(Grande Sinal, XXVIII, 1974, 323-339)
O título A virgindade consagrada: o problema do celibato? indica tão-somente a perplexidade dessa reflexão. Pois, a reflexão não sabe por que e o que interrogar, ao se colocar o problema do celibato em referência à virgindade consagrada.
As considerações mal formuladas que seguem não passam de articulações imprecisas e fragmentárias dessa perplexidade: em que consiste afinal a coisa, isto é, a causa da virgindade consagrada que se coloca como o problema do celibato?
1 [Primeira reflexão]
- Perguntamos, hoje, o celibato tem ainda sentido ou não? Há razões prós e contras. Mas o que se entende por celibato?
O celibato do sacerdote secular, o celibato do sacerdote religioso, do religioso leigo, da religiosa. O celibato sob o aspecto jurídico, sob o aspecto sociológico, psicológico, biológico, fisiológico, religioso, antropológico, teológico, pedagógico, humano, místico etc. Em todas essas colocações, a palavra celibato diz sempre a mesma coisa?
- O sujeito do celibato são sacerdotes seculares e sacerdotes religiosos, religiosos leigos e religiosas. Um grupo de indivíduos juridicamente bem determinado. O indivíduo que pertence a esse grupo tem uma coisa que os outros não tem: o celibato. O que é essa coisa especial que o indivíduo celibatário tem? Se é ele, tem a peculiaridade de não ter uma mulher como esposa. Se é ela, a peculiaridade de não ter um homem como marido. Tem, portanto, o característico de não contrair matrimônio.
O que significa, porém, mais estritamente não contrair matrimônio? Significa não ter relação sexual corporal com o indivíduo de sexo oposto, juridicamente sancionada sob o nome de matrimônio. O núcleo dessa coisa chamada celibato pode ser, pois, reduzido ao não ter relação sexual corporal com o outro sexo. O celibato é, portanto, a abstenção da relação sexual corporal com o outro sexo. Mas só isso não basta para receber o nome de celibato. A abstenção deve ser sancionada, assegurada juridicamente por uma sociedade, no nosso caso, pela Igreja.
- Celibato é a abstenção do sexo, sancionada pela Igreja. Uma definição unilateral, simplória, material. O celibato não é só isso. É muito mais. É um todo complexo de aspectos e implicações.
Mas o que é essa coisa chamada “um todo complexo de aspectos e implicações”? O aspecto psicológico, sociológico, fisiológico, jurídico, religioso do celibato; a implicação psicológica, sociológica, fisiológica, jurídica, religiosa do celibato. O celibato, essa coisa que tem todos esses aspectos e todas essas implicações: o que é? O que é o subiectum, isto é, aquilo que está debaixo de todos os aspectos, de todas as implicações, como o núcleo comum a todos eles? Não é a abstenção da relação sexual corporal com o outro sexo? A sanção jurídica, acima mencionada, já é um aspecto.
Portanto, o que constitui o núcleo material objetivo do celibato é o estado físico, proveniente da abstenção da relação sexual corporal com o outro sexo: a virgindade física. Os diversos aspectos são pontos de vista, diferentes enfoques, interpretações, a partir e dentro dos quais consideramos esse fato material. As implicações são as possibilidades implícitas nesses pontos de vista.
- Mas por que dizer o estado físico proveniente da abstenção da relação sexual corporal com o outro sexo? O acréscimo “com o outro sexo” não indica que o fato material chamado virgindade física já é o produto de um ponto de vista, de uma interpretação? Sob o aspecto meramente físico material, que diferença há entre a abstenção da relação homossexual ou da heterossexual ou mesmo das diversas formas corporais de auto-satisfação e das sensações corporais? Nessa linha de consideração, o que resta por fim como o puro fato material objetivo do celibato é apenas … o quê? O corpo físico casto? Mas “o corpo físico casto” já não é a expressão de um ponto de vista? Sob o aspecto meramente físico material o corpo não são moléculas e átomos ou coisa semelhante? Podemos dizer por acaso que a molécula é casta? Mas também as moléculas e os átomos não são objetos do ponto de vista da física?
- Dissemos acima “sob o aspecto meramente físico material”. Isto significa que o assim chamado fato meramente físico material já é um aspecto de um ponto de vista, uma interpretação. O que é pois “meramente físico material”?
