo, um ao lado do outro, são duas paisagens bem diferentes do ser, duas realizações da realidade distintas. Aqui podemos de alguma forma perceber o que quer dizer ente no ser e ser no ente, e o sentido do ser ali operante. Em certas manualísticas da filosofia chamamos caricaturalmente de realismo, onde sob uma determinada concepção do ser comum, geral, se diferenciam duas grandes regiões dos entes, a região do ente-humano e a região do ente-não humano. E ali denominamos a ciência que investiga o ser do ente-humano de antropologia, e o ser do ente-não humano de cosmologia, e de ontologia a ciência especializada na investigação do ser do ente enquanto ente, da entidade como o comum de duas regiões, expresso no conceito do ser geral, comum, sem conteúdo, na formalidade abstrata lógica, e no conceito do ente desse sentido do ser como ‘substância’, como algo bloco, pontual, atômico. Talvez todo esse “realismo” e a sua realidade não seja outra coisa do que  modus deficiens  do fundo do universo substancialista medieval, esquecido do seu sentido do ser e sua vigência, e ao mesmo tempo sofrendo de extrapolação para dentro da compreensão transformada do subiectum e obiectum, operada desde Descartes, mas sem maior clareação do sentido do ser ali operante, como fundo do universo moderno. Seria interessante observar o entrecruzamento de modos deficientes da compreensão, tanto da substância (Medieval) como do sujeito (Moderno) na enumeração de coisas acima jogadas ao léu, de coisas que povoam a paisagem da pesca acima mencionada. Mas como seria a diferença da compreensão do subiectum, na sua transformação sob a influência de Descartes como sujeito, e do obiectum medieval acima descrito, para com a compreensão do Objekt (das ciências naturais) e também para o Gegenstand, caracterizado como um algo tematicamente representado? Aqui a paisagem é bem outra, a do mundo medieval. Subiectum é o sujeito. Obiectum é Objekt a partir e dentro da impostação da possibilidade humana chamada ciências naturais e Gegenstand, como um algo tematicamente representado, na vigência da “presentação” do projeto do homem, não mais como imagem e semelhança de Deus, mas como sujeito-eu (ou nós).

O que acima, na compreensão medieval do subiectum, denominamos substânciahypokeímenon (e ali incluído obiectum) não se refere à coisa individual, isso e aquilo, nem ao conceito geral, comum, a essas coisas individuais, a modo de nossa classificação das coisas em geral e particular etc. Substância, hypokeímenon significa portanto, o prejacente, o apriori, a arché, a hyparché. É o fundo a partir e dentro do qual todo um mundo de entes recebe identidade, localização no todo, unidade de participação no sentido do ser que os faz surgir, crescer e se consumar, como elementos componentes, ou melhor, estruturantes da eclosão de uma paisagem da possibilidade de ser. Trata-se, portanto, digamos, do ponto de salto e do próprio eclodir, que se perfaz como surgir, crescer e consumar-se de um possível mundo.

Assim também, quando agora falamos na compreensão transformada do subiectum, através de Descartes, como sujeito e sua subjetividade e ali, correlativamente do objeto e sua objetividade, sujeito não significa coisa individual, mas sim o prejacente, o apriori, o princípio da estruturação do ente na sua totalidade, o fundo da nossa epocalidade moderna. Esse apriori, esse princípio da estruturação do mundo, do ente na sua totalidade se chama ontologicum, o ser do ente. Como se caracteriza, pois esse ontologicum do mundo moderno, o sujeito?

Para caracterizar o ontologicum sujeito, vamos a nosso modo fazer resumo de uma tradução livre parafraseada dos pensamentos de Heidegger, de quando ele caracteriza o ontologicum sujeito, e mostrando de que se trata, quando falamos da transformação do conceito medieval de subiectum por Descartes, para o sujeito da subjetividade moderna, no livro “A pergunta pela coisa” (Heidegger, 1962, p. ).[1]

Metafísica 08

  1. A palavra-chave da metafísica moderna: Sujeito, o ontologicum da subjetividade

Costumamos diferenciar a Idade Moderna, da Idade Média, assinalando a Idade Média como teocêntrica, e a Idade Moderna como antropocêntrica. Na Idade Moderna, a grande “revolução copernicana” realizada por Descartes seria a de colocar o homem como sujeito e agente da medida de todas as coisas. Já encontramos esse tipo de explicação, anteriormente, nas nossas anotações, quando examinamos a definição tradicional da verdade como adaequatio rei et intellectus no seu duplo aspecto de: Veritas est adaequatio rerum ad intellectum divinum e adaequatio intellectus humanus ad res. Dissemos que desse duplo aspecto, hoje não consideramos o primeiro aspecto, por ser ele teológico, e ficamos somente com o segundo, mas então numa dupla acentuação, a saber: veritas est adaequatio intellectus humanus ad res (realismo) e adaequatio rerum ad intellectum humanum (idealismo). A acima mencionada definição tradicional da verdade na duplicidade de seu aspecto, que é derivada da compreensão medieval da criação, tem como fundo, a paisagem do universo medieval, cujo princípio fundante é o ontologicum “substância”. O que restou dessa definição, depois de ser colocado de lado o aspecto teológico, é considerado muitas vezes como sendo a definição tradicional da verdade em sua dupla interpretação, a saber, a interpretação do realismo, i. é, adaequatio intellectus humanus ad res; e a interpretação do idealismo ou do subjetivismo, i. é, adaequatio rerum ad intellectum humanum. Aquela é então tida como a posição usual da Idade Média, cuja concepção de fundo é realista, pois, antes de tudo há Deus, substantia in se et a se, que é Criador de todas as coisas, e por isso as coisas são em si, antes das ações humanas. Aqui, o teocentrismo tem como consequência o realismo epistemológico. Com a passagem da Idade Média para a época moderna, ao se colocar o homem no centro do universo, como medida de todas as coisas, se dá em Descartes, o antropocentrismo, e com isso também como consequência o idealismo ou subjetivismo ou relativismo epistemológico. Essa diferenciação manualista entre a concepção medieval e a moderna do universo, na realidade, é uma explicação feita pelo realismo proveniente de mundividência, digamos, defasada, do cristianismo medieval, que não consegue mais fazer jus nem à compreensão mais autêntica do ontologicum “substância” da Idade Média, na sua vigência mais nasciva, muito menos à novidade eversiva da transformação do conceito de subiectum medieval para o ontoligicum “sujeito” da modernidade, portanto à revolução copernicana operada no pensamento de Descartes.

