Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Colóquio de Cocalzinho – 2004

16/04/2021

 

O que segue é o relatório de discussão feito em Cocalzinho ao redor da sexualidade e afetividade na formação da VR. A carta abaixo é minha, endereçada a frei Marcos de Goiás que coordenou o encontro. Ele já corrigiu tudo, e me enviou de volta. Assim, o que segue é mais ou menos o que está ali de definitivo. Depois, vou lhe mandando outras coisas.

Frei Marcos, obrigado pelo e-mail, enviando-me o relatório de fr. Mamede. Fiz da minha parte uma tentativa de melhorar a formulação, principalmente no que toca ao que falei no encontro. Envio-lhe o resultado, para que você corrija o todo conforme achar melhor. Aliás, o que você falou está bastante encurtado no relatório, e seria bom se corrigisse, aumentando a formulação, detalhando etc. E seria bom, se possível, na parte do Apêndice, colocar a sua apostila, e se não for possível tudo, ao menos trechos principais, e também os textos citados. E se Leila pudesse também colocar no apêndice o trabalho dela, se é que ela o elaborou digamos definitivamente. Mas aqui também, pode ser que o relatório fica muito comprido. Se quiser cortar certas colocações, seja de quem for, para deixar o relatório enxuto, favor fazê-lo, como acha melhor. Se não tiver muito tempo, se posso lhe ser útil, estou à disposição. Vou enviar esse texto, juntamente com essa introdução a frei Mamede também. No relatório, lá onde estava telegráfico demais eu acrescentei coisas que propriamente e literalmente não foram ditas lá, mas que “Gedanken nach” foi ou deveria ser dito. É que entendo um protocolo filosófico não como relato literal do que de fato foi dito como factualidade, mas que de fato foi pensado, cuja formulação ficou um tanto curto ou mal dito.


SEGUNDO ENCONTRO “PSICOLOGIA E FORMAÇÃO”

COCALZINHO/ANÁPOLIS (GO) 30/10 A 02/11/04–PARTICIPANTES: 22

Horário: 7h30 café – 8h30 trabalhos – 10h cafezinho – 10h30 trabalho – 12h almoço – 14h trabalho – 15h30 cafezinho – 16h30 trabalho – 18h Missa… jantar.

Marcos: vamos conversar um pouco sobre o sentido deste encontro. Num relato que tenho em mãos do primeiro encontro, acontecido em 2001 em Jaraguá, na casa das irmãs catequistas franciscanas japonesas, S. Paulo (SP), está escrito que este tipo de encontro foi planejado num dos nossos encontros de reflexão acerca da nossa espiritualidade franciscana. Tendo-se em conta que muitos dos participantes haviam estudado psicologia, veio a idéia de organizar encontros entre as pessoas que estão na formação dos religiosos e das religiosas e as que estudam ou estudaram psicologia, sejam elas religiosas ou leigas, para que tematizássemos o relacionamento entre formação e psicologia. E então se decidiu que essa reunião anual fosse encontro e não curso. Com mais precisão, poderíamos chamar esses nossos encontros de colóquio, i. é, diálogos. Vamos conversar um pouco sobre isso.

Embora a idéia do encontro tenha nascido do fato de muitos serem psicólogos, no entanto, isto no coloquium não é decisivo. O decisivo é que cada um dos participantes entenda bem o que quer ser um colóquio.

Hermógenes: No colóquio, cada qual fala do seu ponto de vista. Ponto de vista do(a) religioso(a), do(a) leigo(a), do casado(a), do bispo, dos fiéis numa diocese, do(a) estudado(a), do(a) iletrado(a) etc. Assim sendo, pode ser que haja confrontos, entrechoques de opiniões. Num diálogo assim entendido como coloquium não é para chegarmos a um denominador geral e comum, Não é uma confraternização, para nos concordarmos no fim, batendo-nos mutuamente nos ombros, valorizando o outro. No colóquio o que deve aparecer claramente são as nossas diferenças do que sabemos, pensamos e amamos acerca de um determinado assunto. Os confrontos, discussões e entrechoques de opiniões devem ser usados com muito rigor e cuidado, não para cada qual de nós ter razão no seu ponto de vista, mas sim para aprender a sondar, a rastrear as raízes do que sabemos, pensamos e amamos, e descobrir aí pressuposições fundamentais já preestabelecidas, a partir e sobre as quais construímos o nosso saber. E então ali colocar a nossa questão acerca disso que constitui o fundamento da nossa posição e tentar aprofundar cada vez mais o chão sobre o qual estamos assentados.

Luciana (psicóloga leiga, escola neo-freudiana de Lacan): Terminei meu curso de psicologia há pouco. Aqui me confronto com gente que já está há mais tempo na área. Quanto ao próximo encontro deveria ser anunciado o tema para a gente se preparar, rever o que aprendeu e se, no confronto, ver se ainda é válido, etc.

Marcos: Colóquio no seu perfazer pode parecer uma conversa fiada. É sim uma conversa, i. é, vai e vem de colocações, respostas, perguntas que seguem um fio. Seguir um fio se chama pensar (pensum = pendurado). O pensum significa tarefa de tecer com fios suspensos, soltos, ao redor do fio-mestre, fio principal, esticado, tendo como peso (que se chama pensum), para manter o fio principal bem esticado. Cada ponto de vista, seja nas ciências, seja no saber usual cotidiano é uma parte de um todo que foi tecido fio por fio ao redor de uma determinada pressuposição ou posição. Portanto, no colóquio vamos tecer algo, fio a fio, cada qual contribuindo a partir do seu ponto de vista.

Mamede: E ao mesmo tempo, destecer, desfiar para ver do que é feito o tecido da nossa compreensão, e principalmente o que é o fio-mestre que conduz e sustenta toda a textura do que já sabemos.

Marcos: Penélope, no romance da antiga Grécia, tecia de dia e desfiava de noite o que tinha tecido durante o dia. Ela pensava que Ulisses, o marido, que partira para a guerra contra Tróia ainda estava vivo e voltaria. Ao receber pressão dos inúmeros pretendentes, recusava o pedido de casamento, dizendo que somente se decidiria a se casar de novo, quando o tecido que fiava estivesse terminado. Enquanto ela não concluísse o tecido que estava fazendo, não precisava decidir por um dos seus inúmeros pretendentes. Ela tecia de dia, i.é, enquanto estava nos seus afazeres cotidianos, vivia positivamente a vida, tecendo, i. é, construindo, planejando e executando. À noite, ela destecia, i.é, vivia na sondagem da profundidade da sua situação, tentava sempre de novo ir às escuras raízes do que viera construindo como planejamento tumultuado dos seus afazeres, tentando se colocar na disponibilidade da espera do inesperado, na volta renovada à fonte da vida que atualmente parecia ter acabado na possibilidade que a sustentava até agora: o encontro com Ulisses.

Leila (psicóloga leiga da escola Gestalt, prima de frei Marcos): Colóquio quer dizer: aqui não só um professor vai falar. Todos podem e devem participar. E o tema de hoje “masculino, feminino e encontro entre ambos” será um jogo jogado assim.

Marcos: O tema do primeiro encontro foi a Sônia, de Curitiba, quem sugeriu: “Medo da vida e medo da morte”. Ela dizia então que era um tema muito freqüente no seu consultório. Naquele encontro é que foi decidido como tema para este encontro “Sexualidade e afetividade”, por ser uma questão muito presente na formação religiosa.

Hermógenes: Aqui estão religiosos, leigos, solteiros, casados e namorados. Cada um vai falar a partir de sua experiência, perguntando para si mesmo: Quando a gente fala de sexualidade, o que a gente pensa? Que questões trás consigo de antemão?.

Maike (estudante clérigo de filosofia, da congregação dos Oblatos de Maria Imaculada, aluno de frei Marcos): Dois universos distintos! (masculino e feminino).

 


Marcos: Leila vai falar sobre “contatos, escolhas e celibato a partir da Gestalt”. Mas qual a expectativa de cada um para este encontro? Talvez cada qual pudesse dizê-lo?

  1. Fernando (Mason, bispo de Caraguatatuba, frade conventual): Fui tentado a vir porque me foi dito que seria “espiritualidade X psicologia”. Isso me interessa muito.

Marcos: Realmente é. É encontro multidisciplinar sem perder o pano de fundo da espiritualidade e da psicologia.

Aloísio: Minha expectativa é dialogar sobre a questão afeto X intelecto.

Marcos: Isso aparece no usual em slogans como “valorizar mais o coração do que o intelecto”.

Hermógenes: Noviço formado assim, dentro de uma compreensão pouco clarividente desse tema têm crise quando chega na filosofia. Confunde o estudo, principalmente o estudo da filosofia como um vício racionalista. Teme perder a fé e o espírito de piedade  Não entra com entusiasmo na filosofia. Fica com 2 ou 3 pés atrás. Não assume com sadio realismo as tarefas de uma caminhada vocacional e profissional chamada vocação para vida religiosa e sacerdotal. Perde até o pique vocacional.

E muitos dos nossos formadores apelam para a psicologia, dizendo que são os psicólogos que fazem uma tal diferenciação de oposição, dizendo que há hoje exacerbação do intelecto e por isso há o subdesenvolvimento afetivo emocional. Mas será que, na verdade, a psicologia é tão simplista e superficial para, sem mais, afirmar tais coisas?

Irmã (formadora): Até que ponto certas concepções próprias do subjetivismo não levam a assumir uma busca do prazer, da relação sexual, de maneira frívola?

Leila: Você perguntou se a busca da subjetividade não torna o modo de encarar a sexualidade e a afetividade frivolamente?

Irmã: Sim.

Maike: O ser humano é razão e emoção. A pessoa que funciona bem equilibra os dois lados.

Irmã (psicóloga e mestra de postulantes): No encontro de Jaraguá a gente esbarrava freqüentemente na afetividade. Formei-me há pouco. Trabalho no postulantado. Pensam que eu posso resolver os problemas por me ter formado psicóloga. Dizem: … fulana está assim e assim, veja o que é preciso fazer…, resolva… Acabo virando bombeira, apagando fogo. Para mim, é importante trabalhar a espiritualidade como um todo. A pessoa como um todo. Acho o ambiente aqui, bucólico… ajuda a concentração. Minha expectativa é boa demais.

Leila: Gente, ainda não nos apresentamos!…

Marcos: Foi de propósito. Escolhemos já há muito tempo criar um estilo que não corresponde ao que usualmente se faz nos encontros e cursos dos religiosos. Nesse estilo deixamos tudo de lado que é enfeite, acessório, para concentrarmos direta e corpo a corpo no estudo do tema proposto. Apresentar-se e cada qual dizer ao outro quem é e o que faz pode ser feito espontaneamente, no decorrer do nosso convívio. Mesmo nas coisas religiosas, as orações que são tarefa de uma comunidade religiosa deixamos à iniciativa particular e expressamente somente marcamos o horário da Eucaristia como oficial e comum, e isso nos adaptando ao horário da casa.

Fernando: Quando há apresentação durante o tempo de estudo, depois lembro-me muito pouco do que foi dito…

Luciana: Quando a gente se apresenta, usualmente a gente se apresenta no esquema ou no padrão como sou visto e a partir dali me vejo, me penso. Essa autoimagem nem sempre é o real.

Irmã (formadora): A expectativa minha vem de uma observação que faço sobre nós religiosos, a saber: o medo de assumirmos a nossa vocação e a nossa profissão de religiosos como algo absoluto e permanente. O mundo hoje está assim, amanhã diferente; no matrimônio, casa-se hoje, amanhã se separa. Por que nossa vida não pode também ser temporária, tendo sempre alternativas?

Marcos: Preocupam a gente problemas que aparecem no clero: pedofilia, homossexualismo. O que está acontecendo com os Religiosos, os padres – As congregações não sabem o que fazer, transferem de lugar, não resolve, mandam fazer tratamento, não resolve. A minha expectativa é de alguma forma conseguir com maior clareza colocar a questão: O que está acontecendo conosco na jovialidade da nossa vocação?

Luciana: A religião vê o homossexualismo como problema?

Marcos: É tema para nós. Perguntemos porém: Mas é também um problema? Em que sentido?

Fernando: O problema do homossexualismo em geral não é o mesmo do homossexualismo dos padres.

Luciana: Homossexualismo é uma das soluções para o complexo de Édipo. O ato é que é problema para a religião?

Hermógenes: Um professor, especialista na filosofia grega, afirmou uma vez num congresso teológico em Petrópolis que no mundo grego – em que parece haver tanta pedofilia e homossexualismo – o homossexualismo que aparece nos textos como os de Platão, é mais heterossexual do que a heterossexualidade hoje!

O assunto que eu devia apresentar aqui sob o tema “O masculino e o feminino e o seu encontro” não vingou, apesar de ter escrito 4 versões. Peço por isso desculpas. E por que não deu certo? Não conseguia um ponto de partida.

Pensei então tirar dos conteúdos das cartas entre Hanna Arendt e Martin Heidegger, e entre o mesmo Heidegger e a socióloga e pedagoga Elisabeth Blochmann o conceito do masculino e feminino para o início de uma busca, mas nessas cartas vêm à tona as problemáticas que estamos tratando, a partir de uma pressuposição muito complexa, de tal modo que não consegui dar conta de desemaranhá-las. Tenho aqui as 4 versões de tentativa feita, mas em vez de estudá-las, proponho apenas duas estórias zen e a partir dali colocar a questão acerca do masculino e feminino e então fazer o colóquio ao redor dessas duas estórias como fio condutor..

Regina (religiosa de um Instituto Secular, formada na Psicologia): Sexualidade está presente no nosso dia-a-dia. Com jovens, se a gente toca no assunto, o tema interessa e motiva. E quando se fala do masculino e feminino pensa-se sempre comumente em sexo. Não tem como separar sexualidade da pessoa.

Fernando: Gostaria que aqui se elencassem as dinâmicas que estão no humano P. ex. agressividade é uma. Há outras que podem ser catalogadas ao lado da sexualidade? E por que esta se destaca tanto? E, dona Regina (Regina ajuda a D. Fernando na formação dos seminaristas da diocese; e por ser italiano, D. frei Fernando é cheio de humor gozador) nós também já fomos jovens?!?!

Hermógenes: Talvez o tema como o masculino e feminino, afetividade e sexualidade, onde o que vagamente chamamos de sexualidade parece se destacar de modo um tanto unilateral, não pode a meu ver ser colocado no esquema de uma dinâmica ao lado das outras como se elas estivessem enfileiradas numa fila vista na visão panorâmica. Há referência de fundamentação e implicação da sexualidade em referência a todos os outros temas, de tal sorte que na Tradição a sexualidade parece atravessar todas as dimensões da existência humana desde a mais elementar até a mais sublime e espiritual. Por isso esse tema em si mesmo exige a partir dela uma concentração total como de uma busca do fundo do mais fundo da nossa existência humana.

Marcos: O modo que a gente preparou vai mais sondar pressuposições do que encontrar soluções e construir teorias. Na abordagem da pressuposição vamos buscar o essencial. E aí ver como os problemas aqui apresentados poderiam ser apresentados ou não. Tudo isso fica então como pano de fundo.

Pensei em dois exercícios para a gente se aquecer. Um é uma carta de Karl Rahner, um dos maiores teólogos do século XX. É carta pessoal. Dos anos sessenta (cf. Rahner, Um novo sacerdócio, ed. Herder, São Paulo, 1968, p. 119-141). Aqui, não nos interessa propriamente a questão do celibato, no sentido de sua validade ou não, mas ver que compreensão da sexualidade apresenta-se e o que é isso a partir donde ele dá conselhos a um padre em crise. Outro texto é uma página de Assim Falou Zaratustra de Nietzsche, intitulada “Da Castidade”. Frei Harada vai falar, em vez de diretamente expor sobre o masculino e o feminino, sobre o método de abordagem de um assunto tão complexo, tendo à mão duas estórias zen e a Leila sobre como se poderia abordar a questão da sexualidade, inserida na problemática da escolha do celibato, segundo a abordagem da Gestalt (figura, configuração, o todo nas partes).

[Neste momento, todos deixaram a sala para ler a referida carta.]

Marcos: Certamente nem todo mundo leu tudo. Vamos ler frase por frase e comentar?

Leila: Melhor deixar cada um partir do que lhe interessou no texto.

Regina: Não temos pressa, nem onde chegar.

Leila: Não gosto de ficar no mesmo parágrafo, martelando, como o meu primo filósofo Marcos gosta de fazer sempre.

Marcos: É meu defeito.

Hermógenes: Aquém ou além da discussão, se lemos passo a passo ou dizemos o que nos interessou, se pegamos tudo ou em parte, o desafio comum é a gente sempre acionar a questão a partir da indagação se já uma vez sentimos tal problema ou fomos atingidos por ele. Ou seja, lendo o todo ou a parte, devemos estar na experiência de ter sido atingidos pela questão. Essa densidade do ser atingido é o que na experiência humana se chama todo ou totalidade.

Luciana: O que é no texto que lemos “carregar fardo do outro?”

Aloísio (é formador e formado em Exegese): A frase vem da Sagrada Escritura, de São Paulo: carregai o fardo uns dos outros.

Hermógenes: A carta de Rahner é para o seu antigo aluno. Na carta, como disse Aloísio, carregar fardo do outro vem da Sagrada Escritura. A vida é assim. A Sagrada Escritura e a carta trabalham o mesmo, isto é, a vida cristã que é a terra a partir e dentro da qual se busca. Esse fundo, donde e onde de antemão estamos e para onde caminhamos tira a diferença professor e aluno, ouvinte e expositor, estudado e iletrado. Isto é, todos, aqui estamos na mesma, no mesmo barco como Rahner e o seu ex-aluno. Todos unidos na mesma questão (busca).

Marcos: Peso. Um teólogo (D. Bonhoeffer) diz: Só não é peso para mim quem eu não amo. Descartável: carta, listagem, vai descartando, i. é, quando não é tesouro precioso discute-se o assunto, se usa o assunto para isso e aquilo e depois joga-se fora, como folha que pode ser descartada do caderno ou do conjunto de cartas.

Geraldo (leigo, casado, professor titular de física na Unversidade de Brasília): Gosto destas reflexões. Num texto bom assim, cada palavra é o todo.

Marcos: O texto, tocando no celibato, toca na vida. O todo não é soma de partes.

Hermógenes: pareceu-me meio violento o jeito de Karl Rahner falar. Mas não o é. É que o assunto toca nele.

Fernando: Parece que a questão professor aluno já ficou para trás. Agora está uma pessoa, Karl Rahner falando de si, não como professor, mas como quem participa do mesmo problema…

Hermógenes: E por isso fica veemente. Não mais está falando sobre, sobre o outro, mas a questão do outro se torna a sua própria questão. Ali interessa a gente. A veemência é expressão do interesse pessoal. O engajamento pela minha coisa ou causa: la cosa nostra!

Marcos: Parece que o melhor jeito de ajudar o outro é mostrar como a gente procura se ajudar a si mesmo.

Hermógenes: 2 + 2: 4. Na matemática há uma mentalidade da objetividade neutra, no fundo indiferente que não é possível na psicologia. Cada ciência tem que descobrir a sua objetividade. Chamam a psicologia de ciência não exata, por quê? Porque não tem a exatidão da matemática? Mas hoje distinguimos nas ciências exatidão e precisão. Exatidão é o rigor e precisão do tipo da objetividade neutra da matemática e física.

Marcos: Cada ciência teria a sua própria objetividade. Qual seria, por exemplo, a objetividade para a espiritualidade?…

Hermógenes: Como é e deve ser a subjetividade e objetividade, próprias para p. ex. o encontro eu – tu? Sujeito (subiectum) quer dizer iectum = jectado, jogado, sub = embaixo, isto é, jetado sob. Objeto: iectum = jectado, ob = diante de, em e para frente. Na matemática o objeto é todo o sistema matemático, como resultado de um lance apriori, feito pelo homem (pela Humanidade), a modo de um projecto já definido a partir e dentro de um determinado interesse, e jogado sobre a imensidão, profundidade e vitalidade da possibilidade de ser que é a vida, a “realidade”. A vida, sob essa interpelação projetiva, não aparece no que é ela mesma, mas apenas no aspecto do inter-esse do projeto. Debaixo de tal objetividade matemática está um modo de ser e de se interpretar do homem a si mesmo, a partir de um determinado interesse seu.

