Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Introdução à Ontologia

19/04/2021

 

O título “Introdução à ontologia” contradiz o propósito dessas reflexões, pois à filosofia não se pode introduzir. E a ontologia perfaz a cerne da filosofia.

No sentido usual, introduzir significa conduzir alguém de fora para dentro. Mas, da filosofia, não estamos jamais fora. E introduzir-se no que sempre já se está soa um tanto estranho.

No entanto, é possível haver uma introdução no que sempre já se está dentro. Ou melhor, não será assim que todos os fenômenos humanos são casos típicos, nos quais, por estarmos sempre já dentro, se necessita de uma introdução?

O modo como se introduz no que sempre já se está dentro é diferente do modo como se faz a introdução de uma matéria escolar no ensino escolar das ciências positivas do curso acadêmico.

Nesse sentido, as seguintes reflexões não são introdução. Elas não nos fornecem dados elementares, terminologias, métodos, história da ontologia, embora proporcionem também um pouco de tudo isso. Mas começam logo, digamos, com reflexões filosóficas.

Essas reflexões não têm pois a pretensão de ensinar e introduzir alguém numa disciplina que ele ainda não conhece, mas, através de uma conversação na cercania da ontologia, possibilitar talvez, que o estudioso da filosofia se sinta mais familiar no trato com a ontologia e simpatize com ela.

E, na medida em que nos sentirmos mais familiares com a ontologia, começaremos a compreender como é o modo de entrar naquilo em que já sempre estamos dentro.

Reflexão 1: Como se dispor para estudar a ontologia

Nessa primeira reflexão, vamos conversar juntos sobre algumas precauções que seria bom você observar ao iniciar o primeiro semestre no estudo da ontologia.

Nominalmente, ontologia diz logia do on. Costuma-se traduzir a logia ou logos do on como ciência do ser.

Na filosofia se costuma distinguir ciência do ser e ciência do ente. O adjetivo para dizer o ser é ontológico. O adjetivo para dizer o ente é ôntico. Assim se distingue ciência ontológica e ciência ôntica. A ciência ontológica se chama então ontologia.

Por enquanto, somente enfileiramos termos filosóficos, sem nada explicitar. Na realidade, se compreendermos a fundo o significado desses termos – ser e ente, ontológico e ôntico e ciência, i. é, logia ou logos –, portanto, se compreendermos com adequada profundidade o que é LOGOS e ON, estaremos por dentro da ontologia. Isso porque a ontologia consiste na busca do sentido (logos) do ser (on).

Como você ainda não a estudou, não sabe de que se trata, quando se fala da ontologia. E agora na hora presente, mesmo ouvindo uma fileira de termos acima usados, ainda não entende nada, pois nada foi explicado. Até agora só mencionamos apenas nomes. E, no entanto, do que foi mencionado acima, há uma coisa, na qual você já há algum tempo está metido, queira você ou não, a saber, ciência ôntica. Isso se dá porque ciências ônticas são as ciências positivas.

Na filosofia, você deve começar a buscar junto daquilo, no qual você está metido até o pescoço. Começar junto ao que está bem perto de nós, no qual estamos imersos, formulado de outro modo, significa começar junto dos entes, portanto, junto da situação ôntica. A nossa situação ôntica hoje é um tanto complexa. Pois vivemos ao mesmo tempo um entrecruzamento de vários modos de ser, sem podermos divisá-los nitidamente, como que um imenso terreno, sulcado de diferentes paisagens, ou como uma cidade, onde se misturam bairros antigos, modernos, favelas, arranha-céus numa espécie de caos urbano. Mas, se de alguma forma quisemos divisar certa ordenação nessa mistura de diversos modos de ser que povoam a nossa situação ôntica, podemos distinguir de um lado o modo de ser do uso e da vida e seus entes, e o modo de ser das ciências positivas e seus entes.

Para visualizar melhor essa situação em que estamos metidos, vamos rapidamente, sem entrar em detalhes, examinar p. ex. o modo de ser das ciências, i. é, o nosso modo de ser científico. Não tanto falando sobre as ciências, mas sim das ciências como nós usualmente experimentamos. Assim, experimente fazer o seguinte:

  1. a) Discuta em grupo, em que sentido estamos metidos até o pescoço nas ciências: experimente perguntar, p. ex.:

– uma pessoa que vive no interior e nunca estudou ciências pode estar envolvido pelas ciências?

– mencione um exemplo de coisas que de nenhuma forma esteja referida a ciências;

  1. b) Enumere os nomes das ciências que você conhece ou ouviu falar.
  2. c) Enumere as ciências que você já estudou de algum modo, desde que entrou na escola até chegar aqui nesse instituto de filosofia.
  3. d) Exponha a experiência e vivência que teve com essas ciências que você já estudou.
  4. e) E tente dizer, a partir dessas experiências e vivências, o que são ciências para você.

Essa discussão, bem conduzida, nos mostra que a nossa situação ôntica, além de ser confusa e muitas vezes vaga, não nos diz muita coisa de mais nítido, acerca da essência das ciências positivas. E, no entanto, no modo de raciocinarmos, no modo de abordarmos a realidade, existe na nossa situação ôntica uma preponderância do modo de ser científico. Essa preponderância muito nos dificulta a estudarmos a ontologia, pois o modo de ser da ontologia e das ciências ônticas ou positivas é inteiramente diferente, embora estas esteja intimamente referidas entre si, enquanto ciências.

Vamos examinar se do que dissemos até agora não podemos tirar algumas notícias sobre a ontologia, por mais primitivas que sejam.

Já temos duas dicas acerca da ontologia:

– Que ela é diferente das outras ciências que conhecemos e por isso mesmo a sua abordagem e o método de aprendizagem também são diferentes. E é nesse sentido que não se pode introduzir à ontologia como se faz com outras ciências positivas.

– E que na filosofia, portanto, também na ontologia, que é uma disciplina filosófica, deve-se sempre começar junto dos entes em cujo meio estamos metidos até o pescoço.

  1. O que fazer diante da ontologia, que é diferente do que usualmente conhecemos?
  2. a) Não querer aliviar a abordagem, por meio de uma introdução!

Mas como? Não deve ser o contrário? É exatamente porque é totalmente diferente de tudo quanto sabemos até agora que necessitaríamos de uma boa introdução!

Mas, por outro lado, como se introduzir numa coisa da qual nada sabemos? Para dar uma introdução, já se deve saber. Mas, se a ontologia é inteiramente diferente de tudo quanto já sabemos, a introdução que já sabemos, em vez de nos conduzir para dentro da ontologia, nos conduzirá para dentro da própria introdução. E assim por mais introduções que dermos, sempre estaremos passando de uma introdução à outra, jamais atingindo a própria ontologia.

Mas não é assim que, em todas as nossas aprendizagens acadêmicas, primeiro se dá a introdução, onde se explica de que se trata, se expõe termos usados, se dá o seu histórico, se explica sobre o método, se fornecem informações necessárias etc. etc.? Certamente tudo isso de alguma forma se pode fazer e faremos também. P. ex. a informação sobre a diferença entre o ontológico e o ôntico é uma dessas informações introdutórias. No entanto, é de uma decisiva importância que você perceba desde o início do estudo da ontologia o seguinte: na filosofia não existe nenhum recurso, por mais erudito, sofisticado que seja, que possa substituir o empenho cheio de dor, sofrimento, lutas e dificuldades de um contato e confronto corpo a corpo com a própria filosofia, portanto, aqui com a ontologia.

Esse fato, todo próprio, do ensino da filosofia, implica um outro fato que é também decisivo, que deve ser percebido para poder bem estudar ontologia, a saber: o trabalhoso e árduo contato corpo a corpo com a ontologia ela mesma é mais frutífero, mais eficiente, sim mais fácil para você entrar realmente na ontologia, do que toda essa informação de introduções que querem facilitar e amenizar a aprendizagem da filosofia, aqui, da ontologia.

Com outras palavras, as dificuldades de compreensão não são negativas nesse tipo de abordagem. Pelo contrário, pode até ser sinal de progresso. Pois todo e qualquer contato sério e real com a realidade não conhecida por nós, nos causa dificuldades e sofrimentos, porque ela não se deixa encaixar no que já sabemos, no que nos é familiar. E, se o contato é real, ela nos estranha e nós a estranhamos, não vai como queremos e sabemos; nós devemos nos adaptar a ela, deixar uma porção de coisas nossas, para nos dis-pormos a ela. E na medida em que fizermos isso, aos poucos vai nascendo um novo conhecimento, nos transformamos, de tal modo que não somos nós que fazemos alguma coisa com a ontologia, mas a ontologia faz alguma coisa conosco.

Essa maneira de trabalhar corpo a corpo, tentando experienciar na nossa própria carne o que é a ontologia, sem tentar substituir ou aliviar esse trabalho necessário de contato com a coisa ela mesma, se chama estudar por estudar. É por isso que no estudo da filosofia se recomenda desde o início, aos estudiosos, que assumam o estudo por ele mesmo.