- Perguntamos, hoje, o celibato tem ainda sentido ou não? Respondemos: sim ou não. Mas antes de responder à pergunta, na própria colocação da pergunta já posicionamos a afirmação: o celibato é uma coisa. Mas não dizemos que o celibato é mais do que uma coisa, um todo complexo de aspectos e implicações? A que se referem os aspectos e as implicações? A que sobrevém esse “mais” acrescentado? Ao perguntar, ao responder, ao afirmar, ao negar, quando usamos o substantivo celibato como o sujeito da sentença, não supomos já de antemão um núcleo de atribuições, a que chamamos de coisa? Essa coisa é o corpo físico, ao qual atribuímos a abstenção sexual? Não, é anterior, pois lhe atribuímos a corporeidade física. O que é então a coisa, o algo, o quid, o objeto, o ponto básico de todas as atribuições dos aspectos e dos pontos de vistas?
Quando dizemos, o celibato sob o aspecto sociológico, fisiológico, psicológico, religioso, teológico etc., pressupomos como a base e o ponto de convergência de todos os aspectos, esse enigmático algo, a coisa. Mas o próprio algo, a coisa é também aspecto: o aspecto dos aspectos. Estamos assim na situação do macaco que começou a descascar a cebola à busca do caroço e descobriu perplexo que o caroço não passa de última casca…
- O que é pois o celibato? O celibato são seus aspectos. O algo, o quê substantivo que representa a objetividade do celibato é também um aspecto. Donde provêm os aspectos? Do ponto de vista. O ponto de vista depende da posição. Ser-posição é ser sujeito do ponto de vista, a partir do qual os entes se apresentam como objetos do enfoque.
O que é celibato depende da posição do sujeito. O celibato recebe o seu sentido determinado conforme o enfoque da posição do sujeito. Por isso perguntar o que é o celibato equivale a perguntar pela posição do sujeito, a partir da qual o celibato recebe a determinação do seu ser.
- Portanto, o problema do celibato é subjetivo?
Pro-blema vem do verbo grego probâllein. A partícula pro do probâllein significa: diante de, para frente de; mas significa também: a patência, a abertura da possibilidade de manifestação. Ballein significa: lançar, jogar; mas também acertar, ferir.
Probâllein é pois o movimento que no próprio lance do movimento se atinge a si mesmo como jogada perfeita e ao se atingir, se patenteia na possibilidade do seu vigor. Não se atingir, isto é, errar de e a si mesmo é um modo deficiente do probâllein.
Usualmente imaginamos a posição do sujeito como um ponto fixo que constitui a substância do sujeito. Esse sujeito lança o projeto. É uso representar o projeto como uma coisa em si e denominá-lo de objeto. No entanto, esse esquema estático é fixação abstrata do movimento do probâliein. Ele só é a partir da dinâmica do probâllein. Assim, ter ou lançar algo como objeto diante de si e ter-se como o sujeito e o agente do projeto já são produtos da estruturação do probâllein que patenteia a possibilidade do vigor dessa mesma estruturação.
O vigor que constitui a identidade do movimento de estruturação se chama: possibilidade. A patência para e por o envio desse vigor se chama: existência. O problema do celibato é possibilidade da existência. O celibato é existencial.
- O termo existencial é geralmente mal compreendido. Existencial não significa: subjetivo, apenas individual, privativo, vivencial, mas sim: essencial. Essencial é o que perfaz o vigor de identidade que recolhe e instaura os pluriformes pro-blemas do viver numa unidade interior. Essa unidade interior é a abertura, o ex que fundamenta as diferentes posições da vida, inclusive o próprio ser da posição como subjetividade e objetividade. O que dá o sentido às posições, às coisas do nosso fazer, do nosso representar, do nosso sentir é essa abertura. Se entendo essa abertura como subiectum, isto é, como a doação fundante e fundamental da possibilidade do sentido dos entes em seu todo, então o termo subjetivo perde a sua conotação do individual, do privativo para indicar uma questão da identidade essencial que está para além ou melhor para aquém do individual e social, do subjetivo e objetivo, do vivencial e teorético. Assim, o existencial se dá no probâllein constitutivo da posição do sujeito, a partir da qual se articulam os enfoques, os aspectos e as perspectivas.
- Por isso, dizer que o celibato é isso ou aquilo nada diz. O que importa é acolher a referência da abertura existencial, a partir da qual o celibato é colhido na sua identidade originária. O problema do celibato é o questionamento acerca da identidade essencial do nosso viver.