Para libertar a questão do ontologicum “sujeito”, característico da filosofia moderna, dessa colocação inadequada e anacrônica do realismo “neo-medieval” é necessário  captar em que consiste o modo de ser do ontologicum sujeito, colocando sob a interrogação aquilo que constitui o próprio e o novo da epocalidade moderna que é caracterizado como era científica, e sob essa interrogação, rastrear o fio condutor presente no modo de ser que impregna todas as entificações estruturantes da época hodierna, expresso na dominação totalitária do que chamamos de o matemático nas ciências modernas[2].

2.1. Disciplina matemática e o matemático

Mas o que é o matemático?

Usualmente respondemos: o matemático é o que aparece na disciplina científica, chamada matemática. Assim, respondendo, entendemos usualmente o matemático a molde, a partir e dentro da disciplina de ensino e da pesquisa científicas, dizendo: o matemático é o que se refere à disciplina científica chamada matemática como tal, à ciência estudada e cultivada nas faculdades de ciências naturais.

Essa resposta, porém, não corresponde ao que é propriamente o matemático, pois o classifica dentro de um modo de ser determinado, diríamos, congelado, na forma da disciplina matemática.

A palavra “matemática” se refere às palavras gregas: mathésis, manthanein, ta mathémata. Ta mathémata são coisas “aprendíveis” e ao mesmo tempo ensináveis. O verbo é manthanein que significa aprender. O substantivo mathésis significa então ensinamento, ensino, mas também a ação de ir ao ensino, isto é, aprender o que se ensina. Aprender e ensinar estão intimamente ligados no verbo manthanein. Mas para que possamos entender o que é ta mathémata, mathésis e manthanein é necessário examinar como os gregos distinguiam as coisas, os entes.

Os gregos distinguiam entre ta physika, as coisas ou os entes enquanto surgem e eclodem a partir de si: coisas da natureza; ta poioumena, as coisas enquanto são feitas através das mãos humanas, coisas produzidas manufactualmente e como tais ali estão diante de nós; ta chremata, as coisas enquanto estão continuamente no uso e à disposição do uso: pode ser physika ou também ta poioumena conquanto que estejam em uso; ta pragmata, as coisas enquanto são tais com as quais nós temos a ver, sejam que as elaboremos que estejam referidas à praxis. Esta é ação de prattein ou prassein que significa perfazer, agir, realizar. É um fazer que é diferente de poiein (cf. ta poioumena). Isso porque, aqui, trata-se não de fazer, fabricar, produzir, mas, sim, em fazendo isto ou aquilo, tornar-se; iniciar, crescer e consumar-se; fazer-se, fazer e tornar-se obra. É uma ação toda própria do ser humano, na qual, na medida em que age e cria obras, vai crescendo, aumentando cada vez mais no seu próprio ser, conhecendo e conhecendo-se, isto é aprendendo. Mathesis, manthenein, ta mathémata têm a ver com a ação e o efeito de tal aprender. Esse tipo da aprender-práxis é uma espécie de recepção, captação, tomada de posse, apropriação, dispor de coisas. Mas, na realidade, nós não nos apossamos da coisa, mas apenas do uso. Aprender é, pois, dispor do uso das coisas. É tomar e se apropriar não de coisas, mas sim do uso da coisa. A tomada de posse acontece pelo próprio uso. Esse modo de apropriar-se do uso se chama exercitar-se ou exercício. Exercitar-se é uma modalidade de aprender. Mas nem todo o aprender é exercitar-se. Isto significa que existe um aprender que é mais do que exercitar-se? Sim. Como? É o aprender todo próprio chamado mathesis, o aprender “matemático”. Como é esse aprender “matemático”? Tentemos entender o que é esse modo de aprender por meio de um exemplo. Eu me exercito no uso de arma. No exercício tomamos o, nos apossamos do uso da arma, isto é, do modo, da maneira, da lida com ela. O nosso modo de lida e convívio com a arma se coloca, se dispõe naquilo que a arma exige para ser usada. Isto significa que na lida, não somente lidamos com, dominamos a função, mas em usando, ao mesmo tempo aprendemos a conhecer a coisa. Aprender assim é sempre aprender a conhecer. O aprender como exercitar-se, aprender o uso, apossar-se do uso, pode assim ser elevado para um nível de práxis mais perfeito como aprender a conhecer a coisa. Portanto, aprender no sentido de mathesis pode ter duas direções: a) aprender o uso e a aplicação; b) aprender a conhecer a coisa.