 Marcos: Por isso, combater a exacerbação da subjetividade não acontece se não conhecemos essa estruturação há pouco mencionada. O caminho para superar a exacerbação de um sistema não é ir para uma objetividade neutra. É mergulhar nas raízes da subjetividade, examinar o “homem” que subjaz, como fundo ou fundamento do lance de tal ou qual objetividade.

Luciana: Voltando mais diretamente ao texto de São Paulo, carregar o fardo dos outros, é a responsabilidade de quem carrega? Mas isso não pode ser assim sem mais sem menos. Foi dito aqui: Subjetivo é estar embaixo de. Na psicanálise: colocar-se como sujeito. Mas como fazer isso sem se pôr por baixo? Submeter-se? Perder a autonomia? Aí me veio uma intuição de que a gente é fruto de uma rede de relações: mãe, família, meio, ambiente. A gente não é um eu, sem toda uma carga de condicionamentos situacionais e históricos. Isto significa que estar embaixo do outro não significa estar sendo pisado, estar submisso ao eu, ao capricho do outro como quem suporta a injustiça, mas começar a ver uma dimensão de profundidade humana a que eu também pertenço, e lutar para uma participação originária, sadia e frutífera dessa força da terra da existência humana…

Hermógenes: isso é bonito e a questão está aí. Mas como não substituir o outro sendo que a última palavra é sempre do outro? Mas também, é que nunca posso dizer fiz minha parte, daqui para a frente que o outro se vire. A questão permanece para mim: isto é carregar o outro. Aí, de repente descubro que o outro não é tão outro, tão-somente, mas como ser humano que participa do fundo profundo do ser da humanidade é parte de mim mesmo, de alguma forma sou eu mesmo.

Irmã: leitura do 2º parágrafo da carta de Rahner:

Marcos: A carta surge numa situação pessoal – a pessoa que escreve para Rahner – e numa situação exterior – o fervilhar na Igreja da questão do celibato.

Irmã: A pessoa está em forte crise.

Hermógenes: Parece que o padre dizia para si mesmo: voltou a questão. Se soubesse que voltaria, não teria assumido o celibato. Mas parece que K. Rahner está dizendo: agora está ficando real. Não é mais questão teórica. Coisa dos outros. É cosa nostra. Coisa e causa de si, em si. Agora é pra valer. Agora ele entrou mesmo na questão, na busca. Na psicanálise crise não significa isso?

Luciana: O paciente entra em análise quando se dá conta e assume o problema como seu. Enquanto achar que a Igreja está errada, que a lei está equivocada, ainda não começou a análise.

Hermógenes: A teoria entra em desequilíbrio, e a verdade não parece tão verdade mais.

Fernando: Algumas questões jamais ficam liquidadas. Sempre de novo retornam, entram em crise… retornam como busca.

Hermógenes: Em vez de falar em vida pensando em sangue e carne à la biologia etc., chegamos a um elementar mais elementar.

Marcos: sexualidade não é coisa que se resolva! É uma grande realidade da vida, diante da qual a gente deve se posicionar, a qual a gente deve assumir.

Regina: Se é assim, tudo isso já é uma tarefa, desde a nossa infância. Por isso, não se pode dizer sem mais que fulano ou fulana é muito jovem para entrar na VR etc.

Hermógenes: Não há certo dogmatismo, quando na educação se considera a criança como adulto subdesenvolvido e primitivo, o humano infantil? Teríamos alguma constatação válida que nos mostre que criança, no que diz respeito à dimensão humana, não é criança, embora sua expressão possa parecer infantil? P. ex.na hora da morte, na doença?

Luciana: São 4 as questões que, segundo Freud, não sabemos: Morte, filiação, sexualidade e procriação.

Hermógenes: Houve no início da nossa era moderna, ainda antes de Descartes que hoje é considerado como o pai da filosofia moderna, um pensador, filósofo e teólogo denominado Nicolau de Cusa que escreveu um livro intitulado: De Docta Ignorantia. Aqui a Ignorância, o não saber aparece como o despertar-se e abrir-se para uma dimensão de profundidade, imensidão e vitalidade que não cabe no modo definido do saber de cálculo e de autoasseguramento. É a dimensão da Vida nas suas profundidades, que Pascal mais tarde chamou de Espírito de finura ou na, sua linguagem, Coração, de quem provém a famosa frase: O Coração tem razões que a Razão desconhece. Coração aqui não indica sentimento, mas sim uma dimensão de profundidade abissal do ser humano.

Fernando: Nele existimos, nos movemos e somos.

Hermógenes: Talvez nós religiosos e também os teólogos devamos cuidar para não dizer logo Deus. Deus não é uma coisa, um ente a partir e dentro da nossa dimensão de uso, cálculo e necessidade. É presença de um ocultamento profundo enquanto uma dimensão mais radical e absoluta do que tudo que sabemos, fazemos, podemos e somos. O problema é que quando assim falamos, pensamos que Ele está bem longe, transcendente. Mas Sto. Agostinho já chamou Deus de intimius intimo meo, i. é, o mais intimo do que eu sou íntimo a mim mesmo.

Daniel (frei que concluiu seus estudos eclesiásticos, indicado para estudar como especialização Filosofia, e é formado na Odontologia. Ajuda atualmente no ensino da Filosofia a frei Marcos): Terapia, em vez de equilibrar, é levar para um desequilíbrio maior?!…

Hermógenes: Talvez colocar medidas fixas e preestabelecidas ao ser vivo e ser livre é desequilibrar a priori a sua medida. Se for assim, terapia como a ação de levar alguém a um desequilíbrio maior não é outra coisa do que lhe devolver a sua medida adequada, i.é, reconduzi-lo à soltura da vitalidade originária. Por isso, equilibrar na terapia não é fazer média com alguém. Equilibrar é acenar para o centro, o meio originário de uma pessoa e o medium que dali surge.

Luciana: Na Escolinha de Mogi observei crianças que se tornam objetos das professoras e crianças que desequilibram a professora.

Hermógenes: O terapeuta não pode saber o que é equilíbrio de antemão.

Irmã: As pessoas buscam a terapia para fugir da dor. É difícil passar pelo processo…; a gente quer resolver de modo imediato, livrar-se do incômodo. O texto de Rahner está ensinando a ajudar-se para ajudar o outro.

Fernando: A publicidade põe na boca do psicólogo afirmações como essa: nós temos o equilíbrio e podemos viver a normalidade psíquica.

Luciana: Penso que a maioria vê assim. Uma piada diz: um paciente que fazia xixi na cama faz psicanálise e depois de um tempo foi perguntado se melhorou? Respondeu: Não, mas agora me orgulho disso.

Fernando: Orgulho e depressão de fato é o mesmo.

Hermógenes: Talvez seja mais interessante não tematizar os defeitos de psicólogos e padres defasados, que aliás existem mesmo, e examinar a teoria que seguem. Vamos ver se na própria teoria não existe uma defasagem. P. ex. D. Fernando usou há pouco, ao propor que examinássemos outras forças também importantes para o ser do homem além da sexualidade a expressão: forças humanas ao lado da sexualidade no humano. “Ao lado de” não existe para o humano. Pois ao lado de é uma expressão para dizer a relação de uma coisa com a outra. Se ao falar dos fenômenos psíquicos e humanos uso a expressão ao lado de e represento a relação entre os fenômenos humanos como se fosse relação de coisa para coisa, surge uma defasagem na teoria explicativa. P. ex. na relação entre fenômenos humanos não se pode usar sem mais a categoria causa e efeito, pois causa e efeito se diz da atuação de uma coisa sobre outra coisa. Quando se fala da atuação de um fenômeno humano ao outro, ou de uma pessoa à pessoa do outro, no início do século XX, quando a psicologia experimental começou a tomar conta dos estudos psicológicos, os pesquisadores que percebiam a diferença entre coisa e pessoa, combinaram usar o termo motivo, motivação, na psicologia, em vez de causa e efeito para conservar a diferença da dimensão entre  coisa e pessoa.

Marcos: É bom estar pois de olho no que aparece ou nas estruturações da coisa, quando aqui discutimos. Quando a gente coloca questões acerca da sexualidade, quais são as dimensões em que ela aparece – e como aparece em cada dimensão? Quando o médico fala na dimensão da medicina é um jeito de falar. Ao tratar da sexualidade entre os religiosos, em que sentido e a partir de que dimensão se fala dela? Uma mãe inglesa grávida ficou destaque numa reportagem por não tomar remédios e sedativos ao sofrer dores horríveis causadas por câncer, para não pôr em risco a vida do filho. Aqui podemos falar da grandeza da maternidade. Quem pergunta aqui quantos metros, que peso tem essa grandeza, é cego para a diferença de dimensão.

Hermógenes: Parece muito chato, teorético, examinar a defasagem no pensar e no abordar a realidade, mas é o que mais influencia no concreto.

Fernando: Realidade é uma palavra ampla.

Marcos: Sexualidade abrange uma imensidão de sentidos, uma multiplicidade de dimensões, uma variada gama de fenômenos…

Mamede: Alguém disse: Uma coisa é tão mais real quanto menos pertence ao nosso domínio.

Ulrich-Leitura do parágrafo 3 da carta de Rahner.

Marcos: Aqui ele pretende entrar no cerne do difícil assunto que é o celibato.

Hermógenes: Não há dimensões, uma ao lado da outra, p. ex. a dimensão genital ao lado da sexualidade, ao lado do espírito etc. Mas também as dimensões não se misturam como uma farinha na outra. Aqui, quando se fala p. ex. de sexualidade, tudo fica sério porque aqui o todo tem a ver com o todo na sua raiz. O todo aqui não é panorâmico, não um ao lado do outro, todas as partes juntas. Simbolizando tudo isso com uma árvore, temos toda a copa, conjunto de centenas de galhos. Mas se atingirmos a árvore na sua raiz, tocamos em todos os galhos no que lhes é mais vital e decisivo.

Marcos: Fala-se muito da formação integral. O que essa expressão quer dizer? Soma de partes? Nesse sentido, sexualidade é uma das partes?. Comumente se vê o ser humano como soma de partes ou como máquina com várias peças.

Hermógenes: Pensa-se que formação integral é departamento. Quando se juntam os departamentos, dá a totalidade. Na VR qual a formação integral? Há um ponto que atingido, move tudo. Qual é?

Fernando: Hoje em dia isso de formação integral é um dogma.

Hermógenes: … um dogma que está exigindo que chequemos nossa compreensão de dogma.

Marcos: Qualquer aspecto bem tratado atinge o todo.

Hermógenes: Conta-se que um diplomata lia jornal aberto encobrindo o seu vulto, sentado ao sofá junto a uma mesa. Sobre a mesa estava um bolo, do qual estava cortada uma pequena fatia. O filho mais novo, criança de 5, anos diz ao pai: Posso pegar um pedaço de bolo? Sem enxergar, por causa do jornal aberto, nem o filho, nem o bolo, responde o pai: Sim, meu filho! O filho levou a maior parte do bolo, deixando um pedacinho, resto sobre a mesa. A parte pode ser grande, quase tudo, mas é sempre parte. Quantas partes se devem ajuntar para se ser integral?

Marcos: A vida e suas idades, por exemplo. Ela não é soma de etapas. Criança não é um adulto em potência ou um mini-adulto. É a vida toda experimentada como criança.

Luciana: Velhice, nessa perspectiva, é como se o todo chegasse à velhice ou à maturação.

Hermógenes: A falta da compreensão da idade como o todo absoluto está dando problema para os velhos. Ao percorrer quase ¾ da vida, olha-se para trás e ao ver as três partes já passadas fica-se deprimido que tudo passou e ainda não se fez nada. Aí quer recuperar, reaproveitar, refazer o que não fez e não gozou. Mas, porque se sente velho, não tem nem força, nem ânimo para recuperar o que perdeu. E não se percebe que perder força, sentir-se vazio, sentir dificuldade em muitas coisas, ficar com doenças da velhice é uma inteiramente nova realidade da vida que se me abre na velhice. Se conseguíssemos ver a velhice como uma nova vida toda própria, haveríamos de interpretar todas essas vicissitudes “negativas” como uma nova experiência da vida humana. E a velhice não apareceria aos olhos dos jovens como decadência da juventude. Talvez seja por causa dessa maneira defasada de ver o tempo da vida que os jovens usem droga. Aproveitar enquanto estou ainda com força para gozar de uma vez tudo. Mais ou menos num semelhante modo de ver a vida, o masculino e o feminino é cada vez todo. Não é um cara metade do outro, na complementaridade. Será que a nossa maneira de interpretar o masculino e o feminino como parte, não cria continuamente o complexo de carência? Que tal se masculino e feminino não são propriamente cara metade um do outro, mas sim cada vez todo na seriedade de encontro cara a cara.

Fernando: Cardeal Trujillo falava da família em termos de complementaridade.

Hermógenes: Usar o termo não é proibido, mas depende do que se está entendendo.

Regina-Leitura do 4º parágrafo da carta de Rahner:

Marcos: Há aqui um nível jurídico: Sacerdotes que pedem licença para casar. E Rahner acha que aí a Igreja deveria ser mais generosa. Mas há outros níveis decisivos. P. ex. que a realização humana, seja no celibato como no matrimônio cristão, inclui essencialmente como decisivo, renúncia, oração etc.

Fernando: Rahner diz já poder ouvir a risada dos psicólogos. De que eles estariam rindo?

Luciana: A pessoa entrou porque quis e agora vai querer que mude leis. Quando entrou já sabia que ia ser assim.

Aloísio: Os psicólogos acham que não há opção pura, que ela já está condicionada.

Luciana: Totalmente livre não. Mas pré-determinada também não. Nasce num lugar. Recebe influência. A análise entra quando a pessoa pára num lugar. A análise mostra que a pessoa é mais do que aquilo.

Hermógenes: Rahner chama o “mais”, sobre o qual Luciana falou, de decisão. Enterrado até o pescoço na determinação, pode ainda decidir. O ser humano é o único ser  que nas situações mais perdidas ainda pode fazer algo com a sua situação, mesmo que ela não mude em nada.

Luciana: Por sorte ou azar o ser humano não é só instinto. Bicho o é. Importante não é o que fizeram de mim, mas o que eu faço com aquilo que fizeram de mim (Sartre).

Hermógenes: Carência afetiva no fundo é como instinto, e eu posso ser livre ali juntamente com carência afetiva.

Ulrich (frade, professor de filosofia): Por isso, aparece na carta de Rahner muitas vezes a palavra responsabilidade.

Marcos: É difícil falar de sexualidade porque, qualquer que seja a fala, está sempre subjacente uma compreensão do humano – do ser livre – do compreender – da liberdade.

Hermógenes: Se compreendermos o ser livre como não ter dificuldade, acho que andamos errantes.

Regina: Deus, Igreja, Consciência. A terceira é a principal. Até há pouco, a pedagogia tinha como dogma: Não se pode pôr limite à criança. Hoje se vê que essa não é uma fala boa na psicologia.

Luciana: Em vez de tratar-se de um tratamento psicológico, pode se tratar de uma psicologização.

Aloízio: Leitura do 5º parágrafo da carta de Rahner.

Marcos: No primeiro ponto Rahner advoga que frustração etc. faz parte da incompreensibilidade da vida, i. é, sua imensidão, profundidade e vitalidade criativa. E então Rahner critica os que pensam que o matrimônio é solução para as frustrações. Em seguida mostra que tanto o matrimônio, como o celibato, podem decair. Só podemos comparar o celibato realizado com o matrimônio realizado. Não podemos comparar o pântano de um com o píncaro de outro. A solução é aprender a conviver com a solidão. Ou mais ainda, amar a solidão como um elemento essencial da vida, tanto no celibato como no matrimônio.

Hermógenes: Fraternismo como complementação, seja talvez também uma colocação defasada. Nele não se aceita a diferença.

Leila: Idealizar o fraternismo não é muito viável. Na vivência a idealização cai.

Hermógenes: Um ponto é esse. O outro é pensar que quando não tem sentimento, mas oposição, aí não é fraterno. O se limar nas diferenças parece não ser fraternismo. E uma concepção assim do ser fraterno busca uma amizade do tipo homo-genérico. Homo significa no grego igual. Um grupo de pessoas adultas, livremente movidas pelo ideal escatológico que, como decisão, se unem numa sociedade de busca da mesma causa, e no caso do celibato, do seguimento de uma pessoa divina chamada Jesus Cristo, deve entender o relacionamento mútuo como apoio e incentivo em cada vez mais se desafiarem mutuamente no confronto de suas diferenças. Esse relacionamento é que se chama ser-fraterno, fraternidade. Aqui imaginar que esse relacionamento deve ser de “amizade” entre si, para o cultivo e complementação do eu carente, fomenta o ambiente, onde o homossexualismo pode proliferar. E, se não prolifera no sentido genital, o espírito, o modo de ser se torna homo-genérico, o que com o tempo pode infeccionar todo o grupo e impossilita o crescimento sadio na vocação religiosa.

Irmã (formadora): Não se fala muito que nós, que desde pequenos encetamos o caminho da vocação religiosa, não pudemos optar pelo celibato, pois não conhecemos, nem experimentamos outro caminho?

Hermógenes: Ouvi falar de uma Madre Geral de uma congregação lá fora no país estrangeiro que pediu exclaustração para decidir a sua vocação religiosa, pois ela nunca tinha namorado. Precisaria experimentar o outro lado para escolher entre este lado e o outro. Dizia: Como posso optar se não fiz experiência diferente? Saiu para namorar. Lógica estranha. O que será que ela quer provar para si? Se o namoro der certo e se casar, significa que isto é prova de que ela não tinha vocação religiosa? E se não der certo, significa isso que tem vocação religiosa? Lembremo-nos que os medievais diziam que a liberdade de escolha ainda não significa liberdade no pleno sentido da palavra! Se a liberdade de escolha é a excelência da liberdade, então eu não posso livremente assumir a minha existência, pois tenho somente essa existência. No Japão houve um filho que processou os pais, dizendo que ele não tinha pedido nem escolhido para vir ao mundo…

Lembro-me da cena do experimentado e velho professor de psicologia na Universidade de Freiburg i. Br., se despedindo dos alunos e quase como um pai a seus filhos, dando os últimos conselhos: Não confundam experiência humana com experimentação. Sei que muitos de vocês, sob o pretexto de adquirir mais e mais experiência nas coisas do sexo, iam às casas de prostituição, viam filmes pornográficos. Mas tudo isso que ali vocês experimentaram são experimentos de realidade humana bem diferente do que se denomina experiência humana profunda do amor, p. ex. entre o masculino e feminino. Não façam essa confusão, pois se não evitarem tais defasagens de compreensão, podem prejudicar as pessoas que vêm a vocês pedindo ajuda psicológica.

Fernando: Toda essa admoestação para assumirmos a nossa existência religiosa num engajamento de tamanha seriedade e responsabilização, vale também para quem deu as “pelancas” para Deus!?!?!

Regina: Claro que sim.

Frei Daniel – Leitura do 6º parágrafo da carta de Rahner.

Marcos: Entender decisão pelo celibato, e renuncia ao Casamento como anormalidade é possível. Aqui o celibato parece resultado da incapacidade de assumir o matrimônio como realização. Tudo isso pode ser uma experiência e ser o que leva alguém a optar pelo celibato. Mas tal “opção” é opção pelo celibato? E o motivo aqui é decisivo, saudável, autêntico? Homossexualismo há também no casamento, como me disse um casal. Tanto celibato como matrimônio cristão são caminhos a ser caminhados, como tarefa de uma realização. Não é algo simplesmente dado como um estado de coisas.

Ulrich: Como não se trata de um dado, mas sim de tarefa, no celibato não basta mudar de lado e passar para o estado do matrimônio, pois esse também é tão tarefa como celibato.

Marcos: Rahner fala, depois, que muitos padres se casam e descobrem que para salvar o casamento precisam das virtudes que se tivessem tido antes teriam salvo o celibato.

Leila: A questão é o contato que a pessoa tem com ela mesma, como se assume e o que ela faz de si mesma.