- Perguntar pelo sentido do celibato é perguntar pela identidade essencial do nosso viver. Perguntar pela identidade essencial do nosso viver é deixar-nos questionar pelo sentido do ser que, ao se enviar no nosso viver, concresce e se consuma como obra da vida, constituindo a nossa identidade essencial como história. Na consumação da nossa identidade como obra, o sentido do ser se retrai como silêncio do mistério da liberdade.
- Portanto: perguntar pelo sentido do celibato é perguntar pelo sentido do ser que per-faz e envia o sentido do subiectum da pergunta pelo sentido do celibato.
O celibato não é de antemão como isso ou aquilo. Ele é na medida da concreção do sentido do ser que se historia como obra na consumação do viver celibatário. Por isso o problema do celibato não pode ser colocado como um problema sobre uma coisa existente em si, como um problema comum, objetivo. No entanto dizer que o celibato não se deixa colocar como um problema objetivo e comum não equivale a dizer que o problema do celibato é uma questão individual, subjetiva, privativa. Do fato de uma realidade não ser objetiva e comum não se conclui necessariamente que ela seja individual, subjetiva e privativa. O comum e o individual, o objetivo e o subjetivo são correlativos. Por isso podem ser opostos. O que, porém, instaura a identidade do binômio da correlação, o que possibilita a oposição, transcende os termos da correlação. A recusa do celibato em se deixar colocar como um problema objetivo e comum indica a transcendência da sua colocação. Essa transcendência é a propriedade do fenômeno humano, a existencialidade. Como possibilidade existencial o celibato é cada vez na sua concreção como totalidade, anterior à fixação seja ela objetiva ou subjetiva, comum ou individual. A totalidade existencial não é soma, organização ou ajuntamento de partes. Não é jogo correlativo de funções dentro de um sistema. Não é também um todo concreto individualizado. É antes o lance originário do movimento da história no envio do mistério do ser que, ao se constituir como obra, se abre e se conserva como a possibilidade das totalidades. Esse movimento de abertura das totalidades é propriamente o universal.
- Celibato se refere ao latim caelebs. Caelebs se compõe de cae e lebs. O termo cae deriva do indogermânico qaivelo que no indu antigo é kévalah. Significa: só, próprio, completo, íntegro, todo e inteiriço, per-feito. O termo lebs vem do indogermânico libh e significa: vivendo, vivente. A tendência originária da palavra caelebs parece pois dizer: caelebs é a existência como obra per-feita da vida, o perfectum do viver: o satisfazer-se, o regozijar-se da vida como a propriedade do envio a partir de e para a pura nascividade do ser como viver consumado. Caelebs significa: a solidão perfeita da vida.
- No século VIII, o pintor chinês Wu Tao-tseu terminou a sua derradeira obra: um afresco pintado no muro do palácio imperial. Trabalhou sem pressa, com amor e dedicação, na solidão, ocultando a sua obra. Ao terminar, Wu Tao-tseu chamou o imperador e tirou o véu que cobria o afresco. Diante do imperador se descortinou uma paisagem maravilhosa: montanhas, florestas, imenso céu aberto semeado de nuvens e pássaros e o vale dos mortais.
Wu Tao-tseu disse ao monarca: “Numa caverna ali nas montanhas mora o deus da paisagem. Vinde comigo, eu vos conduzirei. Vamos ao seu encontro, ao encontro da paisagem das paisagens”. E bateu as palmas. Uma gruta se abriu e o artesão entrou nela. Voltou-se para o imperador e lhe acenou. Este quis dizer uma palavra e segui-lo. Mas, de repente, a paisagem e o artista desapareceram. E diante do monarca estava a parede fria, uniforme e vazia, do muro imperial.
O deus da paisagem é o envio da identidade da obra. Abrir-se como montanhas, florestas, céu, nuvens, pássaros e vale, diferenciar-se a partir de e para o envio da identidade como a paisagem per-feita é existência: o viver consumado na solidão perfeita do envio da identidade. A via da identidade perfeita é história. Ela só é na concreção. De fora, a partir da determinação objetiva, a partir das coisas montanhas, florestas, céu, nuvens, pássaros e vale, não há o acesso ao deus da paisagem nem à paisagem das montanhas, das florestas, do céu, das nuvens, dos pássaros e do vale dos mortais. Pois, sem a viagem existencial como concreção da obra na identidade da diferença e na diferença da identidade, só há o muro frio, uniforme e vazio do saber imperialista da objetividade.
- O esquecimento do envio da identidade a partir da qual o celibato recebe o seu sentido e para a qual ele se destina como a obra da solidão perfeita não nos tolhe o olhar para acolher a diferença da identidade do celibato?