No aprender o uso e a aplicação (a), o conhecimento da coisa ela mesma permanece num nível bem limitado. Posso saber, por exemplo, o uso da arma, mas não sei como é construída a arma. O segundo (b) é um aprender que se abre ao conhecer a coisa ela mesma. Aqui se abrem diferentes níveis e extensões cada vez mais crescentes do conhecer. Para quem, por exemplo, não somente quer aprender a usar a arma, mas também fabricar a arma, não basta aprender o uso, mas é necessário aprender a conhecer de que se trata, em diferentes níveis de profundidade do conhecimento, até chegar ao conhecimento disso que a coisa ela mesma é, como ela mesma é. Na medida em que aprendemos a conhecer a coisa no que ela é e como ela é, portanto, aprendemos a conhecer o ser da coisa como tal, aprendemos também a ensinar o que e como ela é. O exercitar-se e usar é, portanto, somente um momento ou nível limitado daquilo que é possível aprender na coisa. Daí, o aprender originário é aquele tomar conta de, aquele apossar-se e aquele captar que é aprender a conhecer o que uma coisa é, no e o seu ser.

Mas o que uma arma p. ex. é, o que um ente ou objeto de uso é, o ser, portanto, nós já sabemos propriamente. Quando pegamos numa arma, quando queremos conhecer uma arma de um determinado modelo, não estamos propriamente aprendendo, aprendendo a conhecer o que é uma arma. Pois o é, o ser de qualquer coisa que seja, nós já sabemos antes de captá-la, do contrário não poderíamos nos relacionar com ela e conhecê-la como tal. Somente enquanto nós de antemão, a priori, estamos no toque do ser de uma coisa, somente assim, o que nos é proposto, anteposto, se torna visível, captável naquilo que é. Só que nós sabemos o que é uma coisa e certamente de antemão, a priori, em sendo, mas este saber em sendo, à primeira vista e de imediato no nosso uso aparece de um modo opaco, assim geral, vago e indeterminado. Essa opacidade, generalidade, vagueza e indeterminação, na realidade, são como a superfície lisa e parada da contenção do abismo de imensidão, profundidade e vitalidade que na perplexidade de não conseguir definir adequadamente chamamos de ser, vida, realidade. Esse saber operativo é a presença da dinâmica do abismo da possibilidade de ser, a vida, em mil e mil eclosões de modalidades multifárias do mundo e da sua mundidade. A essência do que sob o termo o matemático foi refletido até agora enquanto a dinâmica da autoconstituição do “eu penso, logo sou”, é o que chamamos subjetividade e se estrutura como vigência da autonomia. Essa vigência da autonomia, do pôr-se de si mesmo a partir de si, no perfazer-se da autoconstituição é a essência do aprender que em grego se chama mathésis, isto é, o “matemático” num sentido originário e profundo. O matemático como a autonomia, como a subjetividade da autoconstituição em sendo vida, não é isso ou aquilo, mas uma concreção do tornar-se, do perfazer-se cada vez no toque da possibilidade de ser, eclosão, gênesis, crescimento e consumação da totalidade do ente, como mundo. Essa concreção do perfazer-se percebemos como densidade de ser, que traduzida em termos do conhecer, está dita na expressão: tomar conhecimento.

Aqui, o tomar conhecimento não é adquirir conhecimento, não é se conscientizar, não é ter dados informativos ou adquirir saber, mas sim potencializar-se, adensar-se na e-vidência de si, a partir e dentro de si. Dito tudo isso nos termos usuais do conhecimento, é conduzir o saber operativo a um conhecimento mais próprio, mais temático, i. é, tomar conhecimento do que já antes tínhamos como conhecimento. Esse “tomar conhecimento” do que já antes sabíamos em sendo é propriamente o matemático.

Assim, ta mathémata, as coisas matemáticas são “coisas” enquanto nós as tomamos em conhecimento como aquilo que nós já de antemão, isto é, a priori e propriamente conhecemos. Trata-se no manthanein e na mathésis, portanto, de um captar, tomar e receber todo próprio, altamente estranho, no qual, quem capta, toma e recebe, somente toma e recebe o que ele no fundo já tem e é.

A esse aprender se a si, que é o se aprender, em se aprendendo no e o aprender corresponde também um ensinar todo próprio. Ensinar aqui é certamente dar e oferecer, mas o que é dado, oferecido no ensinar não é o que pode ser aprendido ou ensinado. O que é dado ao aluno não é outra coisa do que senão apenas aceno, incentivo para que ele mesmo tome, capte de si a si mesmo o que já é, o que ele já tem e o tem. Se o aluno toma o que lhe é oferecido, ele não aprende. Só vem ao aprender, se experienciar o que ele toma como o que ele propriamente já tem e é. Há somente um verdadeiro aprender lá onde a tomada e a recepção do que a gente já tem e é, é um dá-lo a si mesmo, é um vir a si de si mesmo como auto-evidenciação.

 2.2 Desviando um pouco do assunto

Daí, ensinar não é outra coisa do que deixar o outro aprender, isto é, mutuamente se deixar aprender. O verdadeiro professor se diferencia do aluno apenas nisso, que ele pode aprender melhor e propriamente mais quer aprender. No todo do seu ensinar aprende mais quem ensina assim[3].