Estudar por estudar, hoje, é compreendido de forma destorcida. Pois estudar por estudar parece ser um estudo alienado, longe da aplicação prática, uma espécie de hobby, enclausurado na torre de marfim de uma burguesia ou de um academismo ensimesmado e egoísta. Essa forma destorcida de entender a palavrinha por, da expressão “estudar por estudar”, na realidade, vem da nossa maneira usual-funcionário de agenciar a realidade. Mas, sobre esse ponto, falaremos em detalhes e com mais profundidade quando falarmos da funcionalidade na ontologia.

Aqui, observemos apenas que esse modo funcionário de abordar a realidade sempre fala de uma realidade, em vista de, em função de, instrumentalizando-a. E isto em vista de, em função do qual a realidade é visualizada, é sempre um interesse, um plano, um objetivo de um sujeito que se chama eu ou nós. Esse modo de abordar a realidade nunca deixa ser a realidade nela mesma, mas sempre em função de uma outra coisa. Assim, esse modo de trabalhar nunca nos conduz à coisa ela mesma, mas sempre nos abandona, afastando-nos do contato imediato real.

Para nós, aqui, estudar por estudar significa, corpo a corpo, sem preconceitos ou bloqueios, como alguém que agarra com duas mãos a onto logia, para cordialmente, com muita curiosidade, simpatia e interesse tentar entendê-la como ela é, e não como nós gostaríamos que ela fosse.

Assim, pertence metodicamente ao estudo da ontologia, essa atitude cordial de estudar por estudar. Um estudo com esse teor de vida, longe de ser um estudo alienado, ensimesmado e egoísta, é desempenho de um empenho cheio de alegria, ânimo intrépido e coração generoso, cujo vigor amadurece como um conhecimento certeiro, profundo e originário da realidade

Uma pessoa que está empenhada assim, em contato corpo a corpo com o estudo, está enterrada até o pescoço no que faz. A maneira de abordar a realidade de uma tal pessoa é sempre começar com o que está mais próximo, i. é, junto dos entes, no meio dos quais estamos enterrados até o pescoço. E os entes, no meio dos quais estamos enterrados até o pescoço, são os entes que encontramos e que somos nós mesmos no uso e na vida.

  1. O estudo da ontologia começa junto dos entes que estão ao redor, junto a nós, no uso e na vida

Antes, acima, dissemos que a nossa situação ôntica hoje é preponderantemente científica. E que por isso mesmo temos dificuldade de compreender o modo de ser da ontologia, que é diferente do modo de ser das ciências ônticas ou positivas. Vimos também que, embora a nossa situação ôntica seja preponderantemente científica, o é num sentido bastante ambíguo. Ambíguo porque o fenômeno das ciências não aparece como uma dominação limpidamente distinta, mas está entremeado e impregnado do cotidiano de uso e vida. Exemplos: problema da interpretação científico-exegética das Sagradas Escrituras e a crença popular; a atitude de um pesquisador científico que em casa, ao brincar com os filhos, tem um modo de sentir e pensar, e um outro no instituto de pesquisa. Experimente fazer um pequeno levantamento de exemplos dessa ambiguidade.

A realidade no meio da qual estamos metidos, em que estamos vivendo, ou melhor, a realidade que em concreto somos no uso e na vida se chama realidade pré-científica. Um outro termo para indicar o mesmo é pré-ontológica ou também pré-predicativa. Deixando de lado por enquanto a explicação mais detalhada sobre por que se chama assim, apenas mencionemos que pré-científico significa antes de se constituir como ciências; pré-ontológico, antes de se constituir como ciência do ser; e pré-predicativo, antes de se estruturar dentro do processo de predicação, i. é, do juízo.  Aqui o adjetivo científico e predicativo dizem a mesma coisa. Assim, ciências, ciência do ser e predicação ou o juízo tem algo a ver mutuamente. Se, em vez de ciências, dissermos ciências ônticas ou positivas, e em vez de ciência do ser, ontologia, podemos dizer que essa realidade que somos nós mesmos e que se chama pré-científica ou pré-ontológica ou pré-predicativa, é o imenso terreno onde brotam as ciências ônticas ou positivas e também onde se dá a ontologia, embora em diferentes dimensões. Com isso, temos uma indicação para a sequência das nossas reflexões. Assim, na primeira parte falaremos da realidade pré-científica. Na segunda, das ciências ônticas ou positivas. E na terceira parte, da ontologia.

A-REALIDADE PRÉ-CIENTIFICA

Reflexão 2: A dificuldade de se aperceber a realidade pré-científica.

Embora operativamente vivamos como realidade pré-científica, todos os dias no uso e na vida, não é fácil percebê-la tematicamente. Para isso, é necessário uma certa prática. O que dificulta tematizar o que somos e percebemos operativamente é um modo de ser que compreende o ser como fato-ocorrente. Usualmente, pois, entendemos o ente como fato ocorrente, uma coisa. Isso porque, quando dizemos entes, olhamos ao nosso redor e apontamos para isto ou aquilo que nos cerca, e que está ali diante de nós como uma coisa-pessoa, coisa-animal, coisa-planta, coisa-objeto etc. etc. ocorrente, i. é, entes que estão ali à mão. Agora experimente fechar os olhos e pense em todos os entes que estão ao seu redor. Primeiro bem próximo de você, depois cada vez mais longe, como que aumentando o diâmetro de círculos ao seu redor, estendendo-se pelo universo a fora. E então diga: o universo e os entes no universo, inclusive eu. Como você representa os entes? Não é como átomos-coisas ocorrentes, como que pontos, bolas, algo dentro de um imenso recipiente? Agora abra os olhos e examine bem esta pedra, esta rocha, esta flor, este animal, esta pessoa diante de você ou ao seu lado, este céu aberto e estrelado, esta floresta incrível que nos envolve etc. etc. Você logo percebe a diferença. Os entes aqui, agora não são nem pontos, nem átomos-coisas ou algo ocorrentes, mas sim coisas bem concretas, realidades, presenças, vivas, pluriformes e variegadas, com contornos bem próprios e plásticos. Tente desfocar a representação do ente como átomo-coisa ocorrente e avivar o mais possível a percepção direta das coisas concretas nesse convívio. E mantenha-se bem afinado a essa percepção direta.

Agora, aos poucos, com muito cuidado, comece a ver as diferenças das coisas no seu modo de ser, no seu interrelacionamento, no seu surgir, crescer, consumar-se e desaparecer, no seu uso, na sua estruturação: você está imerso até o pescoço na realidade pré-científica, nessa imensa prejacência dinâmica, viva de implicações e possibilidades pulsantes.

Se você começa agora a examinar pacientemente ao seu redor essa imensidão prejacente de realidades, inclusive você mesmo, vai perceber que os entes não são pontos nem blocos nem núcleos de factualidade ocorrentes, mas sim áreas, campos, regiões, pregnantes de realidade: os entes são entidades, ou melhor, entificações, i. é atuações de uma presentificação desvelante.

Para que a nossa percepção consiga permanecer por mais tempo afinada com esse modo de ser da prejacência pré-científica ou pré-ontológica, façamos aqui exercícios de ver alguns entes no seu presentificar-se: p. ex.:

– Uma pedra no meio do caminho;

– Um cálice de vinho e uma jarra;

– O sapato da camponesa, de van Gogh;

– Um martelo pendurado no prego de uma oficina.

– Conforme a necessidade, acrescentar mais exemplos de entes.

Esse modo de ser dinâmico de presentificação desvelante está expresso na palavra ente, que é o particípio presente ativo do verbo ser, e significa: o sendo. Em grego é on, e tinha a conotação de phainómenon i. é, o aparecendo (phaínestai).

Reflexão 3: Pré-conceitos acerca da realidade pré-científica.

Essa realidade pré-científica, que é uma paisagem riquíssima, cheia de propriedades variegadas e multiformes de fenômenos concretos é o que usual e vagamente chamamos de Vida. O termo especial, usado na ontologia moderna, por Edmund Husserl é mundo circundante vital (Lebenswelt).

Grande dificuldade de ver o mundo circundante vital é o modo de ser que compreende o ente como ocorrência factual-coisa. Mas a dificuldade maior provém de um pré-conceito que, em oposição ao pré-conceito coisista factual-ocorrencial, entende a realidade pré-científica como vida, e subsume sob o termo vida algo como vitalidade naturalista,  p. ex., vida como élan  vital, vitalidade biológica, impulso, instinto, energia-vitalidade, espontaneidade natural, natureza primitiva, não elaborada pela cultura etc. etc.

Para ilustrar essa situação de dificuldade na compreensão do que é mundo circundante vital, façamos em grupos o seguinte exercício: experimente detectar o significado da palavra vida ou seu adjetivo nas seguintes frases:

Puxa vida!\ Vida de animais selvagens\ Que vida de cachorro!\ Vida biológica\ A vida dos frades menores é esta\ Vida boêmia dos poetas românticos\ Quem dá a sua vida pela ciência?\ Vida divina em nós\ Vida a dois\ A vida da dona de casa\ O élan vital\ O tônico bioenergético vita-fontouro\ Um cargo vitalício\ Um canto sem vida e sem ritmo\ Assim, desse jeito não se pode viver!\ Eu, aqui, não vivo, vegeto!