2 [Segunda reflexão]
- No cristianismo a perfeição da vida se chama o amor de Deus do Evangelho. O país do amor de Deus do Evangelho é o reino dos céus. O celibato cristão é o não-matrimônio por causa do reino dos céus. O amor de Deus do Evangelho, o vigor instaurante do reino dos céus, no entanto, é a jovialidade da cruz. A identidade do celibato cristão está pois na jovialidade da cruz.
- Existe uma velha legenda medieval que fala da jovialidade da cruz. A leitura do texto e o seu comentário são apenas sugestões para nos deixarmos questionar pela causa do celibato acerca do problema do celibato.
- Do aceno de São Francisco de Assis a Frei Leão que a perfeita alegria somente se encontra na cruz.
Vindo uma vez São Francisco de Perusa para Santa Maria dos Anjos com Frei Leão, em tempo de inverno, e o grandíssimo frio fortemente o atormentasse, chamou Frei Leão, o qual ia mais à frente, e disse assim: Irmão Leão, ainda que o frade menor desse na terra inteira grande exemplo de santidade e de boa edificação, escreve todavia, e nota diligentemente que nisso não está a perfeita alegria. E andando um pouco mais, chama pela segunda vez: Ó Irmão Leão, ainda que o frade menor desse vista aos cegos; curasse os paralíticos, expulsasse os demônios, fizesse surdos ouvirem e andarem coxos, falarem mudos, e mais ainda, ressuscitasse mortos de quatro dias, escreve que nisso não está a perfeita alegria. E andando um pouco, São Francisco gritou com força: Ó Irmão Leão, se o frade menor soubesse todas as línguas e todas as ciências e todas as escrituras e se soubesse profetizar e revelar não só as coisas futuras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos espíritos, escreve que não está nisso a perfeita alegria. Andando um pouco além, São Francisco chama ainda com força: Ó Irmão Leão, ovelhinha de Deus, ainda que o frade menor falasse com língua de anjo e soubesse o curso das estrelas e as virtudes das ervas; e lhe fossem revelados todos os tesouros da terra e conhecesse as virtudes dos pássaros e dos peixes e de todos os animais e dos homens e das árvores e das pedras e das raízes e das águas, escreve que não está nisso a perfeita alegria. E caminhando um pouco, São Francisco chamou em alta voz: Ó Irmão Leão, ainda que o frade menor soubesse pregar tão bem que convertesse todos os infiéis à fé cristã, escreve que não está nisso a perfeita alegria. E durando este modo de falar pelo espaço de duas milhas, Frei Leão, com grande admiração, perguntou-lhe e disse: Pai, peço-te, da parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria. E São Francisco assim lhe respondeu: Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento, e o porteiro chegar irritado e disser: Quem são vocês? E nós dissermos: Somos dois dos vossos irmãos; e ele disser: Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres, fora daqui; e não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva com frio e fome até à noite: então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele e pensarmos humildemente e caritativamente que o porteiro verdadeiramente nos tinha reconhecido e que Deus o fez falar contra nós: ó Irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria. E se perseverarmos a bater, e ele sair furioso e como a importunos malandros nos expulsar com vilanias e bofetadas dizendo: Fora daqui, ladrõezinhos vis, vão para o hospício, porque aqui ninguém lhes dará comida nem cama; se suportarmos isso pacientemente e com alegria e de bom coração, ó Irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria. E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio e pela noite, batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos deixe entrar, e se ele mais escandalizado disser: Vagabundos importunos, pagar-lhes-ei como merecem: e sair com um bastão nodoso e nos agarrar pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater com o pau de nó em nó: se nós suportarmos todas estas coisas pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo bendito, as quais devemos suportar por seu amor; ó Irmão Leão, escreve que aí e nisso está a perfeita alegria, e ouve, pois, a conclusão, Irmão Leão. Acima de todas as graças e de todos os dons do Espírito Santo, os quais Cristo concede aos amigos, será o de vencer-se a si mesmo, e voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e desprezos, porque de todos os outros dons de Deus não nos podemos gloriar por não serem nossos, mas de Deus, do que diz o Apóstolo: Que tens tu que não hajas recebido de Deus? e se dele o recebeste, por que te gloriares como se o tivesses de ti? Mas na cruz da tribulação de cada aflição nós nos podemos gloriar, porque “isso é nosso” e assim diz o Apóstolo: “Não me quero gloriar, senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Ao qual sejam dadas honra e glória in secula seculorum. Amém (Silveira, 1983, p.1095-9).