Nesse sentido diz Martin Heidegger no seu livro O que evoca o pesar?:

Ensinar é mais difícil do que aprender. Isto a gente sabe muito bem; mas ponderá-lo se faz raras vezes. Por que ensinar é mais difícil do que aprender? Não por isso, porque quem ensina deve possuir a maior soma de conhecimentos e tê-la a cada momento à sua disposição. O ensinar é mais difícil do que aprender por isso, porque ensinar significa: deixar aprender. O professor propriamente dito não deixa a não ser apenas aprender, nada mais do que aprender. Por isso o seu agir desperta muitas vezes também a impressão de que com ele não se aprende propriamente nada, enquanto aqui a gente imperceptivelmente entende por “aprender” somente a angariação de conhecimentos úteis. O professor está apenas nisso à frente dos alunos aprendizes, que ele, ainda muito mais do que eles, tem que aprender, a saber: o deixar aprender. O professor deve poder ser mais ensinável do que os alunos. Ele é muito menos seguro da sua coisa do que os alunos o são da sua coisa. Por isso, no relacionamento de professor e alunos, quando ele é verdadeiro, jamais entra em jogo a autoridade de quem-sabe-muito e a influência autoritativa do autoritário de quem foi incumbido da missão. Por isso, permanece uma causa sublime ser quem ensina, o que é totalmente diferente de ser famoso como docente (Heidegger, 1961, p. 50).

2.3 O matemático como o a priori:

Esse tomar em conhecimento o que já antes sabíamos é propriamente a essência do aprender, do manthanein, da mathésis.

O que é, pois, o matemático? É aquilo que nós já conhecemos nas coisas, o que não tiramos primeiro das coisas, mas num certo modo já nós mesmos trazemos junto, conosco. Este aprender, este tomar em conhecimento o que nós já sempre sabemos e somos até ao fundo abissal que se abre em nós mesmos é a célebre frase do oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo!”. É por isso que no portal da academia de Platão estava escrito: “Ninguém que não tenha captado o matemático, jamais tenha entrada aqui”, isto é: Ninguém ageométrico jamais entre[4]!

Mas como é que aparece como matemático dos cálculos e medições matemáticas da nossa era moderna, nas ciências esse conhecer apriorístico, no qual nada vem de fora, mas tudo, por assim dizer, se desdobra e se ex-plica de dentro, a partir de dentro? É que, em cálculos e medições matemáticas da própria disciplina chamada matemática, o que conhecemos assim pela medição e cálculo não é aquilo que nós conhecemos nas coisas, tirando-o primeiro das coisas, mas sim num certo modo o que já trazemos nós mesmos junto conosco e depositamos, lançamos de antemão sobre as coisas. Assim o modo de saber e conhecer matemático é bem outro do contemplar medieval.

2.4. O matemático como a “concepção da mente”

Esse modo de ser a priori aparece nitidamente numa famosa frase de Galileu[5]:

Eu conheço mentalmente um corpo móvel, excluindo todo impedimento: assim consta disso que num outro lugar foi dito extensamente que o movimento desse corpo sobre o plano será igual e sempre, se o plano se estende infinitamente[6].

Diz Galileu “Eu concebo”, isto é, me lanço por sobre, ajuntando tudo sob o que se torna determinante de antemão, saltando por sobre as coisas, tendo já o que é decisivo para todas as coisas atingidas por esse lance. Assim nesse lance sobre todos os corpos vale de antemão que • – todos os corpos são iguais; que • – nenhum movimento é especial, destacado; que • – cada lugar é igual ao outro; que  • – cada momento do tempo é igual ao outro; que • – cada força se determina, segundo o que causa a mudança do movimento, entendido como movimento de mudança de localização.

Assim, todas as determinações sobre o corpo são esboçadas num traçado básico de um plano, segundo o qual o processo e o fato da natureza nada mais são que determinação ou definição espaço-temporal do movimento uniforme dos pontos de massa, numa totalidade, cuja, medida é homogeneamente igual em toda parte.

A partir do que foi dito, resumamos a essência do Matemático em três itens:

  • – O matemático é um mente concipere, isto é, um projeto lançado por sobre as coisas.
  • – O projeto abre então um espaço de jogo, onde as coisas, isto é, os fatos se mostram.
  • – Dentro desse projeto é posta a medida, pela qual as coisas são tidas como aquilo que é apreciado no seu modo próprio, de antemão.

Apreciar ou ter por, em grego, é axioó. As determinações e as sentenças que predeterminam de antemão no projeto são axiomata (axiomas). Axiomas são princípios fundamentais que colocam o fundo de antemão para as coisas.

O projeto matemático, enquanto axiomático, é o lance conceitual prévio, a ordenação prévia para dentro da vigência das coisas, dos corpos. Com o projeto matemático é preparado o esboço fundamental de como cada coisa e cada referência de coisa a cada coisa é construída.

Este esboço fundamental dá a medida para delimitar a região, o âmbito, ou a área que daqui por diante abrange todas as coisas que tem a mesma “essência”[7].

Natureza não é mais aquilo que como substância é a capacidade e possibilidade interior dos corpos, o que lhes determina cada vez a sua qualidade, a sua forma de movimento e o seu lugar, o seu habitat próprio. Natureza agora é a região dentro do projeto axiomático. É a natureza das ciências naturais. Essa região tem a caracterização de ser um conjunto de movimentos referidos um ao outro dentro da homogeneidade do tempo e do espaço, igual em toda parte e a cada tempo, dentro do qual (conjunto) os corpos são inseridos e estendidos e somente assim podem ser corpos.

Tal região da natureza dita e determina o modo de acesso, o modo de abordagem próprio para corpos e corpúsculos que assim se acham no âmbito de sua abrangência.

O modo de interrogar e determinar o conhecimento da natureza não mais é orientado e dirigido por opiniões e conceitos tradicionais. Os corpos não possuem mais propriedades, forças, capacidades ocultas, mais profundas e interiores. Os corpos da Natureza são apenas isto como eles se mostram dentro do âmbito do seu projeto.