Ulrich: Parece que estamos começando a intuir a limitação como a terra fértil, a compreender que ela é o lugar onde nasce, cresce e se consuma o vigor da liberdade humana.

Marcos: Terra fértil em latim se diz humus. A palavra humildade vem de humus, e significa a vigência, o vigor do humus. No humus da terra se dá toda a espécie de decomposição, apodrecimento, curtição, fermentação etc. É dessa dinâmica telúrica que nasce a possibilidade de vida.

Luciana: Nos chistes que contamos, nos atos falhos que cometemos, aparece  o que pode estar se dando no subsolo da nossa consciência.

Hermógenes: Esse rastreamento dos chistes e atos falhos que se faz na psicologia é muito interessante. Mas quando ouvi pela primeira vez acerca disso numa preleção de um professor de psicologia freudiana, ele trocava a palavra cliente com a palavra esposa. Assim, ao falar de uma sua cliente que explicava um fenômeno psíquico a seu modo, de vez em quando ele dizia: e essa esposa me explicava etc. Nós estudantes, ao ouvir esse ato falho, o aplaudimos ruidosamente. Ele ficou todo vermelho… Certamente, o ato falho pode ser um sintoma. Mas poderia não ser, e ser simplesmente um equívoco? Contra uma aplicação mecânica desse processo na análise, Maedard Boss, fundador da Daseinsanalyse, ao comentar a explicação que um neo-freudiano fazia do sonho de um jovem que sonhou comendo um cachorro quente, e que o psicólogo interpretou como ato sexual, pergunta: por que de imediato se pensa no símbolo fálico e não no cachorro quente mesmo? Por que não pode ser cachorro quente mesmo? Com isso, Maedard Boss parece estar perguntando à própria psicologia, se ela não está transformando a realidade da banalidade cotidiana simples e elementar numa ambiência clínica de psicologização da vida. Essa vida elementar se chama na fenomenologia de dimensão pré-científica ou pré-predicativa e é a matriz donde as ciências positivas tiram o seu positum.

Marcos: Ele coloca em questão se há por ex., uma consciência, que, a modo de uma cápsula, recebe impulsos (Triebe)?

Aloísio: Leitura do 7º parágrafo da carta de Karl Rahner.

Marcos: Rahner diz: Sexualidade é chance, quebra-cabeça. Possibilidades: Ascese e renúncia.

Aloísio: Gostaria de trabalhar um pouco a palavra renúncia.

Hermógenes: Sentido de renúncia é que, porque disse um sim, vem um não. O não da renúncia ou da abnegação é um sim decidido de engajamento existencial para uma possibilidade do existir humano, que se me torna importante, essencial. É uma resposta de quem foi atingido pelo chamamento.

Marcos: Dizer um sim assim é muito mais realizador do humano do que ficar com muitas possibilidades e não escolher nenhuma.

Fernando: Dou um exemplo para isso. Um seminarista não foi para a praia com a patota por causa do vestibular. Porque tinha dito sim ao vestibular, disse consequentemente não à praia.

Hermógenes: Ao falar da abnegação e renúncia, cuidar para não ficar na ambigüidade de explicar o sim da renuncia como sacrificação. Por ex., foi atingido por uma grande paixão pela medicina, buscar a medicina se torna o sentido do seu viver. Não é assim que sacrificou outras coisas, a praia com colegas. Essas coisas mencionadas não existem para quem disse sim desse modo renunciado, abnegado à medicina. Quem entende o sim à vocação como um andar aproximativo, passo a passo, um passo atrás do outro em direção ao ideal utópico que está lá longe, tem um modo de pensar no qual facilmente entra a compreensão dos nãos que um sim assim decidido traz consigo como sacrifício e sacrificação de si. Decisão da caminhada humana não avança andando. Avança como salto. Uma vez que salta, ou vai até o fim ou cai. Não há possibilidade de parar no meio, pensar e duvidar do caminho e voltar para trás. O maior veneno para o celibato é entrar em dúvida sobre a vocação. Pois dúvida está no nível do saber e da certeza do saber. Salto na existência e o assumir a existência está na dimensão do ser, do ter que ser, da responsabilização, sim da resposta. Se surge dúvida aqui, é porque se tornou infiel à vocação, há muito tempo.

Fernando: Em que áreas, em que estruturações exige-se salto?

Hermógenes: Quando o humano fica bem humano mesmo, em qualquer área se torna salto. O salto prévio se diz em latim ex. Sistir, permanecer com precisão e rigor no aberto do ex se diz em português: existência. É a estrutura da existência humana. Isso acontece mesmo em coisas aparentemente banais. P. ex. briguei com o outro. Viro-lhe a cara. Volver a cara para ele, olhar para o outro nos seus olhos, como ato de reconciliação é um salto. Lança em jogo, em ação o humano todo que somos. Na língua alemã a palavra origem se diz Ursprung. E significa o salto originário

Marcos: A gente escuta muito a afirmação que diz: não se pode fazer um compromisso para a vida toda. Nietszche disse que a natureza levou milhares de anos para gerar um ser capaz de fazer promessa. Donde vem a dificuldade atual para uma decisão definitiva? Ou antes também era assim?

Hermógenes: O modo de pensar físico-matemático tomou conta de nós. Quem diz um, já diz dois, três etc. etc. O todo é sempre provisório. Sempre se adia para depois, mais tarde a decisão, pois depois de agora, ainda tenho muitas possibilidades de me decidir. Quem está apaixonado diz: eu devo, eu quero mudar totalmente, aqui e agora. Lança-se totalmente, de todo, na possibilidade que se me abre.  Quem diz juro: e faz figa atrás, na realidade não jurou.

Marcos: Paixão é algo de absoluto, de salto, de decisão integral.

Hermógenes: Para dizer um sim definitivo, custe o que custar, precisa ter outra compreensão de energia.

Marcos: Em muitas coisas da vida humana entra cálculo, previsão. Agora, no encontro entre duas pessoas, não entra nada disso. Se entrar, não é encontro, é outra coisa.

Hermógenes: Fenômeno religioso não tem o modo do provisório. É cada vez todo. É total doação ao outro. O cálculo não deixa aparecer o outro como outro. No cálculo, o outro aparece como extensão de mim.

Irmã: Num Congresso de Religiosos, Pe. Libânio tentou explicar o porquê da provisoriedade de nossas decisões, também em referência à vocação à vida religiosa dizendo que hoje: tudo vem pronto, nos é dado de imediato no momento. Daí o nosso modo de assumir, expresso na canção de Renato Russo: é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Isto cria um modo de ser que vive o presente, sem culpa de ter deixado um compromisso passado, pois vive-se  vinte e quatro horas fazendo opções a cada momento para isso e aquilo, para o que vem. A profissão religiosa é aqui uma opção a mais. Vale para este momento. O ano que vem posso abandonar a VR porque valia para aquele momento.

Hermógenes: Isso é o tic-tac do relógio. O que passou passou, o que ainda não veio não existe, o que existe é agora. Nisso tudo há muita intensidade de vivência do momento, e sem nenhum conteúdo.

Marcos: Arte, religião, quando falam de eternidade, como será? Um tempo, um futuro sempre aberto? Mas se for tudo, cada vez, absoluto, i. é, cada vez nesse instante, todo o passado na intensidade absoluta do salto assumido como responsabilidade do que se é, e o futuro, na intensidade absoluta do salto já dado que me vem ao encontro como tarefa de se renovar sempre novo e sempre de novo?

Leila: Nosso encontro de Gestalt: “O aqui e agora…” deve ser entendido cada vez como o todo, gestaltizado aqui e agora.

Regina: na formação vai se dando um monte de coisas, como preparação para o futuro, p. ex. para trabalhar no hospital ou na escola ou na pastoral.

Hermógenes: Esse modo de pensar “temos um hospital, precisamos  mantê-lo; manter o hospital é uma meta, portanto é necessário, preparar elementos humanos em função dessa obra”, portanto esse modo de motivar o sentido da vida religiosa como função para um trabalho de manutenção de uma obra, não possui a interioridade de um conteúdo humano, não se faz história. Basta que a gente funcione. Quando esse modo de ser funcional nos domina, nos transformamos numa espécie de trabalhadores funcionários de um ninho de cupim, que trabalham e trabalham dia e noite, com excelente inteligência funcional, sem se perguntar, sem ter sensorial para o sentido do ser e sua responsabilização por ele.

Marcos: Dá para dizer que há dois infinitos. Um, aberto, sem limites, outro que é mergulhar no finito. Nesse sentido, o infinito é uma intensificação do finito.

Hermógenes: Viver infinitamente no primeiro sentido, exposto por Marcos aparece na tentativa de congelar o corpo para guardar para o futuro, quando tenho recuso de fazer revivê-lo. Li uma vez em ciência de ficção, descrevendo uma pessoa que se tornou imortal, vivendo sobre um asteróide, sem nenhuma vida, girando eternamente no circuito infinito, entre asteróides, planetas e estrelas, onde não há vida, não há finitude, mortalidade… Será que a idéia do inferno não é uma ”vida” imortal assim?

Marcos: Em Brasília classe média alta vai para a escola, tendo tomado certa droga medicinal. A criança mesma diz: Eu sou hiperativa e preciso tal remédio. Ou diz: Hoje não posso ir à aula porque acabou o remédio. Eis saúde provocada através da química. Não integração de toda a sua vitalidade.

Marcos: Terra do Sem fim – É um filme que tematiza o desejo. Neste filme, cada vez que alguém deseja algo, alguma coisa da natureza vira pedra. Morte da vida. Talvez na sexualidade estejamos caminhando em direção a tal transformação coisista da vida. A internet apresenta propaganda de droga ou dispositivos para estimular a ereção… “maior custo benefício por ereção”…

Luciana: revista Claúdia – tem sempre uma dica de como conseguir mais prazer. O casal passa a buscar só a excelência do prazer e da satisfação. A tensão que a sociedade impõe durante o dia continua na cama e o relacionamento do casal vai para o ralo.

Hermógenes: estamos medindo o humano com um metro errado. Se continuar assim, em 50 anos ficaremos todos nós biônicos, altamente funcionais, programados e processados para quê?

Marcos: Uma fala comum hoje é: “Nossos noviços são bons, mas frágeis como a geração de hoje”?!

Hermógenes: Consideramos a fragilidade humana como um estado de coisa. Será que o que hoje chamamos de fragilidade da nova geração não é produto do modo de ser que se tornou cego para a riqueza e o vigor da finitude humana? Eu, fechava com cuidado, cada vez a porta do quarto da minha mãe doente. Esse trabalho de com cuidado sempre de novo fechar a porta, era cada vez finito, bem trabalhado, onde exigia que eu me doasse todo e inteiro a essa obra. Todo o meu ser estava se perfazendo nesse trabalhar, e ao cuidar da porta, estava cuidando de mim mesmo, me revigorando no meu ser no cuidar da mãe. Um dia, alguém me sugeriu para colocar um dispositivo automático que fechasse a porta suavemente. Instalei o aparelho. Fiquei livre de mim finito, do cuidado, do trabalho humano. Comecei a não mais me usar. A finitude começou a ser entendida como delimitação humana. O fechar a porta com cuidado, que era uma operação antigamente assumida como algo bom e natural, se transformou numa ação irracional, não funcional. Transformei com o tempo todos os afazeres dentro da casa, que exigissem cuidado e o uso de mim mesmo, como menos excelente na funcionalidade. Robotizo todas as operações caseiras, de tal modo que não necessito mais usar o meu corpo. De repente, sinto necessidade de fazer malhação para conservar a saúde. Mas na malhação uso máquinas que me facilitam a não fazer esforço finito. De repente, me surpreendo transformado apenas numa função de coisa, sem sentido humano, sem as vicissitudes da vida, de mortalidade humana. Condicionei-me de tal maneira roboticamente que, sem robôs, nada sou. Saber usar computador é bom. Mas pensar que fazer isso é estar adequado ao humano e ao sinal dos tempos da nossa epocalidade é uma cegueira.

Marcos: No caso concreto nosso, na VR observamos os inúmeros problemas que nos afligem. Em todos esses problemas há algo generalizado que poderíamos chamar de falta de entusiasmo. E explicamos essa falta de entusiasmo ou da jovialidade como manifestação da época. Não é resignar-nos da nossa liberdade e responsabilização “resolver” a questão, dizendo que é da época…?

Hermógenes: Falamos muito da excelência, da qualidade total. Mas o que entendemos por excelência, por qualidade total, em se tratando do ser humano? Enquanto não nos inquietarmos por essa questão e começarmos a tentar mexer nisso tudo, não damos passo para frente. Essa situação global de entropia do entusiasmo não é do mundo ateu, mundo decaído, não é do mundo dos que não crêem nem na Igreja, nem em Deus, mas nossa, sim radicalmente nossa. Portanto, não é problema dos outros. Enquanto não pensar que o problema do outro é meu, enquanto não carrego o fardo do outro, não começou a solução. Um grande problema nosso na VR é que temos infinitos recursos. Quando um não serve, busca-se outro. No fim ficamos com um depósito de sucatas não trabalhadas. E quando não tiver mais recurso, definhamos na carência, no meio das sucatas..

Luciana: Na escolinha, aplicaram-se todas as teses pedagógicas; a criança não se encaixou aí, a escolinha abandona as teses ou a criança abandona a escola. Em vez de ficar atento para, quem sabe, fazer a ciência chamada pedagogia dar um passo a frente. Pois, afinal, foi assim que ela nasceu, estudando o comportamento diferenciado das crianças.

Marcos: Há uma cegueira, um não querer ver disseminado. Um não querer saber de que se trata. Rahner fala do “querer ver”.

Hermógenes: Nós que, na maioria, já entramos há tempo na terceira idade, outros que estão começando a vida profissional, outros que estão no ápice da vida adulta, quer na profissão, quer na vocação, seja qual for a posição que tomamos diante da nossa epocalidade e da vida religiosa hoje, devemos assumir a nossa existência. E a maioria de nós vai viver ainda mais uns trinta ou quarenta anos. Como nos posicionamos diante de nós mesmos, dentro dessa modernidade? Ficamos preocupados com o que sucederá no futuro com a família, vocação religiosa e sacerdotal, com a Igreja, com o ser da pessoa humana etc. Mas será que já tomamos consciência de perguntar: tudo que sabemos e não sabemos, tudo que pensamos acerca disso e daquilo, a verdade de tudo que dizemos saber, como está tudo isso em referência à nossa existência? Toda a modernidade está enterrada até o pescoço no projeto científico. Como nos responsabilizamos do nosso saber e do não saber, dentro dessa era científica? Nós que estudamos ciências, quer teológica, filosófica, psicológica, ciências naturais e humanas?

Mamede: Daqui pra frente, quem vai ficando velho vai ter que querer recuperar fase perdida ou… vai se suicidar.

Hermógenes: Suicidar-se talvez não, mas viver os 30, 20 ou 10 anos derradeiros da sua vida como anos de decadência. Mas o que sempre abalou a história foram pequenos grupos que estavam corpo-a-corpo na busca do essencial. Sucumbiram, depois, mas o que buscaram permaneceu como pequena semente do futuro.

Marcos: Hoje, trata-se do embate da mega-produção por excelência X finitude. Finitude que é a riqueza que está no pequeno, no ser pouco. Enfrentar pequenos problemas pedagógicos, tentando fisgar o núcleo essencial de tais problemas e isso com jovialidade. Se a gente pensa que todo o nosso trabalho assim finito é deficitário em relação ao que está aí no mercado, isso é decretar a própria morte. Pobre é o que sabe aproveitar ao máximo o pouco que tem.

Hermógenes: É pouco. Pequeno. Mas é tudo.

Irmã: Na promoção vocacional não mostramos tudo tão sublime. Ou não é que mostramos tudo como excelente, infinitamente grande, solene? Não é assim que não temos a coragem de mostrar a nossa vocação como assumir o finito? Portanto, a pobreza da nossa existência?

Marcos: Acho que o que atrai é o finito, mas quando entra, se perde no mar da interpretação da nossa finitude como se ela fosse delimitação, carência, privação.

Leitura do 8º parágrafo da carta de Rahner.

Marcos: Diz Rahner, como que gritando: Evangelho… casamento cristão… celibato. Quem puder entender, entenda. Tanto um como outro, casamento e celibato, terminam no mesmo apelo: quem puder entender, entenda.

Ulrich: nesse parágrafo entra um elemento novo que é o Evangelho.

Marcos: Evangelho que a gente deve entender como radicalização do humano.

Leitura do 9º parágrafo da carta de Rahner.

Marcos: Esta compreensão do humano como experiência de finitude, liberdade é fundamental para o humano e para o Evangelho: A vida é uma só. E a chance é uma só. A possibilidade é uma só. Não comparar celibato e casamento. Qualquer dos dois é executar absolutamente o que é finito. Na escritura, celibato está apontando para isso.

Luciana: Eu assisti a um filme, e me ocorreu uma pergunta: como posso saber que o homem da minha vida passou pela minha vida?

Marcos: A possibilidade da minha vida é a que é absolutamente necessária, o único necessário. Velho poeta Rilke, aconselhando jovem poeta sobre ser poeta ou não diz: Você tem que sondar dentro de você se é absolutamente necessário ser poeta!

Fernando: Como chegar ao único?

Marcos: Talvez nunca chego. Ele vem a mim.

Hermógenes: Talvez fosse útil perguntar donde vem esta questão do “como”. Pergunta pelo “como” usualmente é pergunta pelo meio que me facilita, que substitui o corpo a corpo da doação total. O como do homem da finitude é dar tudo o que pode.

Marcos: Quem busca a certeza de que deve se casar com esta mulher ou com este homem já está fora do encontro com este homem ou esta mulher.

Hermógenes: Dar tudo não dá poder. Dar tudo aqui como doação da finitude é dispor-se para receber. Aqui, seja o que for, não há escolha: deve-se dar tudo.

Enquanto tem várias possibilidades de escolher ainda não é liberdade.

Marcos: Poder escolher não é ainda liberdade. Liberdade é mais ser escolhido.

Hermógenes: Equívoco é pensar que já que é escolhido não precisa fazer esforço. Justamente porque foi escolhido, i. é, recebeu a graça de ser recebido é que devo justamente agora dar tudo para ser digno da graça.

Marcos: Não escolhemos nossos pais, nem eles nos escolheram.

Hermógenes: Plenitude não é ficar ou estar cheio. Plenitude é quando eu começo a perceber que quanto mais se ama, mais se busca. E quanto mais se busca, mais desejo a plenitude. Não é estar cheio, mas continuamente se dispondo. P. ex. o masculino e o feminino que se amam realmente. Mas só enquanto o outro ama?! Mas pode-se amar sem ser amado? Se entendemos o amar no nível de querer o outro e ser querido por ele, então nesse querer pode estar um modo de ser que não pertence limpidamente ao modo de ser do querer que se chama amar. A possibilidade de amar no sentido límpido do seu ser é já ser recebido por outro. Pois amar aqui não é favor que se faz ao outro, mas é receber gratuitamente o poder amar o outro do outro; e esse ao dar ao outro essa possibilidade, não lhe está fazendo favor, mas implorando que o outro receba o dom do seu amor. Aqui, mutuamente se agradece por poder amar. Agora, amar, no sentido de submeter o outro com seu amor, não é amar no sentido próprio. No amor deve-se pedir sempre de novo que o outro se doe à gente e que nos receba…

Marcos: No amor, a relação não é propriamente a de dar primeiro e depois receber. No amor dar já é receber.

Hermógenes: Um ponto do qual a gente está se alienando cada vez mais é pensar que o amor é algo muito sublime e distante. A estética e a literatura falam nessa direção. Na realidade o amor é o que move todos os amores, todas as paixões, das mais sublimes até às mais sórdidas, sem se tornar sórdido.

 

Masculino e feminino

Domingo, 31/10/04: Colocação do frei Hermógenes Harada

Tentei formular um texto referente ao tema o masculino e o feminino. Depois de várias tentativas, percebi que não conseguia elaborar um texto viável. Peço desculpas.