- São Francisco, o fundador da Ordem e Frei Leão, um dos seus seguidores mais próximos vão a Santa Maria dos Anjos. Santa Maria dos Anjos é o berço da Ordem, o lar, onde reside o memorial mais íntimo, o aconchego originário do mistério da Ordem. São Francisco e Frei Leão voltam ao seu próprio lar. Mas os habitantes desse lar não conhecem seus próprios familiares, o seu progenitor e seu irmão, porque estes aparecem tão pobres, diferentes dos seus familiares. Francisco, a origem, volta à sua própria origem e lá se apresenta na sua mais pura originalidade como o mais íntimo da família que sabe à pobreza inicial. Mas não é reconhecido como pertinente à origem, ao lar. Assim o pai e o filho primordial são expelidos do seu próprio lar e enviados para o hospício dos leprosos, o lugar onde principiou a história de São Francisco, onde Francisco foi colhido pelo mistério do servo leproso de Javé (Is 53,1-15), cujo toque everteu o seu saber, a ponto de ser a doçura do seu vigor, o que antes lhe era amargor (Testamento de São Francisco).
- Francisco e Leão voltam para casa. Famintos, sujos, congelados pelo frio da caminhada hibernal. Em casa não os recebem por não os reconhecerem. Expulsam-nos como marginais e dão-lhes uma violenta surra, no frio da noite, sobre a neve lamacenta da estrada. E a legenda nos diz: o porteiro, verdadeiramente nos tinha reconhecido… mas Deus o fez falar contra nós.
Que o irmão porteiro não reconheça a Francisco e a Leão por engano é possível. Que o irmão porteiro não reconheça a Francisco e a Leão por maldade é possível. Mas que Deus não reconheça a Francisco e a Leão… O que significa essa rejeição de Deus?
Francisco e Leão vivem austeramente a pobreza. Tão austeramente que eles são em carne e osso o corpo da abnegação. Por causa da radicalidade da abnegação se tornam irreconhecíveis aos seus irmãos. O mordente da sua austeridade é corrosivo e ameaça a vida da fraternidade. São excluídos do convívio familiar. Francisco e Leão, no entanto, podem se apoiar em Deus e dizer: os irmãos são instrumentos na mão de Deus. Deus está nos provando, nos purificando para que alcancemos maior perfeição na autenticidade da abnegação. Ele nos permite tal situação para que possamos copiar literalmente a seu Filho crucificado. Ao sermos colocados na situação do Crucificado, somos autênticos, verdadeiramente abnegados e assim podemos nos gloriar na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Mas o que é essa abnegação que os dispõe a gloriar-se da cruz de Jesus Cristo? A própria abnegação da cruz de Jesus Cristo. Mas o que per-faz a abnegação da cruz?
A rejeição da cruz por Deus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). A cruz é o abandono da própria cruz por Deus, a condenação, a fala de Deus contra nós.
- Como pode tal aniquilação da aniquilação ser perfeita alegria?
Aniquilação, exinanição, sacrifício, humilhação, castigo, condenação, abandono: a abnegação. A inclinação do nosso ouvido não consegue senão colher na palavra cruz essas ressonâncias da negatividade. Na própria tentativa de superar a negatividade por meio do apelo a uma instância positiva superior “Deus”, confessamos a impossibilidade de acolher a cruz como perfeita alegria: a cruz como abnegação não tem sentido em si, ela está em função de um algo diferente dela: da positividade que elimina a negatividade; o amargor da cruz continua amargo: na superação ele é simplesmente excluído da doçura.
Mas aceitar o amargor da cruz como doçura não é o mais requintado “masoquismo”? A perfeita alegria é perder-se no deleite da total aniquilação passiva, nihilista?
O masoquismo, no entanto, é a derradeira tentativa de fechar-se à perfeita alegria da cruz. Ao declarar o negativo como positivo, o masoquismo exacerba a dominação da medida valorativa que comanda a oposição, impossibilitando a colocação da questão essencial acerca do envio radical dessa própria medida constitutiva do valor. Assim, a consumação nadificante da cruz como nada se retrai, se vela na sua essência como absurdo. Nesse absurdo está a cruz.
- O que perfaz o absurdo da cruz? A própria impossibilidade de se colocar a questão essencial acerca do envio radical de si mesmo.