As coisas agora se mostram apenas em referência à localização pontual no espaço e no tempo homogêneos, em referência à medida homogênea de massa e das forças atuantes.

Como as coisas se mostram é pré-traçado através do projeto. O projeto determina por isso também o modo da captação e da sondagem do que se mostra, isto é, determina o modo da experiência. Porque agora a sondagem é determinada de antemão pelo esboço fundamental do projeto, o interrogar pode ser ajeitado de tal maneira que se põem de antemão condições, às quais a natureza deve responder assim ou/e assim. O interrogar é uma interpelação produtiva à natureza. Tendo no fundo esse projeto matemático, experiência se torna experimento ou experimentação no sentido moderno.

A ciência é experimental por causa do projeto matemático. O impulso experimental para com os fatos é uma conseqüência necessária do a priori matemático, a saber, do saltar por sobre todos os fatos, predeterminando o seu modo de ser e o âmbito do seu aparecer[8].

Segundo o que foi dito, o projeto coloca a homogeneidade e uniformidade de todos os corpos segundo espaço, tempo e relacionamento de movimentos. Por isso, possibilita, fomenta e exige ao mesmo tempo como o modo de determinação das coisas a medida igual do início até ao fim, isto é, medição numérica quantitativa[9].

O modo do projeto matemático dos corpos, segundo Newton nos levou à formação, à constituição de uma determinada “matemática”, no sentido estrito, como a temos na disciplina chamada matemática.

Dizer que o matemático é o próprio da ciência não quer dizer que o matemático no sentido essencial deva ter a forma da matemática no sentido estrito da disciplina matemática. Na realidade, a possibilidade de a matemática do cunho especial, enquanto medição e cálculo numéricos, ter podido entrar no jogo da epocalidade e dominar não é a causa, mas sim uma conseqüência do projeto matemático no sentido essencial[10].

O que dissemos à mão da famosa frase de Galileu e a sua variante em Newton é o que está no fundo dessa caracterização da ciência, isto é, das ciências modernas como o matemático, o característico essencial da nossa era moderna.

Há, porém, matemática e matemática. Isso porque, de imediato, esse matemático essencial, que aparece escondido na forma da Matemática como cálculo e medição numérica quantitativa, possui um fundo mais pro-fundo. É necessário captar esse fundo para entendermos bem como é o ser do moderno, sua essência e o seu modo próprio de ser.

Dissemos acima que o matemático é a estrutura fundamental das ciências modernas. Estas constituem um dos traços básicos do modo de pensar e ser epocal moderno. Todo o modo de ser e pensar assim epocal pertence à facticidade da existência historial: à decisão acerca da colocação fundamental ontológica, isto é, em referência ao Ser e ao modo como o ente se revela como tal no seu todo, a saber, como verdade epocal. Somente assim, mostrando o matemático dentro dessa perspectiva é que podemos compreender quão diferente é o modo de ser e pensar antigo e medieval e o nosso moderno, e ao mesmo tempo captar um toque de contato num nível de ser mais profundo e radical. Para podermos ver melhor a essência do matemático nesse sentido essencial, como o próprio do nosso modo de ser e pensar moderno, é necessário examinar qual é a nova colocação fundamental acerca da existência humana que se mostra nessa dominação do matemático e em que sentido o matemático, conforme o élan correspondente da estrutura interna da sua essência, se torna hoje uma determinação filosófica nova da existência humana.

  1. O matemático e o “eu penso” de Descartes[11]

Essa nova colocação fundamental acerca da existência humana e com isso, através dela, também acerca do ente na sua totalidade aparece no modo como o existir humano moderno se comporta para com a tradição. Aqui à primeira vista parece haver uma ruptura radical diante do passado. Costumamos citar Descartes como aquele que realizou a ruptura revolucionária contra o passado, no pensamento moderno.

É que tal posicionamento da realidade como o que acima foi refletido acerca da concepção da natureza nas ciências naturais, reduzindo tudo à matemática de cálculos e medições numéricas quantitativas, fez com que se colocasse em questão a concepção que se tinha até então da realidade física. É por isso que a modernidade se inicia através da assim chamada “dúvida metódica” de Descartes. Costumamos dizer que Descartes, em duvidando metodicamente de tudo, a modo de alguém que diz “suponhamos, façamos de conta que tudo é duvidoso”, nos conduz gradualmente de um conhecimento mais duvidoso para um menos duvidoso, até numa aproximação cada vez maior se achegar à verdade certa e indubitável no fato da existência de um eu que tudo pensa, tudo sente, tudo percebe, portanto do eu-sujeito, do núcleo do solipsismo do subjetivismo moderno. Daí, a nossa mania de colocar o pensamento moderno como filosofia da imanência do subjetivismo, do individualismo, unilateral, centrado em si, antropocêntrico, em contraposição à tradição que era realista, aberta ao ser, teocêntrica, universal etc. Mas, talvez em Descartes, a afirmação absoluta do “eu penso, logo sou” não tenha muito a ver com o subjetivismo, nem com a imanência antropocêntrica, entendida assim “substancialmente”, mas sim com o matemático das ciências modernas.