Depois de sentir na própria pele a existência desses pré-conceitos coisista-ocorrenciais e naturalista-vital-energéticos, experimente pensar agora para ver se consegue descobrir alguns outros preconceitos que povoam a sua cabeça, quando ouve falar de uma realidade pré-científica, p. ex., realidade de pessoas simples ignorantes; de pessoas estreitas na visão, por estarem fechadas no ambiente onde vivem, cheias de superstições, folclore, costumes típicos; realidade ainda não poluída pelo progresso racionalista das ciências, a realidade natural etc.

Reflexão 4: A Lebenswelt, o mundo vital circundante.

Acima dissemos que o termo usado na ontologia para essa realidade pré-científica é Lebenswelt. Vamos aqui explicitar um pouco mais essa realidade, através da explicação mais concreta da própria palavra Lebenswelt, pois ela se presta a muitas equivocações.

A palavra Lebenswelt se compõe de duas palavras: Leben(s) e Welt. Lebens é genitivo, e significa: da vida. Welt significa mundo.

O pivô da questão, na compreensão do que seja a Lebenswelt, está em fisgar com precisão, o que significa aqui vida. Pois, por vida compreendemos usualmente ou a vida biológica ou a vitalidade, digamos, não tanto no sentido da ciência chamada biologia ou psicologia, mas no sentido da vida natural, hoje diríamos, ecológica. Não é nesse sentido que devemos entender aqui a palavra Leben da Lebenswelt. O preconceito de entender a realidade pré-científica como o mundo primitivo, mundo das pessoas ignorantes e simples, digamos do mato, vem dessa pressuposição, i. é: vida = vida natural da natureza ecológica.

Aqui, devemos compreender vida (Leben) como os afazeres humanos. Mas não em particular, como esse afazer e aquele afazer, mas como a vida que se leva cotidianamente nos nossos afazeres.

Aqui, porém, é necessário ficar bem atento, para não deixar o fenômeno deslizar para uma compreensão vaga e confusa da vida cotidiana dos nossos afazeres. É que o nosso cotidiano está entrelaçado de elementos da vida natural ecológica, da vida de afazeres, e pedaços de vida científica. Assim, o pai de família que sai para o seu trabalho, ao se despedir, beija o filhinho, e sente o cheiro de leite (vida natural-ecológica), tira o lenço e lhe limpa a boca (vida de afazeres), e identifica o cheiro de leite como o leite característico da Nestlé (vida científica), fábrica de alimentos, onde ele trabalha como químico… Portanto, dizemos nós, a nossa vida de afazeres está entrelaçada desses vários níveis deferentes de vida… Mas, na realidade, a vivência do pai ao beijar o filhinho, é bastante diferente, como uso e vivência, de toda essa descrição. Pois, a vida de afazeres no uso e na vivência é anterior a todas essas determinações. Mas essa anterioridade não é anterioridade no sentido de material primitivo, ainda não trabalhado, nem no sentido de uma etapa que antecede a uma evolução mais perfeita, explícita, mas sim anterioridade, digamos, de nível de ser. Como tal, a vida cotidiana nos afazeres humanos, i. é, a vida humana não é primitiva, não é natural ou nasciva ou espontânea, não é indeterminada, por ser ainda determinada, mas sim de um nível de concreteza, clareza e distinção, dinâmica e determinação, perfil e contornos diferenciados. Essas diferenciações e determinações, porém, não são entre si, como de coisa para coisa, mas por assim dizer para dentro de si, num movimento de estruturação totalizante, unificadora, que subsume de antemão tudo numa presença de profundidade oculta e não perceptível, a não ser operativamente no uso e na vivência.

Assim, no exemplo cima, o cheiro de leite, identificado pelo químico como aquela mistura química, está subsumido como cheiro do filhinho. Deixando intacto o fato de o leite ser elementos químicos da fábrica Nestlé, o cheiro do filhinho, ainda infante, é uma realidade familiar, que está por sua vez subsumida pela realidade família etc. etc. Aqui o Leben, a vida como afazeres cotidianos, se abre como Welt, mundo, i. é, clareira, abertura, como um todo de sentidos, que constitui a morada humana bem determinada, constituída a partir e dentro da imensidão da possibilidade de ser. Temos assim Lebenswelten de Lebenswelten e diferentes implicações de possibilidades de sentidos, numa sinfonia riquíssima de realizações do sentido do ser.

O surgir, o aparecer dos entes como estruturações con-cretas da Lebenswelt, como sentido do ser da vida cotidiana de afazeres humanos se chama phainómenon, e é esse aparecer concreto o sentido do particípio ativo neutro do verbo ser, tó on, o ente.

A primeira tarefa da Onto-logia é despertar de novo em nós a percepção dessa realidade anterior que somos nós mesmos, em sendo no uso e na vivência.

B – AS CIÊNCIAS

Essa realidade pré-científica é a terra sobre a qual surgem e crescem as ciências. Reflitamos, pois, acerca das ciências.

Reflexão 5: A teoria ingênua das ciências

Hoje, se quizermos saber, o que é ciência, devemos recorrer à assim chamada teoria das ciências (Wissenschaftstheorie, em alemão). Um outro termo para indicar essa disciplina parece ser metaciência.

O problema, aqui, porém – como em toda parte hoje, aliás –, é que existem várias teorias das ciências, de diferentes níveis e procedências. No entanto, aos poucos, a consciência crítica acerca da própria ciência, surgida dentro das próprias ciências, começa a nos dizer o que é obsoleto dentro da teoria das ciências. Vamos enumerar uma dessas compreensões obsoletas, que pode muito bem povoar também as nossas mentes clericais, quando falamos das ciências, hoje, ou da necessidade de estarmos “aggiornados” para a nossa era científica. O que segue, está baseado no artigo de Heinrich Rombach, “Wissenschaft und Philosophie” (Studienfuehrer, zur Einfuehrung in das kritische Studium der Erziehungs- und Sozialwissenschaft, Wissenschaftstheorie 1, 1.1.2 Wissenschaftstheorie und Philosophie, p. 12-19, Muenchen-Wien: Schriften des Willmann-Instituts). Aqui, daremos um pequeno resumo de uma pequena parte desse artigo.

Trata-se de uma concepção das ciências, que poderíamos chamar de teoria ingênua das ciências. Embora obsoleta, essa teoria ingênua das ciências está em toda parte, ainda hoje, ou na nossa compreensão usual e popularizada da ciência ou também nas publicações, mesmo especializadas sobre o assunto, e na mente de muitos cientistas, eles mesmos.

O que caracteriza a teoria ingênua das ciências é a ingenuidade ou a boa fé despreocupada com que generaliza e absolutiza, sim, dogmatiza e fixa um conceito unilateral da ciência. Em geral, esse conceito único unilateral, o teorético ingênuo das ciências tira-o da ciência, na qual ele é especialista. Ela faz essa generalização, porque acredita ingenuamente que existe uma única espécie de cientificidade. Conforme essa crença, também historicamente, existe somente uma única forma de cientificidade. Podem se multiplicar conhecimentos científicos. Surgirem novas ciências. Evoluir. Mas todas elas têm o mesmo conceito da ciência. A cientificidade em todas elas é sempre a mesma. É o típico do modo de pensar de A. Comte, que fala de “régime définitif de la raison humaine”, i. é, a era da ciência positiva. É o conceito de ciência do positivismo em todas as suas nuances e variantes. Segundo essa concepção da ciência, o que está fora dela ou anterior a ela é um “conhecimento” relativo e subjetivo, privativo-histórico. Ao passo que o saber científico é objetivo, definitivo, real, absoluto e supra-histórico.

Assim, a teoria ingênua das ciências se caracteriza pelos seguintes pré-conceitos:

  1. a) Ciência é uma forma de saber, determinada, estável, constatável, sobre a qual se pode dar informações bem determinadas, estáveis e constatáveis. Estas informações nos dizem o que é objetivamente ciência e nos dão a medida geral da cientificidade de toda e qualquer ciência.
  2. b) Assim, existe propriamente somente uma ciência (e cientificidade). A multiplicidade das ciências surge apenas devido à multiplicidade dos objetos da ciência. As ciências, na sua multiplicidade, são como que diferentes objetos, sobre os quais se empostam as miradas científicas, cuja estrutura e cujo modo de ser é único. Por isso, quem conhece uma ciência, conhece a ciência.
  3. c) Há certamente evolução, desenvolvimento nos conhecimentos científicos. Há correturas e revisões dos conhecimentos científicos. No entanto, tudo isso ocorre dentro do horizonte de uma única, bem determinada, estável e defintiva definição da cientificidade da ciência. Por isso, através das histórias de desenvolvimento dos conhecimentos científicos, corre uma linha contínua e bem definida, do que seja e o que deve ser ciências. O conceito da ciência não tem história. História só tem os conhecimentos, que dentro desse conceito evoluem, crescem segundo a cientificidade. A história dos conhecimentos científicos se dá dentro de um único, supra-histórico e imutável horizonte de cientificidade.
  4. d) O desenvolvimento e o alargamento dos conhecimentos científicos, por diferentes que sejam as ciências, se dão dentro de um horizonte de cientificidade, de tal sorte que, se pode constituir um progresso sistemático e lógico sem lacuna. E tudo que não segue esta lógica ou está fora dela só tem valor de verdade, enquanto de alguma forma é redutível a ela.