Essa impossibilidade não é, porém, uma impossibilidade oposta ou ao lado da possibilidade, para além dela mesma: é antes a impossibilidade da impossibilidade. Enquanto o Crucificado pode justificar a sua abnegação como a realização da vontade de Deus, pode se valorizar a partir de uma instância positiva e última, dando à sua abnegação um porquê e um para quê. Mas no abandono do abandono, lhe é tirado o derradeiro fundamento justificativo do porquê e para que da abnegação. Abandonada em si mesma, a abnegação do Crucificado é o puro querer do seu querer. Na ausência absoluta de uma motivação fora de si mesmo, o querer do Crucificado pode dizer: Meu Deus, eu te quero, não porque tu és bom, mas porque eu quero o querer do meu querer.
A abnegação da cruz é, pois, a autonomia do querer: a suprema exacerbação da autojustificação; a vontade do poder e o poder da vontade: a vontade de Deus e o Deus da vontade.
- No in-stante crucial dessa afirmação radical da vontade, no entanto, se dá o abandono: a vontade se desvela como a radical impossibilidade de se abandonar como a bondade da gratuidade na gratuidade da bondade. Na abnegação da cruz, a vontade própria se consuma no seu poder de autojustifícação como a autonomia suprema do eu da subjetividade. Ao se consumar, o poder da vontade vem a si mesmo como o limite e a plenitude do asseguramento do seu próprio, isto é, da sua essência. O desvelamento da vontade própria como a consumação do eu da subjetividade se dá como: a vontade de Deus. Vontade de Deus é a consumação da vontade própria. A consumação é plenitude como limite. Mas o limite da vontade própria é o silêncio do retraimento da gratuidade na bondade do seu mistério. Na suprema potencialização da vontade própria, na cruz, o eu da subjetividade se dis-põe a ser ferido pelo toque da bondade da gratuidade. Essa disposição como o limite é o ponto crucial da cruz de Jesus Cristo. Ali se dá o abandono da autosegurança e da autojustificação, o abandono da vontade própria à fluência nasciva do retraimento do mistério, como o recolhimento e a acolhida da gratuidade. A perfeita alegria é ao sabor da nascividade desse retraimento.
- O retraimento do mistério como gratuidade vem à fala como a pureza da vitalidade na nascividade de ser: a perfeita alegria. A perfeita alegria é jovialidade.
Não é possível dizer o que é a jovialidade. Por isso, com o risco de nada dizer, ao dizer de mais, deixemo-nos referir ao aceno de Angelus Silesius (Johann Scheffler, 1624-1677) que fala a partir da jovialidade: “A rosa é sem porquê. Floresce ao florescer”.
A rosa sem porquê no orvalho matinal: a alegria acolhe o coração do mortal, no frescor, na claridade natal da inocência original. O mortal descansa, respira livre, se regozija e renasce, na cercania da rosa, porque se recolhe e é acolhido no recato da natureza. A natureza da rosa de Angelus Silesius não é uma região do ente em oposição ao homem. É a nascividade, a liberdade do mistério que evoca o homem para a sua essência. É a própria vigência da presença que se abre como o frescor, a limpidez, a transparência e a graça de todas as coisas. É à mercê da liberdade do mistério que é o amor, a ternura, a benignidade, a paz, o bem, o rigor, a coragem, a sinceridade, a simplicidade. A liberdade do mistério, a nascividade é a jovialidade.
A jovialidade é paciente, é benigna, ela não é invejosa, a jovialidade não é jactanciosa, não se ensoberbece. Não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não guarda rancor: tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo tolera (1Cor 13,4-7).
- É a jovialidade, o aceno da gratuidade, a referência do mistério que perfaz a presença de Deus. Presença de Deus que o cristianismo chamou de vontade do Pai, ocultando na ambigüidade da sua fala subjetiva a própria essência da presença que é o retraimento da gratuidade. Se é assim, a vontade do Pai, a que Jesus Cristo foi ob-audiente até a morte de cruz, a vigência de Deus é a rosa sem porquê. O seu poder não é o poder de dominação, a vontade do poder, mas a presença acolhedora da gratuidade que tudo liberta, tudo vivifica, na ternura, no vigor, no recato da sua jovialidade. Por isso, ao se dar na liberdade não humilha, não se gloria, não se posiciona, não domina o agraciado, não é doador superior, mas ao se dar, se retrai na simplicidade do pudor, qual um servo para com o seu senhor. Confira A regra definitiva da Ordem dos Frades Menores, n. 10 (Silveira, 1983, p. 137-8 ).