Quando tentava formular o tema “o masculino e o feminino”, notei que iam surgindo mundos e mundos de pressuposições; e que o masculino e o feminino eram como que pontas de um enorme iceberg. Conforme se aviava uma abordagem, surgia um mundo todo próprio de pressuposições. Esse fato de, em cada abordagem surgir perspectivas diferentes de mundos de pressuposição, levava-me sempre de novo a me interessar por esse problema das perspectivas de interpretação. Assim sendo, pensei, sob o pretexto do tema o masculino e o feminino, conversarmos juntos acerca do que na filosofia recebeu o nome de teoria das dimensões.

Usualmente, todos sabemos o que é uma pedra e também o que é uma pessoa. Consideramos como óbvio tratar uma pedra como objeto do nosso saber e a pessoa também como objeto do nosso saber. E percebemos de imediato que uma pedra é bem diferente da pessoa humana. Na realidade o que denominamos de objeto do nosso saber não é uma coisa isolada, ali diante de nós. Pois cada coisa, quando se nos apresenta diante de nós, ou vem de encontro a nós, já está dentro de toda uma paisagem de coisas, impregnada cada vez no seu todo de um determinado sentido do ser. A totalidade a partir e dentro da qual um ente se nos apresenta se chama mundo. Como tal um mundo é um todo, próprio. Em vez de mundo, deixando de lado certas diferenciações, podemos também usar os termos horizonte ou melhor dimensão. Eu posso reduzir todos os entes, atuais e possíveis, a partir e dentro de uma dimensão, de tal modo que posso explicar tudo, a partir e dentro de uma dimensão. Pensar o relacionamento entre uma dimensão e outra ou entre as dimensões é complicado, pois não se deve, nem se pode coisificar dimensão como se fosse um objeto ou uma coisa. A sondagem de relacionamento entre as dimensões não se dá a modo de uma tentativa de classificar as espécies debaixo de um gênero comum. Nessa sondagem trata-se de auscultar o sentido do ser de totalidade, cada vez, por sua vez. Somente na medida em que se exercita e se fica familiarizado com o modo de ser das dimensões e do que na filosofia se denominou sentido do ser é que  se pode ver como é e em que consiste o relacionamento entre dimensões. Aqui, no nosso encontro, não é nossa finalidade, adentrarmos o mais profundamente na assim chamada teoria das dimensões. No nosso colóquio, apenas queremos despertar para o problema das dimensões, e assim mencionar por cima que existe a assim chamada teoria das dimensões. E rapidamente ver como essa teoria, uma vez que nos familializarmos com ela, poderia nos ajudar a orientarmos com mais distinção e clareza os nossos diálogos, que se dão a partir e dentro de diferentes pontos de vista, em confronto com suas raízes donde surgem os pontos de vista. Embora exemplos sempre manquem, vamos mencionar um exemplo: hoje de manhã, na varanda do eremitério Beato Egídio, onde estou morando, estava vendo a mata que acompanha o rio. Já estava o dia surgindo, e a mata começava a surgir na sua paisagem, com frescor e nitidez. De repente, percebi que saltava aos olhos um arbusto, cuja copa era toda uma floração de flores amarelas com fundo verde claro. O olho que, atraído pela floração, rastreava a totalidade da copa, viu que se estendida ali, como uma grande cabeleira, correndo para baixo, traços bem nítidos de cor marrão escura quase preta. Eram galhos, que por sua vez se uniam num tronco delgado, preto, sinuoso que se perdia para dentro da terra escura. De súbito percebi que todas as árvores, os arbustos, folhagens e capins aos pés das árvores, em mil e mil diferentes variantes tinham a mesma estrutura. Copa, galhos, tronco que se perdia cada vez de modo diferente para dentro da terra escura. E comecei a imaginar as raízes, como elas se ramificavam para dentro da terra, sugando da terra a vida que floria na copa. Imagine o mundo, como o todo de uma árvore assim ou de outra vegetação qualquer. Em cada um dos galhos que compõem a copa, está pulsando o suco que vem das raízes, através do tronco e dos galhos principais. Lá onde as raízes alcançam a terra e sugam a vida, é o sentido do ser que perfaz e constitui o todo de uma dimensão. O homem é como um dos galhos que constituem a copa, e está rodeado de outros galhos, i. é, outros entes que não são homem, e como galhos formam um todo chamado copa florida. Mas o homem, entre outros galhos, é um galho cujo galho dá galho de ter que se preocupar pela vitalidade do todo da árvore. Com outras palavras, é um galho privilegiado pela responsabilidade de cuidar do vigor da árvore, no seu todo, continuamente estando atento, indo para dentro de si para colocar-se na raiz do todo da árvore, lá onde o todo recebe e colhe, recolhe, suga o suco da vida, i. é, onde recebe o sentido do ser que impregna o todo da dimensão em que o homem e os entes circundantes estão. Assim, o homem é aquele ente que tem ponto de vista, cuja vista sempre de novo está auscultando e examinando a raiz donde vem o seu ponto de vista que cria todo um mundo de conhecimento. O homem, cada vez, sempre de novo se acha num todo, no mundo, numa dimensão, mas com a capacidade de auscultar sempre de novo o sentido do ser a partir e dentro do qual se constitui o todo da dimensão. A totalidade da compreensão, da visão, da interpretação etc., da realidade se dá no homem, como o lugar onde e a partir do qual desabrocha todo um mundo de compreensão do ser, cujo sentido é a realização diferenciada e sempre renovada da imensa possibilidade da revelação do ser. Essa é a estrutura do nosso saber. Todo e qualquer saber tem essa estrutura da dimensão. O mais importante no colóquio é cada um de nós, em estando numa dimensão como con-sciência da dimensão, nos embates das discussões, ir entrando para a raiz da sua dimensão, e ali auscultar o sentido do ser que toca o fundo de nossas pressuposições profundas. Refletir e pensar é começar a entrar nas nossas pressuposições, e estar ali aberto para o toque do sentido do ser que nos advém do fundo.

Vendo a Vida Religiosa e eclesiástica e também a nossa vida moderna cotidiana, nas suas estruturações e programas e projetos, percebemos que estamos inteiramente afetados pela tonância de uma gigantesca instituição chamada mundo científico. Todos nós somos participantes desta situação atual que pode não ser necessária intrinsecamente, mas que é um fato histórico. Nos vemos e descobrimos como humanos, enterrados até o pescoço aí dentro do mundo científico. É a nossa situação, que queremos e devemos assumir como tarefa da responsabilidade do nosso esclarecimento. A vida espiritual ainda não se percebeu nessa situação, e nesse sentido somos um tanto alienados e ingênuos na conscientização dessa nossa tarefa. Consideramos ainda as ciências como psicologia, sociologia, teologia pastoral etc., como instrumento neutro para o trabalho da pastoral ou como um aggiornamento do nosso conhecimento, para não ficarmos antiquados ou estarmos mais adaptados para a sociedade moderna. O estudo das ciências, os estudos acadêmicos podem ter essa finalidade. Mas eles são muito mais do que isso. Estudo é essencialmente uma tarefa que a nossa época nos impõe, como cuidado e responsabilidade para com o que está acontecendo na raiz do mundo científico como o lugar onde hoje está em atuação um determinado sentido do ser que cria todo esse mundo de progresso e de regresso de um tipo, denominado mundo científico-tecnológico. Por isso, religiosos e religiosas que estudamos não podemos nos contentar em ser apenas funcionários práticos de uma ciência positiva, sem nos importarmos pela teoria que está pressuposta no fundo de cada ciência como o seu positum. Por isso se alguém estuda uma ciência, e se for perguntado quais são os conceitos fundamentais da ciência que está estudando, deve poder responder enumerando e explicitando esses conceitos fundamentais, que são como que registros centrais de todo um conjunto ramificado de implicações como mundo. Se não ficarem estudando seus pressupostos fundamentais, as ciências positivas não progridem ou se transformam facilmente em mundividências, crenças ou ideologias.

Hoje, portanto, em vez de falar diretamente do masculino e feminino, ao expressar a importância de conhecermos a questão das dimensões, gostaria de apresentar duas estórias-anedotas do budismo Zen, para, à mão dessas estórias, tentarmos ver o que suscinta e caricaturalmente expusemos acerca da teoria das dimensões.

Pequeno debate antes de colocar duas anedotas Zen.

Hermógenes: Para intuir a diferença de dimensões, um exemplo. Ontem Naná, ao querer ilustrar um ponto essencial da vida religiosa deu dois exemplos – do perfume e do supermercado.

Irmã Ananias (Naná, franciscana de Bonlanden, mestra das postulantes): Eu percebi logo, enquanto estava dando o exemplo, como os meus exemplos estavam numa dimensão inteiramente diferente à da vida religiosa!

Luciana: Há, no saber, a tendência de extrapolar na compreensão, i. é, compreender demais. Se você pensa que compreende demais, não está compreendendo, diz Lacan.

Hermógenes: A palavra e o conceito libido, no todo e à raiz da pré-compreensão freudiana, podem significar uma realidade diferente e bem diferenciada do que no todo e à raiz da pré-compreensão jungiana ou no uso p. ex de certas prescrições eclesiásticas a respeito da liturgia católica. P. ex. quando no antigo livro denominado Ordo, onde se assinalava prescrições da missa e do ofício de cada dia, se usava o termo ad libitum, significava a palavra libitum vontade, portanto ad libitum = à vontade, livremente; ora a palavra libitum e libido é a mesma. Diante de mim está a pedra e a pessoa. Alguém me pergunta: você distingue pedra de uma pessoa? Respondo: Claro que distingo uma da outra. O problema é esse “claro que”. Vamos enumerar alguma coisa que a gente pensa que está claro e não está?

Marcos: Coração e razão. É conhecida a famosa frase de Pascal: O Coração tem razões que a Razão desconhece. O que significa coração? Razão?

Luciana: Se diz:  a depressão pós-parto é hormonal. Mas em que dimensão está o hormonal e em que dimensão se acha depressão?

Hermógenes: Talvez se pensa que está na mesma dimensão, porque quando se toma o remédio hormonal, desaparece a depressão. Mas essa relação de causa e efeito basta para cientificamente dizer que hormônio e depressão estão dentro da mesma dimensão? E se, depois de tomar o remédio, a depressão volta, isto significa que hormônio e depressão estão na diferente dimensão? E o que significa estar ou não estar na dimensão? Todas essas explicações fecham a questão?

Luciana: A mãe trata a criança recém-nascida como a criança que ela foi.

Leila: Tanto se pode fechar a questão no hormonal, como na explicação psicológica da “criança que foi”!

Hermógenes: Vamos ver um pouco o que foi dito, sob a perspectiva da teoria da dimensão. O conceito fechar no hormonal pode ser uma coisa e fechar na “criança que foi”, ser outra. Por ex., não entra afeição de mãe no fechamento hormonal. Há totalidades diferentes de níveis, aspectos. Progresso da ciência é checar as pressuposições e não apenas tirar novas conclusões e aumentar os volumes de construções.

Marcos: São duas dimensões, a hormonal e a “criança que foi”. Antigamente, ao ler Freud, tinha dificuldade com ele. Ele parecia mecanicístico e químico. Aos poucos fui vendo que não era bem assim. Que não era pura repetição na psicologia da estrutura físico-química mas dimensão.

Hermógenes: Podia ser assim que Freud estava reagindo contra o mecanicismo, mas usou as mesmas expressões do mecanicismo.

Marcos: Vamos dar um exemplo na área espiritual. P. ex. acerca de São Francisco. Na Promoção Vocacional, p. ex., nos filmes não misturamos dimensões defasadamente?

Daniel: P. ex., nós hoje perguntamos ao ler I Fioretti:  São Francisco faz realmente frei Masseo rodopiar, tratando-o como criança, e o submetendo à obediência infantil, a de cadáver?

Marcos: Indicado o caminho a tomar, segundo a vontade de Deus, Francisco e Masseo vão para Siena. E encontram lá uma guerra fratricida, prestes a desandar em carnificina. Anuncia a palavra de Deus, pacifica os cidadãos e faz reinar a Paz. Aquilo que achamos absurdo, infantil, desencadeia uma caminhada certeira que atinge o âmago de uma questão da vida. Essa intervenção divina através de São Francisco é valorizada pelo Bispo, em o bispo honrando e elevando a santidade de Francisco. Este imediatamente sente o perigo de as dimensões serem confundidas, e se retira, sem nem sequer agradecer a gentileza do bispo.

Fernando: Dentro do cuidado de não misturar ou trocar as dimensões, como ficam os nossos falatórios acerca de São Francisco e ecologia; São Francisco como Padroeiro e consumidor do belo?

Marcos: A respeito de rodopiar como um gesto místico; os místicos muçulmanos – Sufis – atingem a iluminação girando até cair.

Hermógenes: Há na Ásia, uma história sobre Confúcio que talvez tenha algo a ver com o sentido do rodopiar na encruzilhada. Confúcio pregava uma renovação total da vida, principalmente a reforma ética no governo do estado. Assim, se engajou na luta da reforma política da China. Angariou amigos e inimigos. Umas cidades aceitavam-no, outras o hostilizavam e o perseguiam, tentando matá-lo. Certa vez se dirigia numa missão muito importante, para uma cidade amiga, numa diligência, com seus discípulos, os mais achegados a ele. Com as rédeas na mão, dirigia a carruagem o seu primeiro e melhor discípulo. De repente, chegaram a uma encruzilhada, onde o caminho se separava em três diferentes direções. Se errasse a escolha do caminho, poder-se-ia chegar à cidade dos inimigos e então a Confúcio e ao seu séquito rolariam as cabeças. A certa distância, no arrozal ao longo da estrada, um camponês, silenciosamente plantava arroz. Confúcio disse ao discípulo condutor: “Vai te informar acerca do caminho  com o camponês”. A contragosto o discípulo se aproximou do camponês e lhe disse: Oi, qual dos três é o caminho para cidade X? O camponês nem se quer levantou o vulto, continuou inclinado, em silêncio a plantar arroz. O primeiro discípulo de Confúcio, um tanto irritado o interpelou: “Como é! Estou lhe perguntando pelo caminho”. O camponês na mesma posição de antes, lhe indagou: “Quem é aquele que está lá na carruagem?” “O grande Confúcio!”, respondeu o discípulo de Confúcio. O camponês prosseguiu: “E quem é você?” “O primeiro discípulo do Mestre Confúcio”, disse altivo o discípulo. O camponês, sempre ainda na mesma postura inclinada, disse: “Se aquele lá é Confúcio e você seu primeiro discípulo, devem saber que caminho tomar numa encruzilhada. É primeiro, segundo e terceiro, unicamente”. E emudeceu. Por mais que insistisse o discípulo de Confúcio, o camponês nada dizia. Continuava simplesmente a plantar arroz. Irritado, confuso e chateado o discípulo voltou à carruagem. Confúcio, que de longe tudo ouvira, lhe disse: “Finalmente encontraste um osso duro de roer! Passa-me as rédeas, eu vou agora dirigir a carruagem; e animado, entrou no primeiro caminho que estava mais próximo da carruagem. E chegaram depois de muito viajar, à cidade amiga. O camponês era um monge taoísta que vivia retraído como camponês, vivendo os afazeres da existência na busca da iluminação. Iluminação que nos faz ver que todo e qualquer caminho da vida, se caminhada como o destinar-se, i. é, como história da existência, é sempre decisão de vida e morte, seja que ele nos conduza à vida, seja que nos leve à ruína. O que no cristianismo se chama vontade de Deus e obediência à vontade de Deus não seria para Francisco e Masseo sempre e cada vez encruzilhada da decisão do destinar-se da vocação do seguimento de Jesus Cristo? Talvez uma estória que fala a partir e dentro de uma tal dimensão nada tem a ver com imposição indevida, cegueira e negação da própria personalidade, ou muito menos com a infantilidade. Aqui parece aparecer de modo um tanto mais claro a necessidade de perguntar a uma explicação psicológica de um tal fenômeno religioso e à interpretação vivida e assumida da vida religiosa real, necessidade de perguntar a partir e dentro de que dimensão essas interpretações estão falando. Quem sabe, se São Francisco de I Fioretti não está querendo dizer algo semelhante ao ordenar que Masseo rodopiasse no lugar onde estão os seus pés, i. é, também que Obediência “de cadáver” não é subserviência, mas zelo pela iluminação..

Regina: Rahner ao falar ao seu antigo aluno não está destacando que o celibato (um caminho) e o matrimônio cristão (outro caminho), se assumidos como existência na seriedade de uma decisão existencial, indicam cada qual o caminho certo da vida? Com outras palavras, Rahner está dizendo o mesmo que a história de Confúcio quer dizer.

Hermógenes: Quando, com muita facilidade e empáfia, se interpreta as coisas ou as causas da vida religiosa com categorias como a do autoritarismo, obediência cega fundamentalista, infantilismo, podemos estar ingenuamente cometendo extrapolação grave, “anticientífica”, tanto contra a religião como também e principalmente contra a própria ciência, no nosso caso, psicologia, historiografia, sociologia etc. O mesmo talvez possa valer, quando falamos de São Francisco como padroeiro da Ecologia, colocando toda a questão dentro de um esquema hodierno, tendo de um lado a natureza intocada, simples, inocente, “virgem”, e de outro lado a nossa civilização etc., portanto, dentro de uma pré-compreensão da realidade, vida e natureza, digamos a la Rousseau ou a la filmes de Tarzan, e veneramos a São Francisco como modelo e exemplar da simplicidade, espontaneidade, naturalidade a la naturalismo da sociedade americana enquanto decadente. Um tal Francisco e também uma tal Clara de Assis, não poderiam ser antes um produto global daquela fábrica de ilusões de Saldanha Marinho?  Os filmes como os do estilo “Irmão Sol, e Irmã Lua”, por mais edificantes e bonitos que sejam, não poderiam estar numa impostação, onde se dá sempre de novo equivocação das dimensões? Em todo caso, esse modo de ser da existência descrito nesses produtos hodiernos não consegue mostrar a realidade da existência religiosa de uma personalidade como a de um São Francisco de Assis. Isso porque reduz todo o ser da busca e do trabalho artesanal da existência ético-religiosa ao horizonte estético. Não sei se tal colocação ajuda a nossa vocação.

Marcos: Saber de que dimensão se trata e ter inteligência (inteligência significa saber ler entre as linhas) para aquela dimensão é decisivo e de muita importância para a nossa vocação.

Hermógenes: E cada dimensão tem sua lógica. E a dimensão mais profunda compreende, subsume a dimensão mais rasa e superficial. Mas a mais rasa não compreende a mais profunda.

Marcos: O que usualmente chamamos de reflexão, e reflexividade, no fundo não é outra coisa do que a capacidade de deixar repercutir o fundo.

Hermógenes: Não sei se já observou como se representam certos portraits de contemplativos, e isto principalmente na Ásia. Um contemplativo tem olhos vesgos, virados para dentro. Isto significa que olha para frente, mas em olhando para frente, para isso e aquilo, se concentra, olha para dentro da pré-suposição, a partir e dentro da qual temos a possibilidade de ver isso e aquilo. Nesse sentido, um contemplativo como frei Egídio de Assis, pode ser analfabeto, e tem clarividência enorme na/da sua dimensão.

Ao falar da teoria das dimensões, assim pro-vocando Geraldo que é cobra na dimensão físico-matemática, se alguém disser para ele desencadear uma ação pastoral, usando a exatidão e a limpidez da matemática, pode ficar inexato e não límpido na dimensão pastoral. Seria mais ou menos como um camponês que limpa tanto o humus que o transforma em montes de areias brancas. Aliás, isto certamente não aconteceria com Geraldo, pois ele é um físico que, qual Pascal, tem muita sensibilidade para dimensão da vida que em Pascal recebe o nome de Espírito de finura.

Luciana: Cada um vê com seu olho. Fala de um lugar que é o seu.

Marcos: Nós escutamos. Nós não só ouvimos, mas escutamos. Nesse momento tem som de passarinho, de trator, de tosse, de passos, latido de cachorro. Nosso ouvir é reflexivo, ressoa… É deixar ser o eclodir do mundo. Isso, à medida que a gente vai para dimensões mais profundas fica mais difícil.