É interessante observar que essa teoria ingênua das ciências, que está no fundo de nossa compreensão usual da ciência, cai num dogmatismo muito semelhante ao que encontramos na teologia, onde a ciência é conjunto de conhecimentos perenes, verdadeiros, atemporais e imutáveis. Só que, aqui na teologia, esse modo de ser do conhecimento pode não ser um dogmatismo, sendo que o modo de ser dogmas, que aparentemente parece ser dogmatismo, pode provir do modo de ser próprio e adequado da ciência sui generis, chamada teologia; ao passo que nas ciências, onde se pretende ser radicalmente questionador e crítico, o maior pecado, que se pode cometer, é o dogmatismo.

Reflexão 6: A nova consciência científica

Nós começamos a despertar para a consciência crítica da nova teoria das ciências, quando abandonamos esse dogmatismo camuflado da teoria ingênua das ciências e compreendemos que, em diferentes ciências reais, devem se formar e ativar cada vez diferentes tipos de ciências. E que não existe a ciência, mas ciências. E se podemos falar, de alguma forma, de ciência como uma totalidade, essa totalidade não é uma estruturação geral e única, segundo a qual as ciências devem ser logicizadas, mas sim um organismo dinâmico, complexo e riquíssimo de diferenciações, níveis e dimensões, constituído pelas ciências particulares, que através das diferenças de cada tipo de ciência, num movimento dinâmico de confrontos, correturas, entrechoques, subsumpções mútuas, vai crescendo numa transmutação contínua.

Assim, o reinado do absolutismo do conceito unilateral da ciência está no fim. É o que nos vem demonstrando o progresso das ciências, que progridem, não tanto pelo alargamento e quantificação de novos dados e novas descobertas, dentro de um determinado horizonte de pesquisa, mas pela destruição de suas pressuposições e seus conceitos fundamentais, através das crises de seus fundamentos, para abrir-se a um horizonte novo, mais profundo, mais vasto e mais originário. Assim, viemos assistindo a sucessivas quedas da monarquia do conceito racionalístico da ciência, segundo o modelo da matemática e da lógica, do conceito empiristico-positivista, segundo o modelo da física e da biologia, do conceito materialista ao modo da química, do conceito relativista ao modo da historiologia etc. etc. A nova consciência científica hoje tem a tarefa principal de desmascarar essas superstições do dogmatismo, que se infiltram nas ciências. Ela, a consciência científica nova, nessa tarefa de desmascaramento, não vai contra a cientificidade das ciências. Pelo contrário, em desmascarando a absolutização e hipostatização anticientíficas dos conceitos unilaterais da ciência, tenta abrir caminho à cientificidade mais humana e plena de um saber científico futuro, que se avia na medida em que, numa reflexão de fundo em direção à raiz de cada tipo de ciências, desencadeia um confronto e diálogo universal de todas as ciências mutuamente entre si.

Essa nova atitude científica da nova consciência, que começa a despertar por toda parte nas ciências, pode ser caracterizada mais ou menos da seguinte forma:

  1. aa) Não há um conceito da ciência, fixo, parado, portanto, não há uma forma fundamental da “cientificidade como tal”. A ciência vive em transformações, tanto no todo da sua forma como nas formas das suas particularidades. Entre aquele e estas, se dá iteração mútua de influência.
  2. bb) No progresso científico não há um crescimento unívoco e unitário do conhecimento, unilinear, sucessivo e evolutivo. Por isso, os critérios que decidem, o que é conhecimento científico e o que não é, devem ser examinados cada vez, na medida em que avançam as ciências, segundo o estilo de transformação assinalado em aa) acima.
  3. cc) Não há conceito de ciência que seja aplicável sem mudança a todas as ciências particulares. Conceitos fundamentais, como experiência, fundamento, fundamentação, causa, prova, demonstração, método etc., etc., significam coisas diferentes, em diferentes ciências particulares ou em diferentes grupos de ciências.
  4. dd) Como existe pluralidade de métodos das ciências particulares, assim também, dentro de uma e mesma ciência particular pode existir pluralidade de métodos, que coexistem numa ambiguidade complementar. Os métodos recebem o seu aviamento, a partir do toque de abordagem principial, e assim, dentro de uma mesma ciência particular, podem ocorrer duas ou mais abordagens, que efetuam dois ou mais métodos. Estes, por sua vez, num confronto mútuo, mantendo cada qual a sua diferença, criam uma complementaridade, que não é nem ajuntamento, nem síntese, nem substituição ou mistura, mas uma tensão, que contém a espera de uma descoberta, p. ex., a abordagem ondulatória e a abordagem corpuscular da luz na física. Assim, a manutenção da pluridimensionalidade é um característico da cientificidade das ciências e não a sua negação.
  5. ee) Cada ciência permanece em questão até a raiz de seus fundamentos, dos mais principiais até os básicos. Mesmo as bases confirmadamente válidas e “definitivas”, comprovadas por várias ciências, podem ser subversadas como um caso parcial de um todo maior ou como uma ausência de uma diferenciação e aprofundamento mais rigorosos e radicais.
  6. ff) A nova consciência científica no questionamento dos fundamentos imanentes das ciências, sonda, ao mesmo tempo, sua decisão imanente. Mas sabe que as regras de jogo imanente à própria ciência, provenientes dos fundamentos autoconstitutivos da decisão imanente das ciências, contêm também decisões e fundamentações sócio-históricas. Assim, ao acionar-se como ciências, se sabem partícipes das convicções operativas fundamentais do seu tempo e da sua sociedade. Por isso, não paira ou domina altaneira sobre o seu tempo nem sobre a sua sociedade. Não abstrai, mas assume plenamente a prenhez e pregnância situacional sócio-históricas. Mas, ao mesmo tempo, evita de cair no dogmatismo do historicismo e do sociologismo. Por isso, não considera a ciência simplesmente como produto ou imitação de uma sociedade. Deixa assim de se determinar dentro da ingênua e irrefletida colocação “sujeito-objeto”, deixa tanto o objetivismo como o subjetivismo de lado, assim como um dogmatismo não científico.
  7. gg) A contraposição sujeito-objeto, em todas as suas manifestações, como p. ex. saber-objeto, homem-realidade, teoria-práxis etc. etc., não é mais colocada ingenuamente, externa e materialmente, mas sim como circulação de mútua iteração. A ciência não está diante, contra, em frente à vida, à realidade, mas está nela inserida. E a vida humana pré-científica não é autarquia, mas já implica comportamentos e modos do pensar científico.

Esta nova compreensão dinâmica das ciência, à primeira vista, parece dissolver toda a nitidez e clareza da cientificidade a um fluxo, certamente dinâmico, mais diferenciado e rico, mas confuso, sem contorno e sem determinação, portanto a um relativismo, historicismo, a um vitalismo caótico, onde tudo, qualquer opinião, práxis ou tentativa de busca já é uma ciência.

Na realidade, no entanto, não se trata de dissolução à confusão e ao caos relativista. Pelo contrário, trata-se de libertar as ciências da infiltração de velhos e obsoletos ídolos dos dogmatismos e torná-las claras e distintas (Descartes), não conforme o totalitarismo de uma medida unilateral absolutizada, mas conforme a exigência da pluriformidade e pluridimensionalidade de uma mathesis universalis.

C – A FILOSOFIA

Essa clarificação pluridimensional das ciências começa a nos mostrar a estrutura interna das ciências e o seu relacionamento com a filosofia.

Reflexão 6: Ciências e filosofia

A nova concepção da ciência, acima mencionada, nos proporciona uma nova compreensão do relacionamento entre ciências e filosofia.

Mas, para podermos compreender esse relacionamento, é necessário deixar de lado o esquema usual em que costumamos explicar esse relacionamento.

Costumamos representar o relacionamento das ciências entre si, entre as ciências e a filosofia num esquema,onde temos diante de nós o objeto (realidade, a coisa, o campo, a região, a área etc.,) sobre o qual as ciências, a filosofia, a teologia empostam a mirada do seu ponto de vista, e cada qual, as ciências, a filosofia, capta um aspecto parcial desse objeto. E ajuntando-se os resultados dessas captações temos conhecimento cada vez mais global. Por isso, quanto mais captações de diferentes pontos de vista, tanto melhor, porque se somam as informações de diferentes aspectos. Aqui, as ciências, a filosofia são duas miradas diferentes, uma ao lado da outra, sobre um mesmo objeto, cada qual com seus conhecimentos parciais do objeto, conhecimentos que podem ser somados entre si, dando assim informações cada vez mais abundantes sobre o mesmo objeto.