- A regência da sua dominação é a autofidelidade da nascividade na inocência da liberdade que se expõe sem nenhuma defesa, no abandono à fluência da gratuidade. Esse auto-abandono da liberdade é o poder do mistério, a sua identidade: ao se expor, se retrai sempre novo, se oculta no recato da identidade do mistério: no silêncio desse retraimento o mistério é ele mesmo e nada mais, a solidão perfeita da vida. Essa solidão, porém, é o poder, isto é, a possibilidade da vida. Ao se retrair na autofidelidade a si mesmo, o mistério se doa inesgotavelmente como exposição do ser, em cujo envio tudo é como vida.
- A liberdade do envio da vida no retrair-se sempre nascivo do mistério é a solidão perfeita da identidade do mistério. Essa solidão é o satis-fazer-se do mistério na obra perfeita da vida: o envio do ser em cadências de suas diferenciações. O retrair-se do mistério na sua identidade e o envio do ser na obra perfeita da vida como cadências de diferenças é a jovialidade de ser, a perfeita alegria.
A cruz de Jesus Cristo é a acolhida e a colheita dessa jovialidade. E a essência da existência do celibato cristão está na acolhida e na colheita da perfeita alegria da cruz de Jesus Cristo.
- O celibato cristão é o não-matrimônio por causa do reino dos céus. O vigor instaurante do reino dos céus é o amor de Deus do Evangelho. O amor de Deus do Evangelho é a jovialidade da cruz. A causa portanto do celibato cristão é o envio do mistério na acolhida e na colheita da jovialidade da cruz.
3 [Terceira reflexão]
- Mas por que o não-matrimônio? A essência do matrimônio cristão não é também a jovialidade da cruz? Como, pois, justificar a diferença, o não-matrimônio contra o matrimônio?
31. Naquele tempo, um monge bateu às portas de um mosteiro budista. O mestre lhe perguntou:
– Já estiveste aqui?
– Não, respondeu o forasteiro.
O mestre lhe disse:
– Bebe uma xícara de chá.
Um leigo se apresentou ao mestre. Este lhe perguntou:
– Já estiveste aqui?
– Sim, respondeu o leigo que era um assíduo freqüentador do mosteiro.
O mestre lhe disse:
– Bebe uma xícara de chá.
O discípulo perguntou ao mestre:
– Como é possível responder a mesma coisa ao estrangeiro e ao familiar? ao monge e ao leigo?
O mestre lhe disse:
– Bebe uma xícara de chá.
- Como é possível que o não-matrimônio e o sim-matrimônio tenham um igual fundamento na jovialidade da cruz? Onde está a diferença entre a existência celibatária e a existência matrimonial? Por que então não ir a via do matrimônio, se me conduz ao mesmo fim?
- A pergunta já vem tarde. Vem de uma posição, na qual se torna impossível colocar a questão essencial da identidade na diferença e da diferença na identidade. Pois, a pergunta já posicionou a identidade como igualdade e a diferença como determinação específica dessa igualdade. Essa posição pressupõe uma determinada compreensão do sentido do ser.
- O envio do sentido do ser que instaura a dominação da igualdade se dá como a abnegação do mistério. Essa abnegação aciona o desencadear-se do problema do celibato como o projeto do autoasseguramento de um modo de ser chamado subjetividade. Pertence ao modo de ser da subjetividade a objetividade. Objetividade é o horizonte da possibilidade dentro do qual os entes aparecem e são conservados sob o poder da subjetividade. A subjetividade exerce o seu poder, unificando tudo sob o índice da igualdade. Esse índice comum é o algo, a coisa, o objeto. O resultado da tentativa de diferenciação sob o domínio do índice da igualdade são os enfoques, os aspectos, as perspectivas, as implicações da coisa. Essa tentativa de diferenciação, no entanto, somente consegue fixar divisões e subdivisões dentro do horizonte já preestabelecido pelo ser da subjetividade. O modo de ser da subjetividade não pode deixar ser as diferenças a não ser dentro do limite do sentido do ser a ele destinado.
Em que consiste o sentido do ser destinado à subjetividade?
Consiste na posse e no domínio da subjetividade, de si mesma, como a certeza de autodeterminação: na autonomia.