Hermógenes: Uma vez deixei na pasta um gravador ligado, e saímos nosso professor e um pequeno grupo de 4 pessoas, à rua, a caminho de outra localidade. A caminho todos nós metemos pau na colocação de certo catedrático de filosofia. Em casa, percebi que o gravador estava ligado e fiquei curioso o que tínhamos falado a caminho. Não consegui captar nada, pois só ouvi barulhos que identifiquei como barulho de carros, algazarra das pessoas que caminham, etc. etc. O gravador, só, não ressoa. Apenas registra.

Marcos: Diz o salmista: ouço uma palavra e escuto duas. O homem ouve o que não foi dito também.

Hermógenes: Ser humano capta o sentido. O sentido é sempre um todo. Gravador não recolhe o todo, o sentido.

Marcos: Ensinar é despertar-se e despertar alguém para a dimensão. A gente percebe, depois de anos, quando o aluno tem um clic.

Geraldo: Nós ouvimos muitas ondas sonoras e as filtramos, selecionamos e as fazemos ressoar, colocando, retraídas, no fundo outras ondas que não selecionamos.

Marcos: Ondas? Não ouvimos ondas. Onda já é uma interpretação abstrata da experiência originária.

Fernando: Você ouve uma voz feminina falar para a criança. E de imediato você percebe: é mãe quem fala. É que captou o mundo, no qual a fala se deu.

Hermógenes: Nós não comemos átomos. Comemos, sim, pão. Se eu digo que como átomos, devo reduzir também a boca que come átomos, ao conjunto de átomos. No mundo físico-matemático não tem sentido falar de gosto, tato no sentido usual, a não ser que se reduza todas essas realidades à medida físico-matemática. O físico, enquanto físico, sabe de tudo isso muito bem. Ele, enquanto físico, não diz que escutamos ondas. Parece que o mundo moderno está caminhando para a límpida distinção de dimensões. No programa de Sérgio Groismann na TV, houve uma vez entrevista com Inri (I = Iesus; n = Nazarenus; r = Rex; i = iudeorum), que se diz Jesus Cristo (ele é um descendente alemão, nascido na cidade catarinense de Indaial). A platéia, na maioria estudantes secundários e universitários, por maior absurdos que ele afirmasse, não o debochavam com desprezo. E quando na sua resposta Inri respondeu com limpidez dentro do seu ponto de vista, i. é, foi coerente com as suas pressuposições, bateram palma. E quando misturava dimensões, o vaiavam.

Leitura da anedota: Monge carrega moça nos braços para atravessar o rio.

Hermógenes: A primeira anedota se refere à viagem de iluminação que os monges budistas empreendem na sua formação. Depois de ter absorvido a formação inicial e ter recebido a confirmação de que pode continuar a caminhada budista, os monges devem partir em viagem, atravessando o país, visitando outros mosteiros, experimentando as vicissitudes de uma peregrinação e assim corpo a corpo com a existência de um peregrino e investigador da iluminação, dispor-se a receber sempre de novo e a cada momento a iluminação.

Leitura das anedotas.

Anedotas Zen

  • 1ª anedota: Dois monges budistas estavam a caminho na busca da iluminação. Um deles era mais idoso, outro bem novo. Depois de muito caminhar, chegaram a um rio, onde era necessário arregaçar as vestes quase até a cintura, para passar a vau. Uma moça viajante, muito bela, em quimono, estava em apuros, pois o encarregado de transportar as pessoas para a outra margem do rio, não viera trabalhar. O monge mais idoso se aproximou da jovem, disse-lhe “Com licença” e a carregou nos braços, atravessou o rio e a colocou na outra margem. E sem dizer nada prosseguiu o caminho com o seu companheiro mais jovem. Este, a caminhar atrás do outro monge mais idoso murmurava: “Onde se viu, no caminho da iluminação, abraçar uma moça, ele que deveria ser sóbrio e casto, já maduro na sua experiência da busca e realização?” Ao ouvir atrás de si a murmuração, disse o monge idoso: “A caminho da iluminação, há alguém que ainda está abraçado a uma bela e atraente jovem mulher”.
  • 2ª anedota: Era uma vez velha viúva rica, budista, leiga, muito piedosa, fervorosa na busca da iluminação. Desejava ter tido um filho monge, mas nenhum dos filhos seguiu o caminho da perfeita iluminação. Decidiu adotar um monge. Construiu um pequeno eremitério, num lugar silencioso e retirado, cercado de uma belíssima paisagem, longe dos burburinhos mundanos. Foi ao mosteiro mais próximo e ofereceu ao abade o eremitério, e lhe prometeu cuidar do sustento e do bem-estar do monge que quisesse doar-se full time à meditação, e assim aplicar todas as suas forças somente à aquisição da iluminação. E recebeu do abade um monge, de grande dedicação à contemplação, que meditava sem cessar, dia e noite, sem nenhum apego às coisas mundanas, sem nenhuma distração. A velha viúva estava satisfeita. Mas depois de um ano, quis ver o progresso do seu monge de adoção. Chamou uma empregada, belíssima e ansiosa por encontrar um marido e lhe deu a seguinte tarefa: “Minha filha, o monge que mora naquele eremitério, seria um bom partido para ti. Ele é bom e belo, cheio de saúde, é um homem sério e reto. Vai seduzi-lo, usa de todos os teus recursos femininos para que ele se apaixone por ti. Se o conseguires, ele que é meu monge adotado, é teu”. A moça que já há muito tempo sentia uma grande atração e admiração pelo jovem monge, usou de todos os recursos para atraí-lo a si. Depois de uma semana de tentativa, achegou-se à velha mulher, em prantos, e sem nada dizer mostrou-lhe um pequeno bilhete, escrito pelo monge. Ali estava uma haikai, uma pequena poesia, escrita em belíssimas letras chinesas, mais ou menos de seguinte teor: Sou uma grande rocha, firme, impávida e fria, a pedra de iluminação. O que quer esse raquítico cipozinho a se enroscar em mim, com seus fiapos de tentáculos, carentes e sem consistência?” Ao ler essa poesia, a velha se encolerizou, e disse numa voz surda, baixinha mas cheia de determinação: “Alimentei por um ano um charlatão preguiçoso, travestido de um monge!” Incendiou o eremitério, e expulsou o monge a golpe de caçarola”.

 

Foi proposto acrescentar a essas duas anedotas, uma terceira:

  • 3ª anedota: Havia uma abadessa já de idade que outrora fora uma das discípulas mais iluminadas de um grande Mestre. A abadia, onde morava a abadessa, distava centenas de quilômetros do mosteiro, onde ensinava o antigo mestre. Um dia, a abadessa ficou com uma imensa saudade do mestre e decidiu viajar para visitá-lo. A viagem se fazia naquela região e naquele tempo a pé. Ela andou dias a fio, atravessou montanhas e rios, perigos de assaltantes e animais ferozes e aproximou-se da última subida que levava ao mosteiro do mestre. O velho mestre, a observava do alto do muro do mosteiro, onde havia um monte de terra fresca, para a construção de um espaçoso jardim. Ao perceber que a abadessa o tinha avistado, gritou-lhe de cima: “O que a vaca velha veio buscar aqui no mosteiro?” Prontamente respondeu a abadessa, também gritando: “Amanhã, na montanha X (distante centenas de quilômetros dali), vai haver a festa do encontro universal (onde se dirigiam crianças, jovens, adultos e velhos, trazendo toda sorte de espécies animais e plantas, numa imensa festa de fraternização cósmica). Mestre, o Sr. vai para lá?” O velho mestre deu uma gostosa gargalhada e deitou-se no monte da terra fresca e se lambuzou de terra, como se fosse um porco a rolar na lama, gostosamente. A abadessa, a querida discípula do mestre, deu também uma gostosa risada e sem dizer uma palavra de despedida, virou ao mestre as costas e voltou contente para a sua abadia.

[Como acima foi assinalado, Hermógenes tinha preparado alguns textos, todos incompletos e não satisfatórios acerca da questão da afetividade e sexualidade, sob o título Anotações espirituais em torno do masculino e feminino, uma questão. Na discussão foi, da parte de Hermógenes, resumido o pensamento que estava nessas apostilas de modo avulso e meio desengonçado. Quem quiser os textos dessa e outras apostilhas que Hermógenes preparou mas que não usou por não ter dado certo, pode encontrá-las no fim desse relatório, como apêndice.]

{Continua o relatório das discussões do dia:}

Hermógenes: Na 1ª anedota: Se se perguntasse para o velho monge se carregou uma moça e ele respondesse: “ela estava pesada?”, nessa observação não há nada de afetivo, nada de simpático ou antipático, nada de sensual, estético ou erótico. Pois, trata-se de uma constatação da medição quantitativa de peso. Quando um massagista ou uma massagista trata o(a) seu(ua) cliente, enquanto massagista, pode e deve permanecer na dimensão da massagem. Por isso, o seu toque é fisiológico, jamais sensual ou erótico. E da parte de quem é massagiado, o gozo do toque é também fisiológico, e não sensual ou erótico. Assim massagista que possui a ética profissional não mistura a sua dimensão profissional de terapeuta com a dimensão pessoal-subjetiva de relacionamento mais íntimo com o(a) cliente. Se mãe carrega filho pesado, pode sentir o peso não somente como medida de averiguação quantitativa do peso, mas sim como satisfação do filho ser sadio e bem nutrido. Aqui a maternidade subssume o peso matemático-físico, transformando-o num fenômeno de uma outra dimensão mais humano-pessoal. Assim, ela pode dizer: “Como é gostoso que o meu filho seja tão pesado!” No entanto, o velho monge, embora carregue a moça e sinta a moça dentro da dimensão da averiguação quantitativa do seu peso, tem no fundo do seu sentir a percepção de que esse peso é uma pessoa humana. Portanto, distingue o peso da moça do peso de um saco de batatas. Por isso, não a joga no chão, como se ela fosse um saco de batata, uma vez atravessado o rio; mas a coloca delicadamente de pé, no chão. Saco de batata com o seu peso não me causa tentação erótica, pois para tanto o peso que carrego deve possuir a qualificação, superior que o coloca dentro da dimensão humana.

Na segunda anedota o monge confundiu a perfeição do autodomínio dos instintos e impulsões do seu ser com a insensibilidade de uma coisa-pedra. De tal modo que nem sequer tem tentação, e isso não porque se tornou mais perfeito no ser, mas porque decaiu no seu ser ao modo de ser da coisa. O monge devia ter percebido que se enroscara nele um ser, uma pessoa humana, apaixonada por ele, disposta a lhe dar a vida por amor. Ela não era cipozinho seco. Era uma pessoa, viva, na busca da felicidade e realização. Não era cipozinho. Tratá-la, a partir da dimensão humana e como a um ente dentro da dimensão humana, seria p. ex.: o monge ter-lhe agradecido pelo carinho e amor que ela lhe oferece, mas lhe mostrar que ele já está comprometido com seu caminho todo próprio da busca da iluminação, e que ele não pode corresponder ao seu amor como ela quer ser correspondida. Um homem pode carregar a moça e sentir a sua pele fina e fofa e estar sentindo afeição erótica por ela. Massagista pode também sentir a pele de uma cliente na massagem, e senti-la fina e fofa, mas ao assim sentir a sua pele estar concentrado em cuidar para não apertar de mais e não a ferir. À minha sobrinha, uma vez no ônibus, alguém lhe assobiou “fiu-fiu” e gritou, oh gostosura! Ela imediatamente avançou sobre o rapaz e lhe de uma bofetada. Ela de imediato captou a dimensão donde partiu o assobio e significação da gostosura. Quando lhe disse em gozação que aquilo poderia ser um galanteio e um elogio, ela me disse: Aceito isso só do meu namorado…

Luciana: Na terapia, a gente deve guardar bem a diferença das dimensões. Paciente é touro. Terapeuta é toureiro. Terapeuta nunca lhe dá as costas. Não acolhe. Mas também não nega.

Hermógenes: Vamos ver a troca de dimensão num caso. Conheci um jovem sacerdote, vigário paroquial, que era líder da juventude. Uma moça do grupo dos jovens se apaixonou por ele. Um dia ele me disse que ele usava aquele relacionamento dela com ele, não para corresponder à paixão da moça, mas para aproveitar da situação e assim aumentar a experiência sua, pois ele tinha muita pouca experiência com as mulheres. O jovem padre considera a pessoa da jovem apaixonada como meio instrumento para adquirir experiência e crescer na sua praxe pastoral! E a jovem está inteiramente num outro modo de ser, na qual a questão é de vida e morte, no sentido existencial. Tal atitude da parte do sacerdote é iníqua, pois degrada uma pessoa a uma coisa chamada instrumento. E uma das grandes convicções que vem da clarividência do vigor Ocidental é o princípio sagrado que diz: a pessoa humana jamais pode ser usada, jamais ser considerada como meio para um fim, por mais nobre que seja o fim (Cf. o pensador Kant).

Fernando: A atitude do monge que transportou a moça para a outra margem do rio não é no fundo igual à do monge que se definiu como imensa rocha fria, a qual se enroscou um cipozinho mirrado e seco? Tanto um como outro tem por meta a iluminação e tudo que não serve para iluminação não os atinge…

Hermógenes: Eu não sei. Iluminação como excelência da perfeição pessoal? Quando o monge carrega a moça como um momento da caminhada para a iluminação, o acento está na meta chamada iluminação, e todo o resto é considerado como provisório e episódio do caminho. Acho que o pivô da questão, por que a velha viúva chamou o monge-pedra de charlatão, é porque o monge entendia e buscava a iluminação como a excelência do seu eu, como meio de promoção da perfeição do eu dele, e não estava propriamente doado à iluminação, como quem se doa a um grande amor do outro, do Tu-outro radicalmente doado a ele como graça e dom. Pode ser que o velho monge da primeira estória estava inteiramente doado à iluminação, não como meio da sua promoção pessoal na perfeição, mas como quem foi chamado gratuitamente pela iluminação.

Marcos: Sensorial é uma dimensão. Sensual é outra. Na genitalidade, que é apenas um aspecto da sexualidade, incidem juntas, mas de maneira diferente, as dimensões sensorial e sensual. Ternura, por exemplo, é um fenômeno que ultrapassa as dimensões sensorial, sensual e genital. Num filme, por exemplo, uma prostituta se recusava beijar os seus clientes. Mas quando ela se apaixonou por um homem e deixou de se relacionar com ele como prostituta e sim como namorada, ela passou a ter outros gestos de carinho e ternura e gestos próprios da sensualidade e sensorialidade passaram a ser significados de outro modo.

Hermógenes: Mesmo no ambiente, onde o medium era a sensualidade, erotismo, como no caso da casa de Gueixas (gueixas no antigo Japão, não eram propriamente prostitutas, mas mulheres que foram treinadas para servirem e darem conforto e bem-estar aos hóspedes, principalmente aos homens. E disso tudo, facilmente se passava a intercurso sexual). Mas, havia, segundo relatos da História, muitas gueixas famosas que distinguiam nitidamente dos seus serviços sexuais, o amor de enamoramento que sentiam por um homem, num relacionamento de Eu-Tu. Aqui elas não davam o seu coração a ninguém, a não ser somente e exclusivamente para o seu amado, mesmo que isso lhes custasse a vida.

Mamede: Frases de cantada sexual de charge do jornal Folha de S.Paulo: To aí nessas carnes! Regulando essa mixaria! Solta a franga!

Hermógenes: Conheci um jovem que vivia no meio de um ambiente decadente, cheio de sacanagem e frivolidades eróticas. Conheceu e se apaixonou por uma jovem que possuía um caráter muito nobre e decidido, e que o amava realmente. O rapaz se transformou. É que se lhe abriu uma dimensão até então jamais conhecida.

Marcos: A luz se decompõe em cores. Mas há uma gradação. Na sexualidade também. E não é só grau, mas qualidade. A luz vai de infravermelho a ultravioleta. Sexo vai de encosto-pedra até ao encontro inominável de um Deus que se faz servo…

Hermógenes: O grande perigo do monge encosto-pedra é de ele considerar e buscar a iluminação como fomento da excelência do seu eu. O eu que não percebe que ele é já tocado pela graça do outro e que a verdadeira excelência do eu é doar-se ao ser recebido por amor do outro. Excelência em função do próprio eu seca a terra a partir e sobre a qual nasce, cresce e se consuma a vida humana. A vida humana vira pedra-podre. Na história da Abadessa que visita o velho mestre, o mestre ao perguntar por que a vaca velha veio até aqui, perguntou: “O que falta à mãe de tantas filhas, qual vaca leiteira, fecunda e plena? Sofre ainda de carência afetiva?” E a abadessa contrapergunta ao mestre: “Na sua plenitude de perfeição e excelência da iluminação, o Sr. não se transformou num eu gordo, cheio, sem nenhuma necessidade interna, a modo de uma coisa grande e cheia, que não mais entende nem acolhe a quem luta, sofre e busca, seja o que for, seja mesmo na carência afetiva? Onde o Sr. se acha? Não se esqueceu de ir à festa da cordialização universal?” E o velho mestre, dando uma gostosa gargalhada lhe responde: ”Ora, ora minha filha, minha companheira, tanto você como eu, não estamos todos os dias, a cada momento chafurdados que nem um porco satisfeito e realizado no seu elemento, na lama cordial do amor universal que desde há muito tempo nos atropelou? Fique tranqüila, estou lá onde você também está, i. é, na busca contínua da iluminação”. A nossa união não é entre você e eu, nem entre tu e eu, mas sim nós, cada qual na excelência da própria individuação historial, estarmos continuamente seguindo o toque do grande amor que nos amou primeiro, como valentes companheiros, sócios, irmãos de um e mesmo seguimento”. Foi por isso que sem dizer nada, a abadessa virou rapidamente as costas para o mestre, dando risada plena de satisfação, e pisando firme o primeiro passo de volta a sua abadia. Conta-se que nesse instante, a abadessa se achou de volta na sua casa, lá onde como vaca velha alimentava com leite da cordialidade muitas vaquinhas que um dia iriam se tornar também vacas velhas.

Fernando: Estamos a falar de afeição de um amor entre a discípula e o mestre. Na busca do saber e do conhecimento que nós ocidentais entendemos como uma espécie de iluminação não pode ocorrer que alguém, p. ex. um cientista, em vez de se doar à busca apaixonada da verdade, use essa busca para engordar e com isso endurecer o eu científico? Hermógenes costuma dizer sempre de novo que um cientista, se não cuidar, é ideólogo…

Hermógenes: Hoje, usualmente fazemos coincidir ciências e a dominação da tecnologia. Ciência no fundo é paixão pela busca sincera da verdade. No seu modo de ser não há propriamente a ânsia pelo poder e pela dominação. Pode ser que as ciências, hoje, estejam sob o poder e dominação de um modo de ser humano chamado tecnologia. Portanto, ciência a serviço de uma ideologia de poder.

Marcos: Pascal dizia certa vez algo assim: que o ser humano, quando quer ser como anjo acaba decaindo para a bestialidade. Pode ser que certo anjelismo, que compreende a castidade como ser assexuado, conduza para perversões graves justamente na dimensão da sexualidade. Como se dá na espiritualidade este fenômeno?

Hermógenes: P. ex. entender a serenidade da experiência da união com Deus como vivência de paz e tranqüilidade a modo psicológico, como ausência de tentação, lutas e dificuldades. Entender a experiência da castidade consagrada como eliminação das sensações sensoriais e sensuais do corpo. Há casos em que se tentava atingir esse estado, tomando-se remédios inibidores de menstruação, poluções noturnas etc. etc. Se se entender a castidade humana nesse sentido de assexuada, há de chegar uma época, se é que já não chegou, em que podemos comprar drogas de castidade, obediência, mansidão etc. nas drogarias, como se compram remédios contra a alta pressão. Há relatos históricos em referências às monjas contemplativas, jansenistas do mosteiro de Port Royal, onde uma irmã de Pascal era monja, nos quais se conta que um bispo disse dessas monjas: “São puras como anjos, mas soberbas como satanás”. Independente da objetividade de tal sentença, dada por autoridade eclesiástica contrária às monjas do Port Royal, o humano que entende ser puro como anjo, está trocando de dimensão. Quem pensa desse jeito a pureza humana, não cairá com tempo numa espécie de pan-sexualismo? Vai começar a ver sexo em toda parte, e assim pensa o dia todo em sexo.