Esse esquema é ingênuo demais para poder ser levado a sério. Trata-se simplesmente de um esquema estereotipado, que não faz nenhum jus à realidade complexa do relacionamento das ciências. É uma representação ingênua de um realismo epistemológico caricatural, que na realidade não diz nada. E, no entanto, no uso comum, mesmo entre nós, é frequente encontrarmos tal representação, orientando a composição de um programa de estudo da filosofia. Devemos pois abandonar essa ingenuidade dogmatizada se quisermos compreender as ciências, a filosofia, hoje.

Essa representação ingênua do objeto diante de mim e eu aqui, com o meu ponto de vista das ciências, da filosofia, a mirar o objeto, adquirindo informações sobre o objeto, é na realidade uma abstração. Pois a realidade não está diante de nós. Nós, junto com tudo que nos cerca, tanto por dentro como por fora, na sua totalidade, tudo isso já é realidade, já somos realidade e sua compreensão. E, na representação ingênua da realidade como objeto, isto que achamos estar diante de nós aparece como estando diante de nós, porque nós nos pontualizamos como esta coisa-objeto aqui relacionada a aquela coisa-objeto pontualizada lá, e cortamos por assim dizer a ligação viva e concreta com a experiência anterior a toda essa operação de pontualização objetivante, experiência essa, que nos possibilita essa pontualização dual, eu aqui e coisa lá como sujeito e objeto. Essa experiência anterior é a percepção direta-imediata simbiótica da realidade que somos nós mesmos como a totalidade do mundo.

Reflexão 7: A Lebenswelt e o abismo desvelante

Na nova teoria das ciências essa realidade da percepção direta e imediata, em sendo como totalidade mundo, se chama realidade pré-científica.

Dessa realidade pré-científica nós já falamos rapidamente nas reflexões 1, 2, 3.  Essa realidade pré-científica, é confundida pela teoria ingênua das ciências dogmatizada, já mencionada acima, com mundo primitivo, imerso na obscuridade da vitalidade irracional, ainda infante e sem consciência. Na realidade, trata-se da presença e plenitude da totalidade dinâmica da possibilidade da vida, no nosso viver, em sendo, na pregnância da evidência imediata da coisa ela mesma. Essa realidade na concreção vida, Edmund Husserl chamou de “Lebenswelt”. Esse termo alemão é usado  sem tradução na nova teoria das ciências, mas que poderíamos traduzir como “mundo vital circundante”. Essa Lebenswelt é o espaço aberto da plenitude da possibilidade, que poderíamos chamar de insondável abismo desvelante das possibilidades do ser.

Ora, toda ciência se funda e está assentada nesse abismo desvelante, na Lebenswelt, que não é um espaço escancarado e homogêneo, mas implicações de diferentes níveis e dimensões de Lebenswelten numa contensão, pregnância e dinâmica de possibilidades genéticas infinitamente ricas e pluriformes de ser. É desse abismo desvelante que provêm as diferentes decisões de possibilidades epocais da história.

As ciências, cada vez, em diferentes epocalidades, em se fundando e se assentando nesse e desse abismo desvelante, como que se fixa numa dessas Lebenswelten, e começa a trazer cada vez mais à tona as implicações dessa possibilidade. Mas, em fazendo essa explicitação, estabelece uma corte, um entalhe na totalidade dessa imensidão do abismo desvelante, e começa, por assim dizer, a construir em cima desse Lebenswelt-entalhe, todo um mundo de explicitações, ordenações, coerentes, desenvolvidos a partir do modo de ser próprio ali dado nesse Lebenswelt-entalhe.

As ciências, portanto, se movimentam ao mesmo tempo em duas direções.

  1. a) Para cima, no sentido de construção positiva de estruturações, que são explicitações das possibilidades da Lebenswelt, sobre a qual e a partir da qual se erguem essas estruturações. E é da Lebenswelt que elas colhem os seus conceitos fundamentais, o modo de ser do método etc. etc., que então se transformam em pressuposições fundamentais de cada ciência. É esse movimento construtivo que dá às ciências o seu característico de ciências positivas, i. é, cada ciência tem o seu positum, i. é, o embasamento, o posicionamento, o assentamento na terra fértil da(s) Lebenswelt(en) do abismo desvelante da vida.

Esse movimento construtivo das ciências positivas, em tematizando, em explicitando, em ordenando, ganha em clareza e precisão no mapeamento e na presentificação das possibilidades, dadas pela Lebenswelt, sobre a qual repousa, mas, ao mesmo tempo, perde na radicalidade, na imensidão e orginariedade da sua pertença ao abismo desvelante, se nas ciências, continuamente e conscientemente não é trabalhado o movimento de penetração, sondagem e ausculta atenta do sentido do ser, que incessantemente emerge do abismo desvelante vida.

  1. b) Esse movimento de penetração, sondagem e ausculta do sentido do ser da Lebenwelt, a emergir do abismo desvelante, é o segundo movimento das ciências, que vai na direção oposta ao movimento construtivo, portanto para baixo, para as profundezas da Lebenswelt.

Esse movimento de penetração na raiz da própria ciência não é construtivo, mas sim destrutivo. Mas não destrutivo no sentido de agressão a uma posição para aniquilá-la, impondo-lhe uma outra posição. Destrutivo no sentido de, sempre de novo reconduzir, i. é, reduzir toda e qualquer construção positiva das ciências à radicalidade da sua pertença ao abismo desvelante, desfazendo toda e qualquer infiltração ou sedimentação de dogmatismos e unilateralidades, hipostatizações e absolutizações, mantendo sempre de novo e nova a abertura à possibilidade abissal de renovação e ao toque do inesperado. Do jogo desse movimento construtivo e destrutivo, do jogo desse movimento estruturante-constitutivo e do movimento desestruturante-reductivo se dá a fundamentação da ciência, e a cientificidade e o quilate de uma ciência se medem pela limpidez e pelo equilíbrio desse jogo.

Esse movimento que se dirige à profundidade radical do abismo desvelante, que caracteriza a nova ciência e a distingue de ideologia e mundividência, agora levado a últimas consequências e tematicamente buscado, constitui o movimento da filosofia. Isto significa que as ciências e a filosofia copertencem intimamente. A filosofia é no fundo o movimento de redução, que corre no próprio seio das ciências, juntamente com o movimento da constituição. Essa maneira nova de compreender as ciências nos seus dois movimentos constitutivo-reductivos pode ser talvez esquematizada como um movimento espiral centrifugal-centripetal. Talvez seja útil observar que os dois movimentos não são propriamente lineares opostos, mas sim movimentos espirais em implicação centrifugal-centripetal.

Reflexão 8: O ensino da filosofia

No passado, quando o ensino da teologia e da filosofia ao clero estava estabelecido, numa bem ordenada e fixa estrutura do ensino manualístico da escolástica, a filosofia ministrada era escolástica, ou melhor, neo-escolástica, tinha seu conteúdo, seu método bem determinados, e tinha a função de ser a “ancilla theologiae”, servindo de prolegomena da teologia. Mas uma vez que, tanto a teologia como a filosofia tinham o mesmo estilo escolástico, havia uma coordenação e sintonia perfeitas entre ambas as disciplinas, de tal sorte, que a filosofia, no fundo, era uma iniciação à teologia sistemática. Nesse sentido, a filosofia do antigo ensino clerical, fora do meio eclesiástico, não era considerada propriamente como filosofia, mas sim já teologia. Essa totalidade bem coesa e coerente do ensino teológico-filosófico era ainda, mesmo numa escala já institucionalizada e padronizada e com apoucado vigor especulativo, uma herança da grandiosa síntese conquistada pelo pensamento medieval, repristinada pelos esforços do assim chamado movimento da neo-escolástica. E como tudo que é verdadeiramente grande no pensamento, se bem ministrado, forma o pensamento, as pessoas que se dedicavam com empenho ao estudo da teologia e filosofia escolástica, principalmente em contacto direto com os textos dos grandes mestres clássicos da escolástica, recebiam uma formação coesa, coerente, bem assimilada e assentada, embora também corressem o grande risco de deixarem-se doutrinar, e em vez de aprender a pensar grande, cairem no dogmatismo intransigente e estreito de funcionários clericais, adestrados ideologicamente, sem a capacidade de pensar.

O revigoramento nas pesquisas históricas sobre a Idade Média, novas descobertas e edições críticas dos grandes mestres do pensamento da Idade Média, desencadearam dentro da Igreja um estudo cada vez mais vasto e profundo do pensamento medieval, e a grande síntese teológico-filosófica da escolástica começou a vir à tona como um dos “sistemas” de pensamento mais bem trabalhados e consumados do Ocidente, revelando um vigor especulativo inaudito.

Essa redescoberta da escolástica medieval deu início, no estudo da filosofia no seio da Igreja, a uma tentativa chamada de néo-escolástica, na qual, se tentou retomar e continuar o trabalho que na Idade Média realizaram os grandes mestres da teologia, de fazer, a partir do “fides quaerens intellecltum” uma síntese teológico-filosófica, onde agora as novas filosofias, modernas e contemporâneas, fossem assimiladas, como contribuições valiosas no crescimento do pensamento católico, como as antigas filosofias não-cristãs o foram para os mestres medievais.