Pois na modernidade, através das ciências naturais iniciantes, aos poucos, com a redução da explicação da natureza à extensão quantitativa, a movimento, massa e suas localizações no tempo e no espaço homogêneo, começa a dominar a compreensão matemática do universo. A essência do matemático que aparece aqui nessa interpretação físico-matemática do universo, do mundo, ultrapassa o nível das ciências naturais, portanto ultrapassa o âmbito da região natureza, e se mostra como a dinâmica do projeto a priori, lançado não tão-somente por sobre os corpos físicos da Natureza, mas sim por sobre o ente no seu todo ou os entes na sua totalidade, pondo-lhes de antemão a medida, através da qual, os entes podem e devem aparecer como entes. Esse projeto tem por pretensão e exigência  fundamentar-se, fundar a si mesmo a partir e dentro de si, a ponto de que nesse caso tudo que vem à fala já tenha estado ali como sempre sabido. Essa paixão de autoidentidade implica que se coloque em questão todo o saber de até então, independentemente do fato de saber se esse saber era sustentável ou não. Nesse sentido, Descartes duvida, não porque é céptico. Ele duvida de tudo porque coloca o Matemático como o absoluto fundamento para todo o saber. Ele busca encontrar não somente uma lei fundamental para o reino da Natureza, mas para o saber do ente no seu todo. Essa posição fundamental matemática não pode ter nada que seja anterior a ela, não admite, não suporta nada que lhe seja dado previamente. Nada aqui pode ser pressuposto[12]. Se aqui algo é dado, então deve ser tão-somente a própria posição (como ato, como ação), no sentido do pensar que põe o projeto como autoposicionamento autônomo do matemático, isto é, da evidência a partir de si, nela mesma. É o pensar que se pensa a si mesmo. Isto é: tomar em conhecimento, tomar conhecimento do que nós já somos: o manthanein.

Como tal, essa posição do próprio posicionar a si mesmo é o “eu”: “eu penso”. O pensar aqui é sempre caracterizado como EU penso, ego cogito. Nesse “eu penso”, nessa ação do autoposicionamento[13] é que aparece a experiência do “eu”. E essa experiência da densidade de ser “eu” se expressa na fórmula: sou. Cogito, ergo sum, isto é, cogito: sum = cogitans sum, em pensando sou. É pois a imediata segurança da posição como autoresponsabilização, a densidade de autoidentidade da autopresença de si a si mesmo: = subiectum, isto é, o sujeito, não no sentido de uma substância que ali ocorre como núcleo de referência de acidentes que sobrevêm a ela, mas sim no sentido de subjacência, isto é, assentamento, dominância plena e cheia p. ex. de um tom fundamental que pervade e impregna tudo, portanto subjacência dominante e bem assentada da autonomia da autoevidência e autoidentidade do autoposicionamento. Este sujeito-eu a modo de ser do matemático não é nada de “subjetivo” como uma propriedade do homem. Somente quando a essência, isto é, a vigência, a dominância prejacente do tom fundamental do matemático que é e está no “Eu” não são mais vistas, é que caímos na interpretação subjetivista do eu como se fosse uma substância centrada no eu-núcleo solipsista.

O “Eu penso: sou” assim compreendido, portanto, não é o polo subjetivo de um outro polo objetivo chamado coisa, diante de mim. Nesse modo de ser do “penso” o esquema sujeito – objeto, no sentido usual, desaparece inteiramente. Antes o que chamamos de objeto não é outra coisa do que o vir à fala do sujeito-eu na sua autoidentificação. Pois no cogito, isto é, em pensando, em coagitando a modo do lance de projecto, portanto em projectando a possibilidade a priori de todos os entes no seu todo, se inaugura, funda-se o modo de ser, em cuja dinâmica os entes vêm ao encontro, a lance do projeto, isto é, de encontro a “mim” como ob-jeto, isto é, o explícito do projeto que sou eu mesmo: assim o sujeito-eu vem a si como objeto[14].

3.1. Eu-sujeito como substância e o sujeito-eu como o matemático[15]: subjetividade

O eu como “eu penso” não deve ser entendido como uma substância-coisa-sujeito que emite um ato de pensar (modelo do pensar substancialista). O “eu penso” deve ser entendido como a experiência originária que o homem tem de si mesmo, de modo imediato, concreto, vivenciado como autoevidência, autopresença do autoposicionamento de si a partir de si, como estar-ali na disposição de ser, enquanto lance e projeto a partir de si e em si mesmo.

Este “eu penso” como autoevidência, autopresença imediata do ser do homem a si mesmo é o que denominamos de matemático ou mathesis. Um saber que se determina de antemão como aquilo que contém tudo em si e está na feliz posse de si mesmo. A consciência feliz, plenamente realizada, dessa autoposse de si é o que Descartes chama de bona mens ou espírito: isto é, “eu penso”. Para Descartes a ciência, o saber, o conhecimento, isto é, a mathesis não é outra coisa do que a plena realização do “eu penso” ou do espírito: é o próprio espírito plenamente ele mesmo.

Aqui, portanto, o “eu penso” é o modo de ser que caracteriza o próprio do homem, de ser sempre já a partir de si, de estar sempre consigo mesmo. Se o próprio do homem é esse modo de ser, então o homem encontra o seu progresso não na aquisição dos conhecimentos mas sim no esvaziamento deles. Mas em que sentido?

Até Descartes, a tradição ocidental definiu a verdade, isto é, o conhecimento verdadeiro como adaequatio rei et intellectus: como o espírito indo à realidade, o saber adequando-se, dirigindo-se à coisa. Daí, a verdade ser adequação, correspondência, concordância do intelecto com a coisa e da coisa com o intelecto. Agora, com Descartes, com a descoberta do “eu penso”, isto é, do matemático como o princípio básico de todo e qualquer conhecimento verdadeiro, a verdade não é mais o movimento de relacionamento do sujeito-eu-coisa com o objeto-coisa, do ir de encontro à coisa, abrindo-se a ela na adequação ou concordância. É antes simples, imediata e concretamente o eclodir, o abrir-se do próprio dar-se do espírito.