Na autonomia a subjetividade tenta fundamentar-se a si mesma a partir de si. A consumação dessa autofundamentação é o querer do seu querer: a vontade do poder. A vontade do poder elimina tudo quanto transcende o âmbito do seu poder, reduzindo-o ao objeto do seu controle e do seu saber. Assim, não deixa o outro ser outro. Não somente isso, não deixa a diferença ser diferença, pois a transforma numa determinação da igualdade do seu horizonte. Com isso, o sentido da identidade se oculta sob o índice do comum, do geral, do igual. Identidade significa então base comum, generalidade, igualdade. Surge assim a pergunta: como podem duas coisas iguais serem diferentes? A identidade da igualdade é, porém, a certeza de fixação. As determinações dessa igualdade são, por sua vez, fixações da fixação.
A fixação denuncia a impossibilidade de acolher e conservar a vida no movimento da sua nascividade.
- A identidade e diferença só é na identidade da diferença e na diferença da identidade como o movimento consumado da concreção. A resposta do mestre budista “bebe uma xícara de chá” diz o uno e o mesmo: o envio da consumação do mistério na concreção que per-faz a diferença da identidade e a identidade da diferença como a história do forasteiro, do familiar e do discípulo. O uno e o mesmo é sempre idêntico em ser cada vez a identidade da diferença na concreção. O uno e o mesmo como identidade se desvela como a jovialidade da obra consumada na concreção: a jovialidade da diferença. Mas, ao se revelar como a jovialidade da obra, como o perfectum da diferença, se retrai como a gratuidade inesgotável da identidade do mistério.
- Assim, a pergunta pela essência do celibato, mas também do matrimônio, não pode ser colocada a partir e dentro do horizonte da subjetividade.
Enquanto o problema do celibato for o objeto do problema da subjetividade, não está no elemento do seu problema. Não passa do projeto do ser da subjetividade e só pode re-presentar a impossibilidade de a subjetividade se colocar a questão essencial acerca da identidade da cristidade em suas diferentes concreções.
- Essa impossibilidade, porém, só é na consumação da dominação da subjetividade. Consumação é a suprema potencialização. A suprema potencialização da subjetividade como a vontade do poder é a abnegação. Abnegação é a afirmação suprema do não, para se concentrar exclusivamente na pura autonomia do querer do seu querer. É a ascese da conquista da autonomia: a cruz. Essa autonomia como a cruz, porém, é a impossibilidade da subjetividade em se abrir à gratuidade da solidão perfeita do mistério. Manter-se nessa impossibilidade com rigor, como no limite da subjetividade é ab-ter-se no retraimento do mistério. Essa abstenção é a essência do não-matrimônio.
- Tão-somente, quando nos ab-tivermos do autoasseguramento do nosso celibato, ao toque gratuito da solidão perfeita do mistério; tão-somente, quando nos abnegarmos da posse do celibato para nos abrirmos à sua jovialidade, seremos justificados na graça do celibato cristão.
- A causa, isto é, o que toca o coração do problema do celibato, colocando-o na crise da referência do seu envio é o próprio mistério da gratuidade na gratuidade do mistério. Ouçamos assim a legenda da estranha criatura que ao não saber o saber da sua identidade, estava ao sabor da pureza, no jejum do coração:
- Naquele tempo, uma mulher apareceu no convento e desejou ver a Mestre Eckhart.
O irmão porteiro lhe perguntou:
– Quem és tu?
– Não sei – respondeu a mulher.
– Como? Tu não sabes quem és?
– Não: eu não sou nem menina, nem mulher, nem marido, nem esposa, nem viúva, nem virgem, nem serva.
O porteiro foi falar com Mestre Eckhart e lhe disse:
– Vem ver uma criatura muito estranha. Pergunta-lhe quem ela é.
O mestre fez assim como o porteiro lhe ordenara e recebeu a mesma resposta. Disse Mestre Eckhart à mulher:
– Minha filha, o que dizes é bom. Mas explica-me o que entendes por tudo isso.
Ela lhe respondeu:
– Se eu fosse menina, deveria ser inocente. Se fosse mulher, deveria guardar na alma a palavra eterna. Se fosse marido, deveria resistir a todo o mal. Se fosse esposa, deveria ser fiel. Se fosse viúva, deveria chorar. Se fosse virgem, deveria ter a reverência da devoção. Se fosse serva, deveria ser mais humilde do que todas as outras criaturas e servir de todo o coração. Mas como não faço nada disso, eu sou apenas uma coisa entre as outras coisas.
Mestre Eckhart retirou-se no silêncio do convento e disse a seus discípulos:
– Acabo de me encontrar com a pessoa mais pura deste mundo.