Assim, no ensino da filosofia na formação intelectual do clero, hoje, em muitos países, principalmente lá onde a Igreja ainda tem muita influência e guarda a tradição, o ensino de filosofia se dá no estilo da filosofia néo-escolástica: o núcleo do pensamento é constituído de teses fundamentais da escolástica, mas com muita abertura às filosofias novas, modernas e contemporâneas, às ciências e às questões diversas dos nossos tempos. E a néo-escolástica tem formado dentro da Igreja gerações de grandes intelectuais, autores e professores.

A néo-escolástica na filosofia, no entanto, fora a época do seu florescimento no seio da Igreja, nas décadas passadas, onde aderiram ao movimento grandes intelectuais, muitos deles convertidos, jamais encontrou no meio filosófico extra-eclesiástico, muita credibilidade. E embora se reconhecesse particularmente o mérito e a competência acadêmica de seus grandes representantes, filosoficamente a néo-escolástica ela mesma parecia um ser híbrido, mais um conjunto de doutrinas teológicas da mundividência católica do que propriamente filosofia. A nova consciência científica de hoje, quer na filosofia como nas ciências, via, na maneira como a néo-escolástica, a priori, abordava a filosofia e as ciências modernas, uma espécie de instrumentalização da filosofia e das ciências, em função da manutenção da mundividência teológica católica. Além disso, o conceito de filosofia pressuposto nesse sistema teológico-“filosófico” parecia jamais poder aceitar e compreender, sim admitir a autonomia, como a reinvindicava a nova consciência científica da filosofia moderna como sendo a essência da filosofia, pois, já a partir do seu sistema, a néo-escolástica não admitia o direito e o dever da absoluta e total autonomia do pensar à filosofia, e a considerava no fundo como uma mundividência.

Na prática, na formação intelectual, esse sistema de ensino da filosofia, a neo-escolástica, sob a camuflagem do ensino sistemático e temático, acabava no fundo reduzindo a filosofia à história da filosofia, onde a filosofia era dada como uma sucessão interminável de mundividências de diferentes épocas, sobre as quais se falava, resumidamente, numa interpretação já padronizada, com as quais a “filosofia” (leia teologia) cristã se confrontava para examinar o que é verdadeiro e o que é falso.

Tal ensino, já que o ensino de filosofia usualmente durava 2 anos, jamais conseguia realmente formar intelectualmente alguém na filosofia. Assim começou a produzir pseudo-intelectuais, que falavam de todas as filosofias e da filosofia, como o faz um ideólogo crente, que sabe julgar tudo com toda a segurança de quem crê que tudo sabe, sem saber que nada sabe, determinando o que é certo e o que é errado.

Entrementes, o próprio ensino da teologia, depois da grande abertura do Vaticano II, começou a entrar na tentativa de um novo caminho do ensino teológico. E as influências das teologias e das filosofias modernas e das ciências, desenvolvidas fora da ambiência clerical-católica, começaram desencadear mudanças significativas dentro do ensino tradicional da teologia. Com isso, no ensino da formação intelectual clerical, começou a desmoronar aquela coesão e unidade orgânica da escolástica na sua síntese teológico-“filosófica” medieval. O nome escolástica se transformou aos poucos numa denominação pejorativa para indicar um ensino de teologia e filosofia tradicionalista, fechado e obsoleto, anacrônico. As disciplinas teológicas e filosóficas, que formavam uma unidade bem estruturada, começaram a se dispersar, cada qual para si, no estilo, no modo de ser e na filiação a diferentes “escolas” de pensamento, correspondentemente antigo ou moderno.

Na escolástica, o que segurava num pulso dinâmico e firme as disciplinas e as unia numa ordenação mútua de confrontos, debates, embates, diálogos e correturas mútuas de aprofundamento em direção a uma síntese cada vez mais profunda, vasta e originária, subsumida pela fé, desaparecia completamente, restando apenas a organização institucional externa de um instituto, de uma universidade ou centro de estudos com seus programas. Por dentro, porém, esse ensino não possuía mais nem unidade, nem coerência, a não ser dentro de uma ou outra disciplina particular. Começou a haver a infiltração de diferentes mundividências, justaposições de métodos, nivelamento de dimensões de diferentes ciências. Essa confusão e a perda do centro começaram a abaixar muito o nível de formação intelectual. O apelo unilateral, pragmaticista e pouco refletido à ação e à pastoral engajada diante da avalanche de urgências e necessidades da humanidade hoje, ao caluniar a formação intelectual como luxo burguês sem efetividade, abaixou ainda mais o nível da formação intelectual.

E hoje, diante dessa situação incômoda e bastante confusa da formação intelectual nossa, estamos querendo reagir a tudo isso, para retomarmos com seriedade e muito empenho a formação intelectual para valer.

No entanto, quando lemos dentro dessa situação os documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero, hoje, a Igreja parece ter diante de si o método, a concepção de filosofia e ciências do sistema de pensar que acima caracterizamos como escolástica, ou melhor, néo-escolástica.

E surge uma suspeita: a Igreja não está querendo colocar  ordem nessa confusão e levantar o nível da nossa formação intelectual, retomando o ideal da néo-escolástica? Não é isto um anacronismo, uma tendência tradicionalista, que teme realmente um diálogo e confronto mais sério com a nova consciência científica de hoje, quer na filosofia quer nas ciências? Não é agarrar-se a um sistema, que não deu certo, por implicar, em seu sistema, pressuposições não tematizadas o suficiente para nos trazer maior evidência?

Reflexão 9: A filosofia, o movimento de redução à profundidade do abismo desvelante.

No entanto, o que está sendo dito pelos documentos eclesiásticos acerca da nossa formação intelectual pode significar uma coisa bem diferente de uma volta tradicionalista a um estilo de formação néo-escolástico, mesmo que toda a linguagem e as concepções ali pressupostas acerca da filosofia e das ciências apresentem um colorido acentuadamente néo-escolástico. É que, a própria néo-escolástica é uma maneira de realizar uma concepção que, por ser neo, já capta a própria escolástica num nível já bastante pouco pensado e minguado na sua profundidade e vigor. Não somente isso, a própria escolástica, mesmo na consumação clássica da sua plenitude, é uma realização concreta de outro vigor essencial e transcendente, cuja realidade não coincide nem com a escolástica clássica medieval nem com a néo-escolástica moderna. Pois esse vigor outro e transcendente é o abismo desvelante da vida, que possibilita essas concreções como a escolástica e a néo-escolástica, ele mesmo se nos ocultando e ao mesmo tempo nos acenando nessas próprias concreções da escolástica ou da néo-escolástica, para que nos aviemos a uma busca intrépida de uma sabedoria que vem das alturas e profundezas desse abismo insondável, inundando com o seu sopro vital todas as nossas possibilidades, como a sabedoria do Deus de Jesus Cristo: a teo-logia.

Com outras palavras, não são os documentos eclesiásticos que falam a partir e dentro da néo-escolástica ou da escolástica. Pelo contrário, são a néo-escolástica e a escolástica que falam e pensam, de alguma forma, de modo bastante insuficiente, a partir e dentro da grande tradição da Igreja. E se a escolástica e de alguma forma a néo-escolástica foram apoiadas, fomentadas pela Igreja na formação intelectual do seu clero, é porque elas de alguma forma ecoam no grande pensamento que flui e palpita na tradição da Igreja.

Isto significa que as recomendações da Igreja na formação intelectual do clero, quando fala “escolástica e neo-escolasticamente”, propondo um “sistema” semelhante ao defendido e apresentado pela escolástica e néo-escolástica, não nos estão dizendo, que hoje, no século XX, devemos de novo montar um ensino com escolástica e néo-escolástica. Mas sim, estão nos dizendo que, se quizermos nos formar intelectualmente como pessoas que pertencem a essa grande realidade do corpo místico de Cristo, devemos colocar como idéia (leia eídos) reguladora do nosso intelecto e da nossa formação intelectual um saber na plena pregnância da presença do Deus de Jesus Cristo, onde Deus (compreendido a partir desse mesmo saber e não a partir de um outro horizonte), em tudo e em todas as coisas, como sabedoria insondável, que inunda e penetra todas as coisas, é luz, lógica, conhecimento que nos guia e orienta na nossa caminhada através de todos os tempos, portanto, um saber e ideal de um saber que, no passado, brilhou por um instante e de modo fragmentário, mas concreto, na forma do pensamento dos grandes mestres da escolástica medieval e que se tentou retomar na neo-escolástica, sem no entanto consegui-lo.

Mas, tudo isso, vire você o argumento como  virar, na prática, não acaba numa implícita recomendação de tentar um empreendimento como o tentado no tempo relativamente recente do florescimento da neo-escolástica? E como na prática não existe nenhum sistema extra-cristão de filosofia que tenha esse característico recomendado pela Igreja, em última instância, não acabamos adotando a néo-escolástica como o ensino de filosofia, apoiado e recomendado pelos documentos eclesiásticos?