Na compreensão usual da teoria de conhecimento, conhecer é um ato do sujeito-substância simplesmente dado, entre outros atos do mesmo sujeito de p. ex. volição, sentimento etc. Nesse ato de conhecimento o eu-sujeito se dirige às coisas, sejam elas coisas fora de nós ou dentro de nós em diferentes níveis de entificação, para assim adquirir um acervo de conhecimentos. Quando esses conhecimentos correspondem às coisas e reproduzem o conteúdo das coisas, dizemos que ali há verdade, isto é, conhecimento verdadeiro. Se não houver a correspondência, temos então falsidade, isto é, conhecimento falso. Nessa usual e tradicional teoria de conhecimento a mente (espírito, intelecto) é algo espiritual (portanto não material) que está no corpo humano, algo espiritual, cuja característica é de ser vazio, sem determinação, mas que na medida em que vai adquirindo conhecimentos, torna-se como papel branco vazio que vai aos poucos sendo enchido de escritas. Quanto mais adquire conhecimentos, quanto mais se apossa do saber, quanto mais bem informada é a mente sobre a realidade, tanto mais verdades ela possui.

Descartes inicia o processo da busca de uma certeza absoluta, duvidando passo a passo da validade do conhecimento de tudo, a partir dos conhecimentos os mais físico-materiais dos nossos cinco sentidos até a validade dos conhecimentos os mais abstratos e mais espirituais, até chegar a uma única intuição derradeira, onde não dá mais para pôr em dúvida a validade da adequação. Esse último ponto é o “eu penso, e enquanto penso, que penso não posso duvidar!”

Por que Descartes duvida de tudo, assim passo a passo? E, quando por fim Descartes constata: eu, enquanto penso, que eu penso, não posso duvidar; enquanto duvido de tudo, da própria dúvida que duvida de tudo, não posso deixar de ver claramente que enquanto duvido não posso duvidar que duvido, o que restou de tudo isso? De que se trata? Pois, se duvidar, o fato de duvidar já está mostrando que eu, enquanto duvido, que duvido não posso duvidar.

Tudo isso parece uma brincadeira, enquanto não intuirmos que aqui não se trata de averiguar, de descobrir um ponto firme, um fato, uma realidade em si, a qual eu não posso duvidar, realidade essa que receberia o nome de sujeito-eu ou o subjetivo, isto é, o eu que é o ponto de referência, centro-núcleo e portador de todos os meus atos de conhecer.

Mas, então, de que se trata? Todo esse processo de duvidar de tudo é para eliminar da minha mente tudo quanto não é ela mesma, isto é, para esvaziar a nossa mente de conhecimentos adquiridos e inatos. Mas para quê? Para chegar a um resto firme, a um fundamento, um ponto seguro que não se deixa eliminar, mas que ali está como algo, antes de todos esses movimentos?

Não! Mas antes, para estar bem junto da mente, do espírito, como ele é nele mesmo, isto é, sem as sobrecargas, os acréscimos, as aquisições de conhecimentos. Dito com outras palavras, aqui Descartes quer encontrar-se com o ser do espírito, com o ser da mente, com o ser do intelecto, não o conhecendo a modo de conhecimentos de coisas, adquiridos ou inatos, mas sim esvaziando-se deles e deixando o espírito ser espírito.

Duvidar aqui, portanto, não tem a função de testar a validade da adequação do espírito ou do intelecto com a coisa, mas sim de esvaziar o espírito, a mente de todos os conhecimentos adquiridos e inatos, para que o espírito se torne presente, nu, puro, como ele é, a partir de si, nele mesmo.

Como é então o espírito esvaziado, limpo de tudo quanto não é ele, de todos os conhecimentos adquiridos e inatos?

Responde Descartes: é como “eu penso”. Mas, atenção, Descartes não diz: como eu sujeito aqui, tendo um ato chamado penso. Mas, sim: “eu penso” significa sou um conhecimento, uma experiência, um saber, uma ciência que não conhece distância para si mesma, não conhece caminho para si mesma, não conhece elaboração de si, porque vive na plena posse de si. Mas não é muito exato dizer “vive na posse de si”, pois ter posse é sempre um ter, que tem ainda distância entre o que se tem e quem o tem. Ao passo que no “eu penso” cartesiano, na experiência descartiana do espírito de si mesmo, a coisa não está diante do espírito, mas ela é nele, ou melhor, ela é a presença do espírito ela mesma, é por si, para si, é o espírito ele mesmo. Tal “realidade” (eu penso, logo sou) não tem mais o modo de ser da substância, do sujeito, da coisa ou do ente simplesmente dado, mas sim possui o caráter da luz, claridade incandescência, distinção, nitidez. Não vem de fora ao espírito, mas sim nasce nele, como ele mesmo, é ele mesmo em nascendo, portanto, conascimento: conhecimento, conaître. Essa presença, essa presencialidade não é um espaço aberto dentro do qual uma coisa se mostre (isto é, coisas prováveis e duvidosas), mas sim: o espírito ele próprio no seu tornar-se presente. Tal incandescência, a qual aparece a partir de si na sua própria presença, se chama e-videri (evidenciar-se), evidência.

Espírito (intelecto, mente) é vigência desse modo de ser de se estar junto de si, na autocaptação de si mesmo, na vivência da plenitude da imediatez. É esse modo de ser que está dito na famosa sentença de Descartes: “eu penso, logo sou”. E a partir dessa “realidade”, tudo quanto tem esse modo de ser da evidência é verdadeiro: idéias claras e distintas.