Irmã: Certo prelado, numa diocese onde trabalhei, ficava preocupado demais com as roupas curtas e decotadas que moças, meninas e mulheres usavam na igreja. E proibia que elas comungassem com tais roupas. Pode ser que ele estava pedindo mais respeito ao sagrado no recinto da igreja. Mas quando a preocupação é grande demais, parece que se torna algo central e essencial da busca de uma pessoa. Não há ali um desejo erótico, travestido de zelo pela pureza? Quando ouvia o Sr. Bispo falar com veemência desse assunto, me ocorreu de repente o pensamento: Vai ver que ele nunca viu uma mulher nua…

Mamede: Eu nunca a vi. Ops! pensei alto…

Marcos: Mística e erótica usam a mesma linguagem. P. ex. o quadro de Santa Teresa de Bellini: êxtase/orgasmo. Aliás, em grego: orgé, donde vem a palavra orgasmo, significa veemência, paixão, êxtase. Orgia onde está também a palavra orgé significava ação sagrada, onde se festejavam os mistérios. Mas quem é humanamente límpido e puro no seu pensar, sabe distinguir o diferencial dimensional entre o ser da êxtase e ser do orgasmo sexual. Aqui, tanto quem iguala como quem separa não tem a sensibilidade diferencial das dimensões.

Luciana: Todo mundo tem saber. Na reunião pedagógica, inspetor, aluno, cozinheira e faxineira são muito úteis: conhecem a família e a criança em todos os momentos. Eles todos possuem algo como faro certeiro.

Marcos: A esse tipo de saber prático, chamamos de saber instintivo, mas a palavra não ajuda. O que é mesmo é saber elementar, direto!

Hermógenes: O que chamamos de espírito é uma clarividência assim direta e elementar.

Ulrich: No que assim, sem pensar muito, chamamos de saber prático, há um momento todo próprio de grande importância. O saber prático é aquele captar-se a si mesmo no saber, que no fazer, se perfaz e se torna sempre mais gente que faz. Eis o ponto nevrálgico do fazer cotidiano. Ele não é uma rotina mecânica sem o pensar em fazendo, e em fazendo, sendo.

Leitura da página “Da castidade” de Nietzsche em Assim Falou Zaratustra.

Marcos: Nossa visão de sexualidade está dentro do nihilismo. A desvalorização dos princípios supremos que governavam o Ocidente. Tempo de transição. Tempo de crise em que a própria essência do ser humano precisa ser redefinida. A castidade tem a ver com este tempo de passagem do último homem.

Maike: Nietzsche diz: “têm lodo na alma. E ai deles se o lodo é inteligente”. De que está falando?

Marcos: Castidade. Ser virgem fisicamente. Pureza. Limpeza. Só que há uma pureza estética, externa, que oculta dentro de si o lamaçal. Há uma concepção de castidade que vai acumulando podridões no fundo da alma. E se tiver inteligência a coisa é pior ainda.

Fernando: A inteligência é capaz de fazer o lamaçal parecer coisa bonita.

Marcos: Será que inteligência aqui não é sagacidade, esperteza?  Castidade tem a ver com nitidez do próprio ser.

Ulrich: o fariseu nem vê sua feiúra. O publicano se vê e reconhece e pede misericordiosa acolhida.

Marcos: A mulher que lava os pés de Jesus com lágrimas aparece como casta. O amor a fez casta. Os outros homens é que aparecem impuros.  A castidade devia ser leve e elevar a pessoa. O elemento dela seria a gratuidade.

Geraldo: O animal é casto.

Marcos: É inocente.

Ulrich: Mas… o animal não pode ser casto.

Marcos: A castidade é a inocência do humano. O humano não pode ser inocente como o animal.

Vamos aprofundar a questão da dificuldade – se a castidade puxa para baixo, se aparece como lodaçal e fogueira da alma, então não é virtude, isto é, vigor espiritual, mas é vício.

Marcos: Na ciência as negações da hipótese são mais importantes do que as confirmações. São as chances de avanço.

Luciana: Homossexual, sendo casto, pode ser religioso?!

Hermógenes: Lodaçal? Por que será que, o que é inocente (natural) no animal, no homem não é inocente? Nesse sentido, o sexo que é inocente no animal, no humano, se fica animalesco, é lodaçal? Beato Egídio de Assis era famoso como santo da pureza. Achegou-se dele uma pessoa, se queixando de ser sujo, sensual, um lodaçal. Tinha imagens, sensações, desejos e impulsos sexuais de toda sorte, até perversos. Expressou ao beato o desejo de se livrar desse lodaçal e ser como anjo. Frei Egídio lhe perguntou: “Mas tu lutas para não querer ser assim lodaçal? Tu dizes não às tentações?” “Sim, luto continuamente!” respondeu. Disse então com simplicidade frei Egídio: “Tu és puro, vai em paz”. Deprimida, a pessoa se afastou do beato pensando com seus botões: um santo de pureza como Egídio não compreende os que lutam no vale das lágrimas, dentro do lodaçal… Ao caminhar de volta à casa, uma longa estrada sinuosa num campo aberto, viu de longe um vulto feminino vindo na sua direção. Começou a ter tentação. Decidiu não olhar para a mulher, ao se aproximar. Abaixou os olhos na postura de “custodia oculorum”, mas ao passar ao lado dela, cedeu à tentação e olhou para ela. De repente, sentiu-se inteiramente aliviado, livre de toda a tentação. Pois a mulher era tão feia, horrível, que não lhe ocorreu nem se quer um fio de tentação erótica. Sentiu-se sereno, puro como anjo. Voltou correndo ao beato Egídio e jubiloso lhe relatou a sensação de ter se sentido puro como anjo. Recebeu a maior bronca da paróquia. Beato Egídio lhe disse: “Antes eras puro. Mas agora, te tornaste impuro”. Por quê? É porque a pessoa confundiu o estado de coisa com a pureza. Trocou a compreensão do ser humano, enquanto necessidade vital, com a compreensão do ser humano enquanto necessidade livre.

Marcos: Catarismo confunde castidade com este tipo de pureza. Em Grego, castidade é Sophrosyne. Na palavra Soophrosyne está a palavra phren que significa fígado, diagfragma, entranhas. Indicava a sede, o lugar onde residia o vigor da vida, segundo os antigos. Soophrosyne significa assim as entranhas sadias, ou diríamos hoje melhor o coração sadio. É a Integridade.

Hermógenes: Celibatário que vive plenamente o que é o próprio seu é casto. Casado que vive plenamente o que é o próprio seu é casto.

Marcos: A sensualidade quando se dá no espiritual usa habilidade, sagacidade e esperteza, i. é, a inteligência. E cria um sistema de compensações. Às vezes a luxúria se disfarça de compaixão, masoquismo: gozar do sofrer, transformando o sofrimento em prazer. O sofrimento pode virar espetáculo: Cf. certos programas de divertimento em TV. Que diferença há entre essa exacerbação do sofrimento a modo do masoquismo e a tragédia?

Hermógenes: Na Tragédia o ser humano no sofrimento cresce para a liberdade de assumir a finitude humana como realização. Por isso, Sócrates morre de cabeça erguida. Pode ter compaixão mas não tem masoquismo.

Marcos: Outra questão: no final do texto aparece castidade X riso. Como entender?

Hermógenes: Talvez no sentido do aforismo de Pascal onde se diz que a verdadeira moral zomba da moral, a verdadeira filosofia zomba da filosofia. Imaginemos uma atriz que numa cena do filme deve sorrir como criança. Treinos em cima dos treinos para sorrir espontaneamente como uma criança. Quase alcança, mas falta-lhe o essencial, o último quê. Um dia, cansada de tantos ensaios, sai desanimada do estúdio, e na saída, um menino mendigo lhe pede esmola. Ela lha dá. O menino lhe sorri e ela sem o perceber sorri de volta. O Diretor do filme que a observava atrás lhe diz: É isso ali! O verdadeiro sorriso com todo o seu empenho, e fazendo-lhe uma gozação acolhe o seu esforço como boa vontade de uma busca. O natural é a graça de uma conquista.

Marcos: Quem viu, experimente recordar o filme “A festa de Babette”… Ali aparece uma mulher que, aos olhos dos puritanos, parecia mundana, mas que, graças à sua gratuidade e graciosidade no esbanjar toda a riqueza que ela ganhara na loteria com um jantar para todos os habitantes do povoado, aparece como uma metáfora da própria graça divina.

Hermógenes: O nascivo originário, o natural acaba com a oposição entre empenho e espontâneo, pois é anterior a essa dualização. Diz o Chuang-tsu:

“Na época em que a vida na terra era plena, ninguém dava nenhuma atenção aos homens dignos, nem selecionava os homens capazes. Os soberanos eram apenas os galhos mais altos das árvores, e o povo era como cervos na floresta. Eram honestos e corretos, sem imaginar que ‘estavam cumprindo com o seu dever’. Amavam-se mutuamente, e não sabiam que isto se chamava ‘amor ao próximo’. Não enganavam a ninguém, e, no entanto, não sabiam ser ‘homens de confiança’. Podia-se contar com eles e ignoravam que isto fosse a ‘boa fé’. Viviam juntos livremente, dando e recebendo, e não sabiam que eram homens de bom coração. Por este motivo, seus feitos não foram narrados. Não se constituíram em história”

Ulrich: Numa das anedotas acerca de Mestre Eckhart se conta o seguinte: Uma jovem procurou um convento dos Pregadores e mandou chamar Mestre Eckhart. “A quem devo anunciar?”, perguntou o porteiro. “Não sei”, disse ela. “Não o sabes? Como assim?”, disse ele. A jovem respondeu: “Porque não sou donzela, nem mulher, nem homem, nem esposa, nem viúva, nem virgem, nem senhor, nem serva e nem servo”. O porteiro então chamou a Mestre Eckhart, dizendo: “Venha ver aí fora a criatura mais estranha que já encontrei. Ponha a cabeça para fora da janela da portaria e lhe pergunte: “Quem deseja falar comigo?” Mestre Eckhart fez o que o porteiro lhe sugerira. A jovem respondeu da mesma forma como o fizera ao porteiro. Admirado, Mestre Eckhart disse à moça: “Minha filha, as tuas palavras são verdadeiras e espirituosas. Mas explica-me o que queres dizer com elas”. Respondeu-lhe a jovem: “Se eu fosse donzela, conservaria a minha primeira inocência; se fosse mulher, engendraria sem cessar em minha alma a Palavra eterna; se fosse homem, resistiria com firmeza a todo pecado; se fosse esposa, seria fiel ao meu único e querido esposo; se fosse viúva, ansiaria sem intermissão por meu único amado; se fosse virgem, encontrar-me-ia em serviço reverente; se fosse senhor, teria poder sobre todas as virtudes divinas; se fosse serva, sujeitar-me-ia com humildade a Deus e a todas as criaturas; e se fosse servo, trabalharia esforçadamente e com toda a vontade e sem murmurar. Nada sou de tudo isso; apenas ando por aí como uma criatura qualquer entre outras criaturas quaisquer”. O Mestre foi ter com seus irmãos e lhes disse: “Acabo de ouvir a pessoa mais pura que já me foi dado encontrar, ao que me parece”.

Maike: Mas todas essas coisas que dizemos no cristianismo que são muito sublimes não nos parecem como que irreais? Aliás nós as classificamos como utópicas. Tudo isso de bonito que se diz aqui é afinal possível ou real?

Hermógenes: Antes não deveríamos perguntar: o que é mais real, o possível ou o real? É uso hoje chamar as coisas do cristianismo de utópicas, um ideal que jamais se realiza, pois, está longe, para além. Utópico, utopia significa em grego fora do lugar, deslocado, não no lugar. Quando colocamos algo como ideal, o colocamos diante de nós, sempre para frente, para além, a modo meta-físico. Não sei quando e como entrou essa idéia metafísica a interpretar as coisas do ser cristão como realidade utópica. Ora a coisa, a causa do ser cristão que é cristidade, não está em frente de nós como utopia, mas é uma realidade a nós dada de antemão, como o a priori, o princípio, o toque do deslanche do seu ser. Pois dele surgimos, nele vivemos, nele nos movemos e é nele que somos, a cada momento, sempre. Não é pois algo que está fora, para além do lugar, mas é o próprio lugar ele mesmo do nosso existir. Pois o projeto que lançamos como o ponto de meta do nosso caminhar, sempre já é lançado a partir de um princípio prévio que está antes, atrás de nós. Se, agora, voltarmos à questão levantada por Maike e perguntarmos: para nós cristãos o que é o mais real, o possível ou o real, haveríamos de responder: O real para nós é o possível já dado, pois é nele que o nosso real pode o que pode. O possível é a condição da possibilidade do real. Em vez de possível podemos também dizer potência. O possível no sentido de alternativa escancarada do real que é apenas a não contraditoriedade lógica não é nem real, nem possível no sentido próprio. Assim, quando usualmente perguntamos se é possível, estamos perguntando se não há contradição entre isso que queremos que seja com outra posição. Mas quando dizemos possível, pode, possibilidade, entendamos aqui entre nós como vigência do poder, da potência, da intensidade do viger: nesse sentido o possível é mais real do que o real.

Marcos: os quatro pontos que a Luciana falou, citando Freud, estão se referindo a um receber. Receber nossos pais é desde o primeiro instante tarefa. Assim, filiação, sexualidade, procriação e morte. Quanto à morte, a colocamos assim no fim dos tempos. O tempo desses tempos tem a estrutura do presente que a cada momento deixa de ser presente e real: o passado já se foi, o futuro ainda não chegou. Assim nos tornamos ávidos em viver o agora, sempre esperando o que vem, jamais nos assentando no que cada vez somos, vivendo em plenitude a estação própria do seu tempo. Ninguém diz: ai, ai, tenho 20 anos, sou carente da velhice. Mas, sim: ainda bem que tenho 20 anos, tomara que não fique velho, e como o tempo não pára, vamos tentar prolongar o mais possível a juventude. Assim se dá a si mesmo o tempo que não o faz viver em plenitude o seu tempo. O tempo é assim interpretado sempre como falta, carência, do passado que já foi e do futuro que ainda não veio. Assim, também num tal tempo de carência e de privação, entendemos tudo, p. ex. no nosso caso a castidade, como falta de. Mas os textos que examinamos aqui estão falando em plenitude.

Hermógenes: Castidade é um noviciado para, em sendo virgem, tornar-se mãe como Maria, Virgem e Mãe. No que se refere ao texto de Nietzsche, há uma onda de querer interpretar o seu pensamento, expresso em diferentes textos como síndrome, sintoma de doença mental como paranóia, esquizofrenia, sífilis etc. Assim, o último quadro de van Gogh, intitulado “Os corvos no trigal”, pintado pouco antes de ele atentar contra a sua própria vida, é lido como um evidente sintoma do surto da esquizofrenia. Talvez seja válida tal leitura, em se referindo ao sujeito autor, enquanto doente numa terapia. Mas quando se trata do valor da obra por ele criada, tal interpretação é demasiadamente curta, míope para o vigor da criação artística e o seu ser, pois examina a obra apenas como produto, efeito da causa chamada autor. A obra, porém, pode ser um vir à fala do toque da inspiração, sob cujo toque e na tarefa de trazer à luz esse toque, o sujeito autor se quebra e se torna doente. Nesse caso, a obra não é o efeito da doença, seu produto, mas é a doença que é o efeito colateral da veemência da inspiração. Na obra sempre devemos ver o que a inspiração e a fidelidade do autor à sua inspiração criativa fez com e da doença.

Marcos:  A mesma coisa com Nietszche e outros artistas. Não foi a arte que os matou, mas era ela que os mantinha vivos.

Hermógenes: O texto de Nietzsche que lemos, na tradução, não está traduzido com precisão, o que é aliás muito difícil, em se tratando do texto do pensador como Nietzsche. O termo “ardente” na expressão “Mulher ardente” é “ein brünstiges Weib” que significa mais uma prostituta em cio. Indica pois o modo de ser envolvente e devorador da luxúria. Floresta tem um modo de ser da vigência que é bem diferente da luxúria. Mas quando nós citadinos da subjetividade estética começamos a nos chafurdar no gozo do encanto estético, dizendo, aí, que lindo, e fazemos piquenique, reduzindo a paisagem do campo a passeio ecológico, diante da realidade p. ex. da existência camponesa, nós da cidade estamos no cio da subjetividade: ein brünstiges Weib.

Marcos: No Evangelho fala-se da situação daquele cuja alma ficara limpinha, graças à expulsão de um demônio, mas que, depois, é assediada por outros sete convidados por aquele demônio que tinha sido expulso. Quando a gente quer uma luz sem sombra, mergulha-se nas trevas. A nossa castidade cristã não tem propriamente a ver com estética nem com o catarismo, mas sim com mergulho decidido, límpido e intrépido na encarnação.

Fernando: A todos vós que sois nietszcheanos: qual seria a luta da castidade? Há uma luta a ser travada? Para os nietzscheanos tudo é deixar ser?

Irmã: Nós, na congregação, tínhamos uma irmã que já era muito idosa, e sempre viveu e se considerou límpida, pura, virgem. Tinha uma afeição muito grande por um sacerdote. Quando ela se tornou caduca, ela mostrava abertamente a sua afeição ao padre, e se comportava como se estivesse na sua presença, ou como se estivesse esperando a sua visita. Preparava a mesa, o quarto de dormir etc. E como ele não aparecia, se tornava muito triste. Era um grande apego ao sacerdote. Para libertá-la desse grande apego, criou-se uma situação artificialmente planejada de que o padre morrera. Ao receber a notícia (falsa) de que o padre tinha morrido, foi grande o desespero e a tristeza da velhinha.

Leila e Luciana: Criar tal situação é cruel. Não sei se isto é terapêutico…

Hermógenes: O modo de ser do apego da irmãzinha idosa e caduca é estultice? Estultice da qual fala Nietzsche no texto da castidade? Não dá a impressão de que a Castidade como Nietzsche a coloca é um modo de ser da limpidez de cordialidade da vida, na qual o olhar é claro, límpido, puro, cheio de bondade, vigor da ternura para com a vida, de tal sorte que vê nas próprias estultices, o cintilar da vida, e o acolhe com sorriso? Não diz pois o texto: “Em verdade, há castos a partir do pro-fundo: são mais suaves a partir de e na cordialidade, gostam de rir e riem mais ricamente do que vós. Sorriem também sobre a castidade e perguntam: ‘O que é castidade!’ (observar o sinal!). ‘Castidade, não é ela estultice? Mas essa estultice veio a nós e não nós a ela. Nós oferecemos a esta hóspede pouso e coração: agora ela mora conosco – que ela fique, quanto ela quiser!”? As nossas pastorais, terapias, os nossos cuidados, não podem eles ser e estar, sem o perceber, infeccionados pelo ‘olhar cruel’, i. é, sádico da “brünstiges Weib”, da incapacidade de carregar com cordialidade pura e casta da alegria de viver  o sofrimento, e de enxergar no sofrimento que pode também estar infeccionado de masoquismo, no fundo, uma centelha da ânsia de viver?

Marcos: No filme de Bergman intitulado “O sétimo selo”, os grandes vão morrendo. A morte vai colhendo a todos. Só resta no fim a família de saltimbancos que riem muito e dançam, alegrando-se com as pequenas estultices da vida.

Hermógenes: Dizia Nietzsche na boca do Zarathustra: Somente acredito num Deus que sabe dançar. São Francisco, diz Chesterton, era um saltimbanco. Ele era o gozador e ria de tudo quanto era mascarado, a partir e dentro da Liberdade dos Filhos de Deus.

 

Terceiro Dia – 01/11/04

Marcos: Contribuição para uma fenomenologia da sexualidade e do amor.

De tudo que temos visto emerge a necessidade de um sentido para a sexualidade. Primeiro vimos que é um mistério. Depois, que não é um bloco homogêneo, mas tem muitas dimensões.

Tudo isso, que estamos fazendo, nasce da necessidade do sentido da sexualidade. Tentar compreender, entender de que se trata de fato, quando se fala da sexualidade. Falta clareza sobre a sexualidade. Isso porque falta clareza sobre a existência humana. E, conforme os dogmas que temos sobre existência humana, nascem as compreensões equivocadas sobre a sexualidade.