Tudo isso não teria nenhuma inconveniência, se a precompreensão de filosofia, que está na própria néo-escolástica tivesse um nível filosófico adequado às exigências da filosofia. O que não acontece, porque compreende a filosofia como filosofia cristã, i. é, teologia.

Surge assim uma pergunta: por que ensinar a filosofia na formação intelectual clerical? Por que não ensinar só a teologia, plenamente, profundamente, exclusivamente, como um grande e completo saber, sem acrescentar filosofia e ciências num nível tão provisório, instrumentalizado, a modo de mundividências? Por que estudar filosofia e ciências, se o que ali é ministrado não é mais nem filosofia nem ciências, mas sim “preparados” com aparência de filosofia e ciências, para servir de não sei o que para a formação teológica do clero? Por que a própria teologia não assume interpretações e informações “ajeitadas” da filosofia e das ciências a seu modo para a teologia, para ministrar a seus alunos como teologia? Por que recorrer à filosofia e às ciências, se já de antemão, no modo de ser da “sacra doctrina”, a partir da sua colocação, a teologia não pode aceitar as exigências da plena e absoluta autonomia das pesquisas filosóficas e científicas?

Assim, as mais recentes recomendações dos últimos documentos eclesiásticos acerca da formação intelectual do clero, de que se tome a sério cientificamente o estudo da filosofia e que se ministre a teologia e a filosofia distinguindo nitidamente, no ensino, a diferença destas duas matérias, ou soam como meras retóricas curiais ou como sintomas da falta de rigor e precisão na compreensão do que a nova consciência científica compreende por essência da filosofia e das ciências. Ou será que, apesar de toda essa aparência, esse modo de ver e falar pensa uma outra coisa e tem plena razão?

Vamos abordar brevemente o ponto nevrálgico da questão. Segundo a nova consciência científica na autocompreensão da filosofia e das ciências, hoje, a filosofia, segundo a compreensão que o ensino da teologia tem da filosofia, não é filosofia, mas sim mundividência. Por isso, se a filosofia quiser dar o melhor de si à formação intelectual do clero, não pode ser ensinada num sistema assim, porque não pode, sem perder inteiramente a sua identidade, corresponder à expectativa do ensino clerical. Mas, se apesar de tudo, for ensinada, não como mundividência, mas na precisão e no rigor da sua “cientificidade”, ou permanece paralela à teologia, ou será considerada por ela como sua destruição. Com outras palavras, quanto mais a teologia e a filosofia quiserem permanecer fiéis à sua identidade, tanto mais parecem ser irredutíveis uma à outra, de tal sorte que pensar numa síntese, complementação ou coisas similares, se torna um sinal do desconhecimento da questão.

E, no entanto, exatamente nesse impasse, onde começa a aparecer uma fenda irredutível entre a teologia e a filosofia, naquele sistema coeso e unitário do ensino teológico-“filosófico” eclesiástico tradicionalista escolástico, parece começar a  se insinuar uma solução! Uma solução que não apaga os contornos das diferenças, não facilita o diálogo aparente superficial, mas exige o máximo na precisão e no rigor em manter-se limpidamente atinente, cada qual à sua identidade profunda e originária. E a partir dessa insinuação de uma possível solução, talvez possamos entender as recomendações de colorido “neo-escolástico e escolástico” dos documentos eclesiásticos, num sentido mais profundo, em referência a nossa formação intelectual. Mas como? e em que sentido?

Explicitando melhor, repitamos aqui numa forma esquemática a compreensão de filosofia, dada pela nova consciência científica, compreensão esta já mencionada item 4 acima.

  1. a) As ciências são um conjunto ordenado de conhecimentos, na mútua implicação e fundação, construído como um todo cada vez mais crescente, sobre e a partir de uma experiência imediata, no uso e da vida, do existir humano, chamada Lebenswelt. A inesgotável e insondável imensidão do abismo da possibilidade pulsante do ser aparece, cada vez em concreto, como Lebenswelt. Como Lebenswelt, i. é, como mundo-circundante, que somos nós mesmos, cada vez em sendo no uso e na vida, tematizamos um setor, uma incisão, um átimo, uma área, uma região ou um campo dessa imensidão, para fazermos deste campo destacado o horizonte dentro e a partir do qual vamos explicitando, segundo a lógica desse horizonte, as implicações ali prejacentes como possibilidades – o positum de uma ciência –, construindo um conjunto coeso de conhecimentos, a partir dos princípios, conceitos fundamentais e do modo de proceder, oferecidos por esse campo.
  2. b) Esse movimento construtivo, com toda a sua estruturação materializada como conhecimentos, métodos, instituições, ensino, pesquisas etc. etc. perfaz a constituição, a concreção externa, digamos, exotérica (i. é, virada para fora) das ciências. Os conteúdos de uma ciência, como conjunto de conhecimentos transmissíveis, pertencem a essa parte exotérica das ciências.

É no processo dessa construção positiva, nos trâmites de seus passos de explicitações que podem surgir desvios, defasagens, extrapolações, insuficiências na diferenciação, esquecimentos da lógica do horizonte, mistura indevida de horizontes etc. etc. Essas defasagens, às quais o processo de construção de uma ciência está continuamente exposta, transformam a ciência em ideologias, mundividências, com os seus inúmeros dogmatismos, conhecidos sob diferentes títulos, que trazem em geral a terminação “-ismo”, como p. ex. naturalismo, positivismo, racionalismo, historicismo etc.

  1. c) O modo como se processa esse movimento exotérico (i. é, virado para fora) da construção das ciências, na sua pluriformidade e pluridimensionalidade e seus mútuos relacionamentos, está resumido nos pontos já mencionados no n. 3.
  2. d) Pertence essencialmente à ciência a consciência crítica da sua cientificidade. Essa consciência crítica não é mais a fixação referencial à idéia unidimensional da ciência da teoria ingênua das ciências como foi descrita no n. 3, mas sim a limpidez, a precisão, o pulso certeiro de sondagem da lógica implícita no positum de cada campo, dentro e a partir do qual as ciências recebem a possibilidade de sua construção. Esse movimento de sondagem e ausculta para a raiz-horizonte de uma ciência, portanto, esse movimento de recondução ou re-dução da construção a seus princípios, a sua fundamentação, as suas pressuposições fundamentais, é um movimento contrário ao movimento da construção, é um movimento virado para dentro, i. é esotérico, movimento para a profundidade, para a interioridade de uma ciência. É desse movimento que depende, se a construção de uma ciência se processa como ciência verdadeira ou não. É esse movimento que mantém o vigor, a precisão e a vitalidade de uma ciência, é dele que depende a cientificidade de uma ciência.
  3. e) Os grandes progressos revolucionários de uma ciência não se dão na parte exotérico-construtiva, embora na publicidade, as novidades e as descobertas espetaculares nessa parte das ciências sejam celebradas como progressos revolucionários de uma ciência. O autêntico progresso revolucionário de uma ciência se dá, quando, devido a uma sondagem de penetração e ausculta do positum do horizonte, dentro e a partir do qual a ciência levanta a sua construção, acontece uma recolocação do campo para dentro de uma Lebenswelt mais profunda, mais rica e mais abrangente, operando uma mudança dos conceitos fundamentais de uma ciência, possibilitando e provocando a revisão de toda a construção, a partir e dentro de um horizonte mais profundo, mais vasto e originário.
  4. f) Esse movimento de redução na ausculta da possibilidade prejacente no horizonte de uma ciência não tem conteúdo. Não constitui, portanto, conhecimento do tipo conteúdos e saber como o tem a parte exotérica das ciências. É movimento, dinâmica de penetração, sondagem, ausculta, é a dinâmica de precisão e sensibilidade no ler entre linhas, i. é, do intelecto.
  5. g) Por não ser conteúdo, não está delimitado a um determinado saber ou conhecimento. Ele nada tem, nada sabe de antemão, a tudo examina, a tudo aborda, sondando o sentido das pressuposições, inclusive e principalmente das suas próprias investigações, que podem se depositar como conteúdos.
  6. h) Esse duplo movimento caracteriza a cientificidade de uma ciência. Esse duplo movimento, nas suas respectivas polaridades, apresenta o seu modo próprio de se processar, algo como movimento centrifugal e centripetal de um redemoinho espiral. Quanto mais o movimento positivo da construção alarga o seu âmbito e cresce, tanto mais o movimento de recondução à profundidade da Lebenswelt deve se centrar na sondagem do sentido, que se desvela a partir da imensidão abissal do ser.
  7. i) Como dissemos acima no n. 3, esse movimento que se dirige à profundidade radical do abismo desvelante das Lebenswelten e que caracteriza a nova ciência e a faz distinguir de ideologia e mundividência, agora levado a últimas consequências e radicalização e tematicamente buscado, constitui o movimento, a dinâmica da filosofia. Tentemos, por assim dizer, aplicar tudo isso que dissemos acima, à filosofia, para termos com maior clareza, o que a filosofia hoje pensa para si mesma como a sua identidade.