Assim, Descartes dá à verdade uma nova essência, a essência da evidência. É sob o signo da evidência que se reconhece o “espírito”. Até agora, o espírito estava impedido de ver na evidência o seu ser, devido a uma compreensão falsa do saber, do conhecimento. Isto é, saber ou conhecimento = adequação do espírito às coisas; adquirir, ganhar o saber, o conhecimento, isto é, ir às coisas, dirigir-se às coisas, ser correto. Assim o espírito, em vez de permanecer nele mesmo, começou a se afastar de si, alienar-se de si, começando a se interpretar a partir dos conhecimentos que estavam longe dele mesmo.

Recordemos porém que esse modo de ser do “eu penso” como o de estar junto de si naquilo que já sempre era, e buscar a si mesmo a partir do lance e projeto de si, sem jamais sair de si, mas sempre de novo só considerar válido o que se dá a partir de si, é o modo de ser que está expresso no verbo grego manthanein (ta mathémata, mathésis = o matemático.

Esse modo de ser da autopresença da e-vidência é o espírito que na tradição do Ocidente se chama logos e que os latinos traduziram por ratio e em alemão se diz Vernunft (de vernehmen). Quando esse modo de ser da Vernunft está na sua absoluta limpidez, na plenitude de si, ele aparece na sua pureza. Esse caráter da pureza, essa qualificação da pureza, da limpidez, da translucidez (portanto, o adjetivo puro(a)) é o que está designado pelo termo “o matemático”, no sentido da transparência límpida da evidência[16]. O matemático como razão pura, assim compreendida, é a essência do que no sentido autêntico denominamos de subjetividade na filosofia de hoje.

3.2. Cogito e vontade para o poder

A interpretação acima esboçada da “subjetividade moderna” como a autopresença da pura imanência de ser, a partir de si, na absoluta autonomia da autoconstituição, hoje parece tomar a forma do totalitalismo do cálculo e autoasseguramento da dominação da interpelação produtiva atuante nas ciências sob o poder da tecnologia. Como equacionar a autopresença da pura imanência de ser do Cogito, com esse totalitarismo científico-tecnológico na dominação da interpelação produtiva? Como se chegou do Cogito a essa dominação da interpelação produtiva da objetivação absoluta global interplanetária?


[2] “Eu, porém, afirmo que em toda a doutrina especial da Natureza pode ser encontrada somente tanta ciência propriamente dita, quanta ali pode ser encontrada matemática” (Kant, 19…).
[3] Cf. Platão, Menon, o escravo e a sua recordação das idéias matemáticas.
[4] agewmetrhtoV mhdeiV eisitw.
[5] Discorsi, 1658; esta frase é considerada como percursora dos princípios desenvolvidos por Newton no seu livro Philosophiae Naturalis principia mathematica (1686/1687).
[6] Diz Newton: “Todo o corpo, cada corpo deixado em si mesmo, isto é, não é coagido pelas forças a ele impressas, se move de modo reto e uniforme”.
[7] Essência aqui está entre aspas por que não se deve entender essência como substância, no sentido da Filosofia Antiga e Tradicional, mas sim no sentido literal de vigência em sendo.
[8] Somente lá, onde esse transcender no projeto cessa ou é enfraquecido, são ajuntados apenas fatos e assim surge a ideologia chamada Positivismo.
[9] É o que Descartes denominou de res extensa.
[10] P. ex. o cálculo de fluxo de Newton, o cálculo diferencial de Leibniz e a geometria analítica de Descartes, todas essas novidades são possibilitadas pela estruturação fundamental matemática do pensar “matemático” como tal.
[11] Colocamos o início do Pensamento moderno em Descartes (1596-1650). Descartes é da geração de Galileu. O seu tema principal é o Mundo! A idéia do Mundo está intimamente ligada com o movimento da determinação do Matemático da existência humana na França, Inglaterra e Holanda daquela época.
[12] O voltar à “coisa ela mesma” de Edmund Husserl que em outras palavras se diz também “sem nenhuma pressuposição, abrir-se ao dado ele mesmo” (Voraussetzungslosichkeit) ou a posição de um observador neutro não são outra coisa que a posição dessa absoluta validade do Matemático como o critério da verdade.
[13] Cogito, dizem alguns autores, vem do co-agito. Coagito significaria então em agitação, em vibração, que faz vibrar tudo. A palavra “auto” vem do grego e significa eu mesmo, ele mesmo, o mesmo, e indica não o ocorrer espontâneo de um “automático”, sem consciência, mas sim o responsabilizar-se de uma ação que vem de si, a partir de si e permanece nessa responsabilização de si em cada momento da sua ação.
[14] Até Descartes, o “sujeito” era a coisa ocorrente ali, simplesmente dada. Agora, com Descartes, o “Eu” se torna um subiectum bem próprio, em cuja referência estão todas as coisas e são determinadas. Se o “Eu” é a autonomia do auto-posicionamento do projeto, então tudo quanto a priori é referido a esse projeto se torna ob-iectum. Aqui sujeito diz objeto e objeto diz sujeito.
[15] O que se segue é um resumo mal feito dos pensamentos que estão no livro de Heinrich Rombach, Substanz, System, Struktur. Freiburg i. B./München: Karl Alber, Ano, p.
[16] Esse modo de ser da Evidência Pura que mais tarde, depois de Descartes, em Kant recebeu o nome de Razão Pura no seu famoso livro “A Crítica da Razão Pura”.
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