Depois vêm as situações concretas da realidade atual, que a gente chamaria de época. Os próprios psicólogos sentiram o peso da época (Cf. Freud e o Mal estar na Civilização, os escritos de Jung, de Viktor Frankl, de Erich Fromm etc.).

A gente poderia dizer que o sexo não é compreendido num sentido mais amplo. Rilke diz que o sexo banalizado como se vê na atualidade não é suficientemente humano… Aquilo que se apresenta como sexo na atualidade é uma desfiguração do fenômeno sexualidade.

Hermógenes: Um dos pontos principais para uma reunião como a nossa é dar-se conta do que é a existência humana. Para nós, religiosos, falta isso. Nossa confusão e falta de ânimo na atual crise na formação é porque não tratamos bem a questão da existência. A compreensão de que se trata, quando como uma das conquistas mais decisivas da nossa epocalidade, nomeamos a compreensão do ser do homem como existência, faz com que não permaneçamos mais tratando o homem como uma variante melhorada e evoluída da coisa, da planta ou do animal, mas sim como liberdade e a aberta do sentido do ser das possibilidades infindas da revelação do mundo. Chegar à compreensão do ser da verdade, no Oriente, se chama iluminação. E chega lá pela meditação. Nós, no Ocidente, pensamos que a meditação para os orientais é algo vivencial e espontâneo, experiência irracional do coração e sentimento. Se formos nos mosteiros orientais e assistirmos o seu zelo, o empenho de trabalho e exercício, ficaremos impressionados e atônitos. As nossas meditações religiosas, em comparação, parecerão então como brincar de casinha na coisa da meditação. No Ocidente só vemos algo semelhante nas pesquisas e nos estudos nas universidades. No Ocidente temos algo semelhante somente lá onde se busca o espírito como essência da existência humana. E na Grande Tradição do Ocidente, incluindo-se ali as experiências da busca apaixonada da compreensão na Vida Religiosa, sempre apreciou como integrante essencial do espírito o cultivo do intelecto e da vontade. A nossa hodierna compreensão do intelecto e da vontade está deficitária, porque entende todas essas forças essenciais do ser humano a partir da sua compreensão popularizada e psicologizada, como se o intelecto e a vontade fossemfaculdades da alma ao lado do sentimento.

Marcos: o vivencial fica anêmico se falta o empenho de compreender.

Leila: Redução eidética, vivência e teoria.

Fernando: Esse negócio de hoje, o Ocidente buscar novidades no Oriente é “equívoco”.

Hermógenes: Sim há muita equivocação aqui de dois lados. Há muitos orientais afeitos e aprofundados na meditação e iluminação budista que continuamente ao falar sobre a essência da iluminação, classificam o Ocidente como unilateralmente doado à Razão, identificando sem mais a Razão Ocidental como o racionalismo. E fala da decadência do Ocidente. Tal fala na realidade é uma fala que vem do Ocidente, que desconhece a essência da sua própria identidade. É útil desmascarar essa concepção do Ocidente, expressa pela boca de um oriental, como uma tese ocidental. Um oriental que assim fala da Razão Ocidental é um oriental que assimilou o pensamento ocidental autêntico de modo muito superficial e sem captar a sua essência. Alguém do Ocidente como p. ex. São Francisco usou muito o intelecto. Se no Ocidente há algo comparável ao Zen, esse algo é exatamente a Razão Ocidental.

Leila: Na psicologia há também muito psicólogo brincando de casinha.

Hermógenes: Se observarmos bem, Rahner está sempre falando de existência. E isso dá clarividência em todas as áreas.

Marcos: Vamos ler um trecho da Carta de Rilke a um jovem poeta. Comparemos o que Rilke diz sobre o nosso tema da afetividade e sexualidade com o que lemos em Rahner. Rahner diz que a sexualidade é um mistério da existência humana. Não é simplesmente um fato, um estado de coisa, mas o dom de uma conquista do mistério da existência. É pois mil e mil questões que caem sobre nós, é um quebra-cabeça. Não podemos ficar num modo de ser que pergunta e já espera automaticamente a resposta como na tarefa fácil do sistema do “pergunte e responderemos”. Aqui devemos nos confrontar com a pergunta, sofrer a pergunta, nos colocar cada vez mais ampla e profundamente dentro da questão como quem busca um tesouro precioso. E na medida em que assim vamos vivendo as perguntas, em certo momento, ou melhor, a cada momento as perguntas começam a tomar Gestalt e da intensidade da pergunta configurada, vêm surgindo acenos de uma busca mais adequada e profunda. Esse tipo de resposta jamais é geral, pois é uma resposta singular, a própria da vida.

Hermógenes: O importante na pergunta não é tanto receber com facilidade e de imediato uma resposta, mas sim o que faço com a pergunta. O crescimento que recebo ao ficar tentando responder a pergunta, cuidando de perguntar cada vez melhor, já é um grande resultado e recompensa. Mas o que fazemos com os problemas da vida é fugir deles ou passar ao longo deles, sem sermos atingidos por eles. Na busca do sentido da vida devemos viver como quem sobrevive com o salário mínimo, não gastar à toa no supérfluo, nos concentrarmos no essencial. Quem vive a existência como que a programando no computador, pode não aproveitar nada das dificuldades. Pois as dificuldades da vida são o que não se encaixa nos programas da nossa maneira de querer a existência como nós gostaríamos que ela fosse. Quem usa a religião, não para despertar e crescer na responsabilidade e cordialidade de assumir as vicissitudes da Terra dos homens, mas para escapar sempre de novo diante das dificuldades para o além mundo, não entende jamais a essência do ser cristão e da vida religiosa consagrada.

Marcos: É a religião como ópio do povo. É a mesma estrutura de droga.

Marcos: Rilke diz: “A volúpia carnal é uma experiência sensitiva, não diferente do puro olhar ou do puro sentir em que um fruto dá água na boca; é uma grande, infinita experiência, que nos é dada, um conhecimento do mundo, o cume e o esplendor de todo conhecimento. O mal não é que a acolhamos; o mal é que quase todos usam mal desta experiência e a desperdiçam ou a aplicam como estímulo nos espaços cansados de suas vidas e como distração, ao invés de como recolhimento para o alto”.

Hermógenes: Quando experimentamos o extraordinário e temos uma grande vivência e emoção, porque será que usualmente ao voltarmos ao trabalho cotidiano, nos vingamos do cotidiano dificultoso e ordinário, desprezando-o como alienado da vida? Por que não fazemos como aquele menino que conquistou o prêmio de melhor instrumentista mirim do ano, num artigo de um numero bem antigo da revista Veja? O menino recebeu do tio um  convite para o concerto de oboé de um famoso oboetista francês. Assistiu o concerto e saiu extasiado do Teatro Municipal, e ali mesmo jurou tornar-se um oboetista. Como não tinha recurso, tentou com bambu fabricar algo semelhante ao tubo do oboé. Ajuntou dinheiro e foi comprar pequeno manual de oboé para uma introdução particular no manejo do instrumento. Aos poucos conseguiu comprar um oboé de segunda mão. Entrementes decorava tudo que dizia respeito ao instrumento, tentava ajuntar tudo que se referia ao oboé, e conseguiu com o tempo fazer um curso de oboé. Em toda essa busca, o menino sempre de novo voltava à memória daquele momento, quando ao ouvir o oboetista francês experimentou aquele entusiasmo, aquela emoção primeira. A emoção primeira fazia assumir as dificuldades com maior ânimo e cordialidade e tenacidade. Em assim assumindo as dificuldades, o entusiasmo primeiro crescia e o levava a enfrentar cada vez mais animadamente as dificuldades que vinham sobre ele. Um dia, foi descoberto por um “caçador de talentos”, recebeu uma bolsa e assim cada dia “crescia” no sabor e no conhecimento da existência artística que ele acolheu como sua vocação.

Marcos: Emoção é o vibrar de um ser atingido. Sai da indiferença. Depois, se empenha e cuida para não esquecer o toque nem deixar que se esvaia. O toque primeiro, se se distrair, se esvai.

Hermógenes: O que em geral chamamos de vivência na VR é uma teoria mal trabalhada de vivência.

Marcos: Ânimo é embalo na busca.

Hermógenes: Tem gente que xinga novela por conter pornografia. Mas o pior da novela é mostrar a existência dentro da ideologia do “pão e circo”, a modo de uma vida-paraíso do consumo.

Marcos: Cria os funcionarios de um sistema, afinados com as drogas do consumismo.

Hermógenes: Não é assim que, quando a gente não assume a labuta e os deveres no crescimento dentro da existência, vocacional e profissional que escolhemos como o nosso caminho, começamos a considerar o trabalho como um mal necessário, opondo-o ao lazer, e sentimos continuamente a necessidade de escapar para ou compensar a canseira do trabalho com o gozo do lazer e das distrações?

Marcos: Assim que somos infecionados pela falta de transparência em referência à nossa própria existência, tudo começa a ser turvo. Criamos como compensação necessidades fisiológicas – comilança, ânsia de distrações, férias, viagens, e não raras vezes nos desabafamos na atividade frenética. Na natureza copulação segue uma lei que está para além do prazer e da dor. É mais difícil falar de sexo para crianças da cidade que da roça. Essas vêem a cópula dos animais muito naturais; aquelas da cidade vêem na TV… já “manufaturada”, exacerbada, na atmosfera dos efeitos especiais.

Hermógenes: Antigo Sr. Bispo de Barretos, um religioso redentorista, num retiro das irmãs franciscanas de Graz, na Cidade de Maria em Barretos, ao nos dirigir palavras de animação para a Vida Religiosa, resumiu um segredo da sua espiritualidade dizendo: “Quando fiz a minha profissão religiosa perpétua, o nosso provincial, no sermão nos recomendou fidelidade a um princípio essencial da vida de consagração, dizendo: “Vocês que se doam totalmente a essa existência de Seguimento, jamais tentem se compensar, tirando casquinha do estilo de vida matrimonial a que ‘renunciamos’”.

Irmã: Como é que se dá esse “tirar casquinha”? É ter uma vida assim dupla?

Hermógenes: Certamente há diversos modos de casquinha, que no caso mencionado de vida dupla já não é mais casquinha mas cascão. O que o Sr. Bispo estava indicando, acho que são coisas que não aparecem como transgressão aberta e clara, diríamos, genital na sexualidade. Mas que no fundo possui a ambigüidade em referência à limpidez em assumir a nossa existência religiosa. Dou um exemplo. No antigo curso de Cefepal, em Petrópolis, o bispo D. Manuel reclamou de namoro entre os cursistas: freis e freiras de mãos dadas, abraçados, passeando nos lugares turísticos. Na revisão mensal, a questão veio à discussão do grupo. Os freis e as freiras visados protestaram que tudo aquilo não tinha nada a ver com namoro, e que tudo era muito inocente e natural. Frei Arcângelo, que é sempre um crítico desmancha prazer, apenas perguntou rindo: Por que então tinham que andar de mãos dadas, e abraçados? Provavelmente ele quis dizer: Se a amizade é profunda, por que tem que andar de mãos dadas? Isto é, não está contente com o que tem? Precisam mais coisas?

Marcos: Ternura é natural. E a gente percebe quando se mistura ali outra coisa, a mais…

Regina: Há congregação que manda postulante para namorar um pouco primeiro… (Acréscimo de quem corrigiu a formulação desse relatório: Há um filme de Bang-bang, onde o ator francês Fernandelle representa um pacato turista. O turista é muito parecido com um bandido feroz e assassino que aterrorizava a região. Assim é confundido com ele. A amante do bandido, pensando que o rapaz é o seu namorado, pede-lhe um beijo apaixonado. E o rapaz aproveita e tira uma casquinha. Mas como ele é muito tímido e honesto, apenas consegue dar um beijinho pequenino. Depois o rapaz é preso e é descoberto o equívoco. A moça fica furiosa e lhe diz: “Você roubou-me a virgindade!” E o moço, acanhado responde: “Só um pouquinho!”).

Marcos: A questão da casquinha é a compreensão do que é a totalidade. O que é totalidade humana somente o entende quem capta a vida como existência.    Ouçamos alguns outros trechos da carta de Rilke a um jovem poeta. Rilke diz: “Ah! Se o homem acolhesse mais humildemente e trouxesse mais gravemente este mistério, de que a terra está cheia até nas menores coisas, se o suportasse e sentisse quanto terrivelmente grave é, em vez de tomá-lo levianamente. Se fosse pleno de reverência para com a sua fecundidade, que é somente uma, quer apareça de modo físico ou espiritual. Com efeito, também a criação espiritual deriva da física, é de uma mesma essência, só que como uma repetição mais submissa, mais encantada e eterna da volúpia carnal”… Nós hoje experimentamos mais o afã da produtividade do que a fecundidade. Maturação da sexualidade é gerar vida. Virgindade é Integridade que gera vida. Freud chama de  “homem genital” aquele em quem se deu a maturação da sexualidade, a saber, no sentido em que a sexualidade se transformou em doação e fecundidade, criação seja em que nível for (É bom lembrar que a palavra genital vem de gênero, genus, -eris, em latim, genos em grego, que por sua vem do gigno, i. é, gerar). Genitalidade é, pois, o poder gerar, o poder criar, fazer e deixar surgir, crescer a vida, a vitalidade, o vigor do vivente. E aí é que está a maturação da sexualidade.

Hermógenes: Quanto à virgindade que gera a vida, há uma anedota famosa sobre o monge budista Hakuin. Hakuin, numa pequena cidade da antigüidade japonesa onde morava sozinho numa pequena moradia, era tido como santo da pureza.  Um dia uma filha de um rico e famoso comerciante da cidade ficou grávida, e interpelada pelos pais sobre quem era o pai, acusou a Hakuin. Os pais, furiosos, disseram à filha: “Já que ele é pai, que ele o assuma e o alimente!” Quando a criança nasceu, fizeram uma procissão, os pais da moça, a mãe da moça com a criança nos braços, atrás deles toda a parentela, aos quais se ajuntaram os fieis budistas, todos escandalizados e indignados. Chegaram à casa de Hakuin, que estava sentado na meditação, o rodearam. Os pais da moça (a moça estava ausente) o acusaram do abuso, e lhe disseram: “Você é o pai da criança. Assuma a responsabilidade e a alimente”. Hakuin olhou maravilhado para a criança, recebeu num gesto desengonçado o bebê, e disse aos circunstantes: “Ah, é!?”, e assumiu a guarda e a responsabilidade da criança, seu filho. Depois de algumas semanas, a moça, atormentada pela má consciência, pois ela caluniara o monge, por medo de ser castigada pelos pais, pois a criança era fruto de seu relacionamento com o peixeiro pobre da esquina, confessou aos pais a sua calúnia. Houve então outra procissão. Na frente, a moça, o peixeiro, os pais, toda a parentela, seguidos de fiéis, todos arrependidos e cabisbaixos. Rodearam o monge que estava sentado, dando de mamar ao bebezinho na mamadeira, todo desengonçado, e lhe disseram: “Viemos pedir-lhe mil desculpas. Nós o acusamos injustamente. A criança não é seu filho!” Hakuin, levantando os olhos aos circunstantes, assustado e surpreso disse: “O que? Não é não? Mas como?” É que para Hakuin, santo da pureza, a castidade do monge doado a gerar vida, toda e qualquer vida é seu filho, sua filha…

Marcos: Texto de Rilke: “Sobre tudo se estende uma grande maternidade, qual uma aspiração comum. A beleza da virgem… a de ser um ser que ainda não levou nada à consumação, é maternidade, que se pressente e se prepara, se angustia e se projeta cheia de desejo. E a beleza da mãe é maternidade a serviço e na velhice é uma grande recordação. E também no homem existe maternidade, parece-me, física e espiritual. É que o criar é também uma maneira de gerar e, quando se cria a partir da mais íntima abundância, é parto. E talvez os sexos sejam mais afins do que se pensa e a grande renovação do mundo quiçá consistirá nisto: que homem e mulher, liberados de todos os erros e desgostos, não se procurarão como opostos, mas como irmãos e vizinhos, e se unirão como criaturas humanas, para trazer em comum, de modo simples, grave e paciente, o difícil sexo que lhes foi imposto”. O caminho histórico envia para ali: a renovação do mundo através do homem e da mulher que assumem que são uma única essência, que antes de ser dois são um. No texto bíblico do Gênesis, a vergonha só aparece quando homem e mulher são encontrados por si mesmos como seres cindidos, sem unidade consigo mesmos, com o outro, com a fonte da vida. A sexualidade passa a ser experimentada como descoberta desta cisão, embora seu anseio mais profundo seja a união, a unidade, a totalidade. Homem e mulher são chamados a descobrirem a reciprocidade de uma relação onde cada um é, cada vez, tudo, tudo para o outro, tudo com o outro. Este o sentido do amor. Continua, alhures, o texto de Rilke: “Nós sabemos poucas coisas, mas que devemos nos ater ao mais difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar sós, porque a solidão é difícil… Também amar é bom, porque o amor é difícil. Querer bem de ser humano para ser humano: talvez esta seja a tarefa mais difícil que nos tenha sido imposta, o extremo, a última prova e testemunho, o trabalho, para o qual todo outro trabalho é preparação. Por isto os jovens, que são principiantes em tudo, não sabem ainda amar: devem aprender. Com todo o seu ser, com todas as forças, recolhidas em torno do seu coração solitário, angustiado, que bate as asas para o alto, devem aprender a amar. Mas o tempo do aprender é um tempo longo, de clausura, e assim amar é, por um longo e amplo espaço de tempo, que penetra no coração da vida, solidão, mais intensa e profunda solidão para aquele que ama… Quem considera seriamente, acha que – como para a morte, que é difícil –,  também para o difícil amor não se reconheceu ainda algum esclarecimento, alguma solução, nem aceno nem caminho; e não se poderá procurar para estas tarefas, que nós trazemos veladas e passamos adiante para outros sem abri-las, alguma regra comum, que repouse sobre acordos gerais… Nós chegamos só agora a considerar a relação de uma criatura singular com uma segunda criatura singular sem preconceitos e objetivamente, e as nossas tentativas de viver uma relação semelhante não têm algum modelo diante de si. E todavia, na curva do tempo, já aparecem algumas coisas que querem ajudar os nossos primeiros passos hesitantes de principiantes… Um dia, um dia existirá a menina e a mulher, cujo nome não significará mais somente um oposto do macho, mas algo por si e para si, algo para o qual não se pensará em complemento ou limite, mas só em vida real: a humanidade feminina. Este progresso transformará (a princípio contra a vontade dos machos ultrapassados) a experiência do amor, que agora é cheia de erros, a mudará desde o fundo, a plasmará novamente em uma relação entendida de ser humano a ser humano, não mais de macho a fêmea. E este amor mais humano… se assemelhará àquele que nós com luta fadigosa preparamos, ao amor que consiste nisto: que duas solidões se guardem, se delimitem e se saúdem uma à outra”. Solidão significa ser pleno em si mesmo. Amor é o cuidado que duas solidões dispensam uma à outra. As pessoas só vão aprender a assumir o amor quando aprenderem a assumir a tarefa da solidão. Jung chama esta tarefa de individuação. Indivíduo, literalmente, significa o que não é dividido, o que é uno em si mesmo. O amor só pode ser assumido na dinâmica da tarefa de unidade consigo, com o outro, com a fonte da vida. O que chamamos de sexualidade é uma dimensão profunda da existência humana, que tende para um encontro que se chama amor. Passamos então para o tema: sexualidade e amor.

Fernando: Amor e afetividade são a mesma coisa?

Marcos: Em geral pensamos que há um genérico afeto que pode se tornar amor, ódio, paixão, ciúme etc.  Cada uma das paixões tem o seu modo de ser afetada ou afetar (no ódio ou no amor). Afeto é sempre um modo de ser tocado pelo outro. Sempre uma intencionalidade.

Fernando: Qual o anterior na paixão, entendida como passio, isto é, o ser atingido?

Marcos: É sempre uma relação. Até a indiferença é um modo de ser com o outro. Ser uno e ser todo já é um modo de ser com tudo.