Reflexão 10: A finitude, a pobreza da filosofia

  1. a) Na filosofia, propriamente não se tem conteúdos. Tudo que ali aparece como conteúdos, p. ex., explicações, argumentos, descrições da realidade, termos, conceitos, são materiais do exercício da colocação das questões, que no fundo, são um único empenho e intrépido movimento de, em sondando e auscultando, buscar o sentido do ser, que emerge nas Lebenswelten, da imensidão abissal do ser. E o sentido do ser não é nenhum conteúdo determinado, mas sim um desvelar-se do abismo da serenidade do nada, que afeiçoa cada vez mais a nossa busca, a sabermos cada vez menos, a fim de nos dispormos cada vez mais, a melhor ouvir, a melhor auscultar e a melhor receber as novas possibilidades de ser, emergentes dessa plenitude abissal do nada. Essa busca, quanto mais busca, tanto mais se torna pura disponibilidade da espera auscultaste do inesperado, na total pobreza do saber, na plenitude do vazio de uma recepção atenta, na vulnerabilidade da finitude alegre e grata.
  2. b) É esse não-saber, como a disposição de ausculta do fundo, que dissolve e faz permeável o fundo de uma ciência, i. é, o seu horizonte fundante, dentro e a partir do qual uma ciência levanta o seu edifício, possibilitando-lhe uma fundamentação mais profunda e mais vasta, uma radicalização nos níveis e nas dimensões mais originárias do ser, abrindo assim à ciência novos horizontes.
  3. c) A filosofia, propriamente não apresenta nenhum conteúdo, mas se avia cada vez à ausculta e ao aprofundamento nos abismos do sentido do ser, no permeio dos conteúdos das ciências, hoje. Não somente no permeio dos conteúdos das ciências, mas também junto de todo e qualquer conteúdo da existência, hoje, ontem, amanhã, aqui, lá, cada vez, onde o empenho da busca se concretiza, a partir e dentro de um determinado horizonte da Lebenswelt. Por isso, ela toma diferentes formas de aparecimento, constituindo variegadas e infindas modalidades de “filosofias”, que povoam os manuais da história da filosofia.
  4. d) Quando a filosofia é tomada na sua forma de aparecimento exotérico e usada como conteúdos de saber, opiniões, doutrinas, sabedoria, experiências, ciências, ideologias, expressões culturais etc., ela como filosofia se retrai, e o que temos à mão são mundividências de um ou mais sujeitos ou de certa época da história.
  5. e) Se no ensino da filosofia quizermos ter encontro com a filosofia ela mesma, é necessário intuir e captar o movimento de descida à interioridade radical do abismo do sentido do ser, que a filosofia, enquanto ela mesma, efetua cada vez no permeio das “filosofias”.
  6. f) Essa intuição e captação do movimento radical da filosofia, enquanto filosofia, no permeio das “filosofias” e das vicissitudes da existência humana, se chama ontologia, i. é, ciência do sentido do ser, ou questão do sentido do ser.

Questão ou busca do sentido do ser, a ontologia, é o mover-se da busca e não uma disciplina. Mas ela pode se estabelecer como disciplina. Nesse caso, participa da mesma ambiguidade, que inere às “filosofias” como mundividências.

  1. g) Como ontologia ou questão do sentido do ser, a filosofia é sempre e em toda a parte, i. é, cada vez, em concreto, sempre de novo e sempre nova a mesma (não igual!). Como tal não há nem filosofia antiga, medieval, moderna ou contemporânea.
  2. h) Aqui sempre a mesma não significa absoluta, imutável, definitiva, perene. Mas sim, sempre na disponibilidade finita do frescor da vulnerabilidade pelo sentido surgente do ser. Como tal, esse movimento ontológico deve ser exercitado e apreendido cada vez no permeio de um ou mais concreções históricas das vicissitudes do empenho da existência humana.

O equívoco da filosofia perene é de entender o “sempre a mesma” no sentido do absoluto e eterno infinito e não no sentido do cada vez nova e de novo na disponibilidade finita. E o equívoco do relativismo, do historicismo é de entender esse “cada vez nova e de novo” no sentido de negação do infinito. A negação do infinito não faz nascer a dinâmica e a novidade da finitude. Pelo contrário, estraçalha o infinito em indefinidos pedaços iguais da infinitude do agora, agora, agora, agora.

  1. i) No ensino da filosofia, amontoar informações sobre a filosofia, tomada como “filosofias” não possibilita a captação da essência da filosofia como ontologia, no sentido acima insinuado. O mesmo se deve dizer de uma especialização numa única “filosofia” com todos os detalhes históricos e temáticos sobre ela. O decisivo aqui é, em conhecendo bem a estruturação ambígua da filosofia em dois movimentos centrifugal e centripetal, através de um concreto permeio ou de um ou mais filósofos e suas obras, ou de uma ou mais obras de quaisquer áreas da existência humana, como p. ex., religião, arte, ciências, experiências da vida etc., adaptando-se à disposição do tempo de estudo (2, 3, 4, 5 anos etc.), conduzir o formando a amar e assumir o movimento da questão do sentido do ser. Aqui se abre uma pista concreta de como ensinar filosofia na nossa formação intelectual franciscana.
  2. j) Todos os grandes pensadores na filosofia entenderam a essência da filosofia como questão do sentido do ser.
  3. k) A questão do sentido do ser, a disponibilidade atenta da ausculta, na plenitude da espera do inesperado, que constitui a essência da filosofia, não deve ser confundida com vivência “mística” de “passividade” pietista. Antes, é o movimento intenso de trabalho intelectual, i.é, o empenho máximo de, no permeio da materialidade desta ou daquela vicissitude da existência humana (essa obra, esse autor, essa arte, essa questão etc. ), exercitar-se na disponibilidade, que realmente penetre no abismo de profundidade do sentido do ser. Nesse equívoco de identificar a espera do inesperado com a passividade pietista cai o vitalismo, o espontaneísmo, o espiritualismo, eivados de esteticismo. Essa espera do inesperado, na plena atenção no permeio do trabalho árduo e intenso, é antes um labor operário, corpo a corpo com o sentido da vida. Exige engajamento de toda a nossa liberdade, de todo o nosso ser humano.
  4. l) Na linguagem de Kierkegaard, a disponibilidade da espera do inesperado é o estágio ético, levado a sua máxima consumação.

D – A ONTOLOGIA

Reflexão 11: Divisão da filosofia de Christian Wolf e o lugar da ontologia

Reflexão 12: Ontologia como disciplina e como questão do ser.

Reflexão 13: A questão do ser e as ontologias regionais.

Reflexão 14: A questão do ser e as ontologias epocais.

Reflexão 15: A ontologia medieval: uma ilustração de como poderia ser a exposição de uma ontologia epocal.

Reflexão 14: Algumas questões fundamentais da ontologia como questão do ser:

Ser e ente

Ser e existência

Ser e história

Ser e verdade

Ser e dever

Ser e vida

Ser e tudo

E – TEXTO

F – BIBLIOGRAFIA

Questão da ontologia

A palavra existência e similares, como existencialidade, existencial, estão sendo usadas na reflexão no sentido da fenomenologia de Ser e tempo (Martin Heidegger). Indicam o próprio do ser do homem ou da “vida humana”. Em vez de o próprio de o ser do homem, podemos também dizer o ontologicum do humano. Geralmente, quando diferenciamos o ser do homem, do ser de outros entes não-humanos, marcamos certamente a diferença entre ente e ente, mas não “entre” o ser do ente humano e o ser do ente não-humano. Com outras palavras, não tematizamos a diferença ontológica, mas apenas a ôntica. A palavra existência e seus derivados, no seu uso específico fenomenológico, indica de imediato o próprio do homem, no sentido da diferença ôntica, mas ao mesmo tempo, acena também para a diferença ontológica i. é, a diferença que se dá no sentido do ser, ao pensarmos com maior precisão o ser do homem e não o homem como ente. O grande desafio em se manter na tematização da diferença ontológica é a de não representar a diferença ‘entre’ ser e ser como se fosse uma diferença a modo da distinção entre ente e ente. A diferença ontológica só vem à fala se, em se operando bem a diferença ôntica e marcando na mira de nossa atenção a diferença entre ente e ente, divisarmos numa ‘mira’, digamos, oblíqua a dinâmica do in-stante do lance livre da totalidade que se estrutura como mundo. É nesse surgir do mundo, nesse “intus” “ire” como ser-no-mundo, que nos mira nesse in-stante o sentido do ser na sua criatividade cada vez nova e gratuita. O ente que tem como o seu próprio o apanágio de ser clareira do desvelamento do sentido do ser se chama homem, não mais entendido como substância ou sujeito, mas sim como a responsabilidade livre e criativa pelo sentido do ser: é existência.

Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Sentido, propriamente, pouco tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente, indica os 5 sentidos, que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas, sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências, está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente por um “anterior”, para que se receba. Mas aqui não se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si, e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo. Trata-se, portanto, não de fato, mas sim de operação ou ato nos seus momentos.

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