Hermógenes: Tenho a impressão de que a fala sobre solidão e indivíduo foi tratado muito rápido. Talvez fosse útil retomar a questão. Acho que não “vimos” o que foi exposto por frei Marcos.

Marcos: Nesta sala, todos precisam ser solidão. Em tudo, na dificuldade de entender, no calor. Solidão não significa isolado, a sós, mas ser uno e ser tudo.

Hermógenes: Por ex., a dificuldade de entender, a qual todos nós devemos ser enquanto solidão. A dificuldade, na realidade, implica toda a minha vida, meu passado, o meu futuro, o grupo que eu estou vendo, a humanidade a que pertencemos como esse grupo, tudo isso sou eu mesmo. O que somos nós mesmos como todo não podemos representar. É que quando dizemos eu, tu, ele, nós, sempre representamos o corpo de cada um de nós ou o seu conjunto. Por isso, pensamos que cada um de  nós é uma ilha, fechada dentro da pele que cobre a nossa carne. E através dos sentidos, principalmente dos olhos e dos ouvidos entramos em contato com o outro eu, também como ilha, fechada pela pele que cerca a sua carne, e que recebe a mensagem enviada por nós através dos seus sentidos. Se nos livrarmos dessa representação que para nós se transformou em realidade em si, objetiva, haveremos de ver que tudo isso é uma imagem padronizada e abstrata, da realidade concreta, viva e total. Pois o que realmente somos é essa maravilhosa paisagem, esta abertura, chamada mundo, com mil e mil variações de texturas de estruturações em diferentes níveis e dimensões, onde o ser humano ali está presente, uma vez como ente intramundano cercado de outros entes não humanos e outra vez, ou melhor, ao mesmo tempo como a aberta, a clareira, onde se dá a gênese e a constituição do mundo, de diferentes modos, sob o toque da imensa e inesgotável possibilidade do ser. Assim, no fundo de nós mesmos somos o próprio mundo, a paisagem do ser, onde todas as coisas com tudo estamos já de antemão comunicados. Perceber-se essa totalidade, perceber-se assim como ser-no-mundo é a solidão perfeita. Quando dizemos que tenho um grande afeto bem no interior do peito, ou quando falamos da interioridade, do homem interior etc., esse dentro não indica atrás da pele, carne, junto do coração, pulmão etc. Indica essa totalidade, onde somos a aberta do mundo.

Luciana: A criança pensa que é no peito mesmo. A minha sobrinha não pode comer chocolate. Surge o efeito da alergia e se manifesta no genital. Minha mãe explica que é do fígado. Pergunto para ela onde fica o fígado e ela aponta o genital.

Hermógenes: Aliás, na medicina oriental o fígado, mais do que aquele órgão, são canais de função energética. Surge aqui uma espacialidade que não é da coisa. Em referência ao que dissemos acima sobre o ser do ser humano como ser-no-mundo, como a paisagem do ser, existe uma anedota acerca do Chuang-tzu que conta:

“Chuang-Tzu e Hui-Tzu atravessavam o rio Hao. Disse Chuang: “Veja como os peixes pulam e correm tão alegremente. Isto é a sua felicidade!”

Respondeu Hui: “Desde que você não é um peixe, como sabe o que torna os peixes felizes?”

Chuang respondeu: “Desde que você não é eu, como é possível que saiba que eu não sei o que torna os peixes felizes?”

Hui argumentou: “Se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que você, não sendo peixe, não pode saber o que eles sabem”.

Disse Chuang: “Um momento! Vamos retornar à pergunta primitiva. O que você me perguntou foi: como você sabe o que torna os peixes felizes? Nos termos da pergunta, você sabe, evidentemente, que eu sei o que torna os peixes felizes. Conheço as alegrias dos peixes no rio, através de minha própria alegria, à medida que vou caminhando à margem do mesmo rio”.

Marcos: É a Mônada. Cada um já está em comunhão com tudo sem sair de si. Mônada, o ser-homem, o ser-no-mundo, a existência não precisa de janela. Não é ilha fechada, já de antemão está comunicado com tudo, é todas as coisas…

Hermógenes: É o que D. Fernando denominou de relação.

Marcos: Aqui a relação é anterior aos extremos relacionados. Não pode ser dois pólos e algo existindo entre os dois.

Hermógenes: Digamos que fui tocado bem no pro-fundo de mim mesmo. Este pro-fundo de mim mesmo não sou eu, é o que me possibilita ser. O outro também está tocado pelo mesmo pro-fundo de si mesmo que não é ele, mas é o que possibilita ele ser como possibilita eu ser. Isto significa, já estamos comunicados no pro-fundo de nós mesmos. Isso é que, no intercurso do relacionamento p. ex. no matrimônio, faz crescer o par.

Marcos: Ouvi falar de um médico que só trata de uma pessoa casada há muito tempo em conjunto com o seu cônjuge. Com o tempo, o casal vai ficando realmente uma só carne, a partir deste profundo de si mesmos.

Hermógenes: Nós na VR, por mais que falemos de relacionamento, sem o que toca no fundo – que é a vocação – não há relacionamento. Por isso, a vocação, o relacionamento-base é anterior a tudo. Sem ela, nada perdura.

Marcos: A sexualidade, mais do que ter um objetivo fora de si (prazer, procriação), tem um sentido que culmina no amor. O que é amor?  Normalmente começamos com relação. E relação entendemos formal-geometricamente como dois pólos e algo ligando-os. Temos que entender relação existencialmente, como inter-esse, correspondência.

Hermógenes: Quando ouvimos relação, soa genérico e geral. Como fenômeno recebe o específico nome de encontro.

Marcos: Eu queria partir da concepção abstrata formal para chegar ao Encontro. Ser com o outro pode ser entendido como duas pedras ou duas cadeiras. Mas pode se compreender que cadeira não tem relação uma com a outra. Na verdade elas aparecem como um todo instrumental. Mas o ser de uma cadeira não interpela o ser da outra. Não está no interesse pelo outro.

Hermógenes: Estar um ao lado do outro como se fosse coisa junto da coisa não é propriamente ser-com-outro. Ser-com-o-outro é implicância do inter-esse, jamais indiferente e neutro no sentido geral.

Marcos:  De duas pedras não se pode propriamente dizer que estão uma com a outra, que se toquem uma à outra. Isto só se pode dizer de duas pessoas, pois cada uma é, cada vez, uma abertura para um mundo, ou seja, cada uma é tudo, é também o outro, sendo si mesma. Ser-com-o-outro é ser coparticipante do todo, do mundo, acolhendo o todo cada vez em si e no outro. Isto nós chamamos de interioridade. Cito, a propósito, um texto do Carneiro Leão (em “Aprendendo a pensar”, vol. I): “… Interioridade não diz simples interior nem mero estar dentro em oposição a estar fora, seja de si ou de outro. As pedras possuem interior e estão ao lado de outras coisas, junto com animais, plantas e homens no mundo. E no entanto não são interioridade. É que com a pedra os sintagmas, “em”, “ao lado de”, “junto a”, “com”, exprimem mera relação transitiva entre coisas, enquanto interioridade, incluindo relacionamento com a totalidade, exige, como condição de sua possibilidade, o Nada do Mistério. Interioridade é a abertura para a totalidade de todas as diferenças sem perda de unidade. É que esta abertura se abre na irrupção do horizonte de diferenciação próprio da identidade. Por isso só o homem é interioridade. Ser homem é deixar-se abrir pelo diferir da identidade em espaços de encontro com o Nada do Mistério. Nesta abertura lhe advém a liberdade da verdade; a liberdade de deixar encontrarem-se as diferenças de todos os modos de ser. É o que se dá em toda atitude essencial que reconduz o homem até a linguagem de sua humanidade. Assim, na profundidade do viver, na presença da morte, na transcendência do Eros, na convivência pessoal, na experiência da fé, na criação artística, no pensamento radical, irrompe-lhe o Nada do Mistério, de tal sorte que nesta irrupção e por ela todos os modos de ser chegam a desabrochar na interioridade daquilo que são e tal como são. É na irrupção desta interioridade que os seres são enviados à viagem da identidade de suas diferenças.”

Ulrich: pedra pode ser também humano, é homem?

Hermógenes: Pedra é momento do mundo que é o homem.

Marcos: Pedra já entra no mundo das pessoas aqui em Cocalzinho porque elas constroem com pedra. E aqui entra no mundo do homem, pois é sobrevivência também, porque é o ganha-pão. O homem é tocado pela pedra. Mas a recíproca não existe. Pedra por si não tem abertura para o mundo. Só através do homem é que pedra vem à fala, vem à luz, como pedra.

Agora, de um animal, já é mais difícil falar. Ele tem também mundo? Ou melhor, ele tem ambiente?! Mas ele não se relaciona com o ambiente como o homem se relaciona com o mundo.

Hermógenes: Fala é fenômeno humano que a partir de um toque faz surgir um mundo. Na teologia, a fala de Deus cria o mundo.

Marcos: Animal não fala porque não tem o que dizer.

Hermógenes: O ser do homem é ser-no-mundo, o ser com. Alguém podia se estabelecer aqui e dizer que tudo isso aqui é um grande depósito de energia em forma de pedra e vegetação. E entrar aí como peça deste mundo. Outro grupo pode abrir um mundo onde tudo isso é louvor de Deus.

O próprio do ser humano é ser uma passagem para trazer à fala, ao significado um mundo. Esse privilégio, esse apanágio de ser a aberta do mundo recebeu na grande Tradição do Ocidente o nome de lógos, que foi traduzido para o latim como Ratio, e em português: Razão. Essa compreensão da Razão é infinitamente maior e mais dinâmica e viva do que a nossa compreensão como a faculdade donde vem o racionalismo…

Marcos: Cada um é uma abertura em que aparece o mundo em sua totalidade. Por outro lado, relação tem a ver com cuidado. No humano, o que perpassa é o cuidado. Mas o descuido é cuidado também. Só que como fenômeno privativo do cuidado. O simplesmente parar ao lado de alguém já tem a estrutura de cuidado. Mesmo que pareça algo privativo… indiferente. Deste nível podemos ir subindo em níveis diferentes de cuidado. Ex. eu vou ao banco. Sou atendido pelo caixa. Mesmo no que achamos ser impessoal, no papel, na função que alguém exerce p. ex. no banco, pode estar atrás de tudo isso o cuidado, portanto o ser-com.

Luciana: na maternagem: cuidados necessários para o funcionamento orgânico – fralda limpa, mamadeira na hora certa. A criança pode morrer por falta do cuidado, por falta da função materna. Morrer pela indiferença. Precisa alguém introduzir à fala.

Marcos: Indiferença já é ser-com. Relação deficiente. A criança saca se é relação de humano para humano ou de humano para objeto.

Aloísio: relação com o caixa do banco: é centrada na finalidade. Humano: filho, mãe, amizade, são relacionamentos que não se esgotam na finalidade, na funcionalidade.

Hermógenes: Numa canção antiga das crianças japonesas se diz “minha casa é o regaço da mãe”. A casa pode ser pobre, mas uma mãe dá a riqueza da intensidade humana que cria o mundo, o lar.

Mamede: Duas japonesinhas, recém chegadas do Japão, visitando favela – se impressionaram porque crianças insistiam com elas para que fossem visitar as suas cabanas, tão pobrezinhas que as japoneseas se fossem delas teriam vergonha de mostrar.

Hermógenes: Isso é identidade, é um exemplo claro da teoria das dimensões.

Marcos: Quanto mais aparece o que chamamos de pessoal, mais se densifica o que chamamos de mundo.

Fernando: Paixão, amor, afetividade?

Hermógenes: Ao modo de ser do mundo, vamos chamar de mundidade. A mundidade, a totalidade tem um ponto de toque que mantém o calor, a estruturação. O ponto de toque é o que chamamos de afeição. O que mantém a estruturação viva, tecida é a afeição. Mundo familiar, por ex.

Marcos: O que começa a dar pregnância é o tu. Mesmo no caso da criança, se aparece o tu até o jeito de tocar a criança muda. Enquanto for ele, aquilo… não dá o próprio do que chamamos de humano.

Hermógenes: E o tu a tu é repetição de pai e mãe como eu e tu. Vai se expandindo como a bondade que é difusiva de si. Da dimensão disso e daquilo, dele e dela, só se passa para a dimensão do tu através do toque.

Mamede: Ele, aquilo é distante, “tu” dá proximidade, dá temor e reverência.

Hermógenes: Um pastor anglicano fez um estudo da moderna pastoral urbana. Ele afirma que querer criar num condomínio de um arranha-céu uma comunidade de base a modo de uma paróquia rural, é não perceber que as pessoas, no condomínio do prédio, mantêm um relacionamento relativamente distante, para preservar a privacidade e assim preservar um relacionamento cortês mas até certo ponto neutro. Ao passo que tem relacionamento íntimo e mais familiar com outras pessoas de outros prédios e de outros bairros. Diz um ditado Vatutsi: se queres a paz, afasta as tendas.

Maike: Meus amigos mesmo eu não abraço.

Hermógenes: Diz Chuang-tzu: “Quando um homem pisa no pé de um estranho no mercado, desculpa-se amavelmente. E dá uma explicação: (‘Esta praça está tão apinhada de gente’). Se um irmão mais velho pisa no pé do irmão mais moço, diz: ‘Desculpe!’. E fica por isso mesmo. Quando um pai pisa no pé do filho, não lhe diz nada. A perfeita sabedoria não é premeditada. A maior delicadeza é livre de qualquer formalidade. A conduta perfeita é livre de preocupação. O amor perfeito dispensa as demonstrações. A perfeita sinceridade não oferece nenhuma garantia”.

Marcos: Há dimensões diferentes de relação. Aquilo, Ele, Tu. Quando a relação vira tu? Quando cresce em pregnância. Texto de Romano Guardini:

“O outro se torna um ‘tu’ para mim somente quando cessa a simples relação sujeito-objeto. O primeiro passo rumo ao ‘tu’ é aquele que ‘retira as mãos’ e deixa livre o espaço em que possa se fazer valer o caráter da pessoa de servir de fim a si mesma. Isto constitui o primeiro manifestar-se operativo da ‘justiça’ e a base de todo ‘amor’. O amor pessoal tem início decisivamente não com um movimento que se dirige ao outro, mas que se retrai diante dele. No mesmo momento mudo também a minha atitude própria. Na medida em que eu dou liberdade ao ser, visto antes como objeto, de assumir a atitude de ‘eu’ que se apresenta, movendo-se a partir de seu próprio centro, e lhe consinto de se tornar o meu ‘tu’, eu me transponho de uma atitude de sujeito que utiliza ou luta àquela de um ‘eu’. Este processo significa um risco. Diante do objeto o homem é participante somente de modo objetivo, ‘coisal’. O seu caráter de pessoa é quiescente. Não se mostra o seu rosto interior. Tem as suas mãos livres para todo movimento à sua disposição. É participante e interessado só com aquilo que possui ou pode fazer, não com o seu ‘eu’. Mas, mal vai ao encontro como ‘eu’ ao ‘tu’, interiormente desabrocha algo. Não assim como quando uma pessoa humana, que até certo momento tenha podido ocultar a sua verdadeira essência, de improviso se torna transparente aos olhos de um agudo observador; nem mesmo como quando cessam as máscaras e a mímica, e aparece, de repente, a ‘expressão’; mas quando cai aquela tela, que consiste na ‘objetividade coisal’ do comportamento com que se age. Olhando para o outro como um ‘eu’, eu me abro e me mostro. Todavia, a relação fica incompleta, se não faz partir, para si, o mesmo movimento também a partir de lá, enquanto o outro consente a mim de tornar o seu ‘tu’. Contudo, realmente a mim, não a qualquer um que tenha visto em mim; e assim como eu sou, não como gostaria que eu fosse. Se isto não acontece, todo o conjunto fica incompleto e atormentado. Até surge um sentimento de estar à mercê do outro; porque no autêntico tornar-se um ‘tu’ está a disponibilidade que, de qualquer modo, deve ser correspondida, se não se quer ir contra a honra. Mas, se o movimento se cumpre de volta, então também da outra parte cai a tela da objetividade coisal. No olhar para o outro, o rosto se abre e nasce aquela relação, em que os olhos se olham nos olhos. Só então é presente a atitude plena de quem é pessoa… Agora somente se vinculam também os destinos, no sentido pessoal”.

Hermógenes: Se vemos as pessoas no esquema sujeito-objeto, está na posse, no domínio.

Marcos: O tirar a mão de cima dos outros abre espaço para justiça e amor, elementos básicos para a sociedade.

Hermógenes: Justiça é medida adequada para o humano enquanto humano.

Marcos: Amar não é primeiro dirigir-se ao outro, mas retirar-se para deixar ser o outro. A medida que permite que o outro seja um eu, um tu… eu também mudo.. não sou mais sujeito… me torno um tu para o outro. O contrair-me para deixar ser o outro me torna mais eu. A relação sujeito-objeto é de domínio e não tem risco. Deixar o outro ser tu é um risco. Mostrar o rosto não é tirar a máscara. É que caiu a tela da objetividade da relação sujeito-objeto.

Hermógenes: Há anos houve  um incêndio num dos prédios da Avenida Paulista, em S. Paulo. A equipe de reportagem da TV Globo começou a transmissão da cena do incêndio. De repente aparece um homem salvando 2 crianças. Ele pegava as crianças e se debruçava na janela do andar já em chamas, onde eles estavam, e pendurando-as pela mão, as jogou uma após outra, na sacada do andar de baixo que não estava queimando. Assim ele salvou as duas crianças, seus filhos. A mãe preparava o jantar, tendo uma pequena televisão na cozinha ligada para assistir uma novela. De repente, a TV noticia o incêndio e mostra a cena. Penalizada, mas ainda um tanto neutro, assistia o esforço de um homem, tentando jogar duas crianças na sacada do andar de baixo, dizendo consigo: “Tomara que se salvem”. De súbito, quase desmaiou. Pois reconheceu o seu marido e seus filhos. Toda a cozinha desapareceu. A neutralidade sumiu. Como que pregado no chão, ela, angustiada, tensa e desesperada, estava lá na Avenida Paulista, tentando ajudar o marido para salvar os filhos. É que caiu a tela da objetividade da relação sujeito-objeto, e apareceu o mundo real do Tu. Ela agora estava no meio do incêndio com marido e seus filhos.

Marcos: Diz Guardini: Eu permito ao outro de se tornar o meu tu. E o outro me permite me tornar o tu dele.

Hermógenes: Quando alguém diz: Amo tanto a você e você não me ama, o outro é ainda objeto. Não é tu. Na objetividade, amar é no fundo favor que eu faço ao outro, há ali empáfia, superioridade. No encontro amar é pedir favor: faça-me o favor de receber o meu amor.

Marcos: Recebendo o outro nele mesmo eu dou a chance de ele se dar em si mesmo a mim. O próprio Deus quando nos ama está pedindo que recebamos o seu amor.

Marcos: No Face a face, olho no olho, de tu a tu é que nos encontramos como pessoa. E os destinos se unem.

Hermógenes: Vida eterna é face-a-face. Eis o mais profundo da sexualidade humana. Do começo ao fim esta história é sexualidade.

Marcos: Diz Sartre: Fugimos do olhar do outro porque nos reduz a um isto.

Hermógenes: Nos põe na perspectiva. O olho no olho que é o encontro não coloca na perspectiva. A sagrada escritura, no relato da ressurreição, apresenta três modos de ver.  O primeiro é olhar na perspectiva. O segundo é olhar atônito, assustado. O terceiro viu e creu. Auscultou. Quem bem vê, sempre crê.

Marcos: Sartre tomou o olhar só no sentido de sujeito e objeto, como objetivação, como fazer da pessoa um objeto.

Hermógenes:  Duas pessoas que se amam podem fechar os olhos que estão olhando, isto é, auscultando. No alemão, auscultar é a mesma palavra para pertencer e obedecer (gehören e gehorchen).

Marcos: Fomos seguindo o fio da relação e chegamos ao encontro que instaura o relacionamento tu a tu. O pedagogo Bollnow caracteriza o encontro como topada, trombada. Ele diz: “um ser radicalmente outro me defronta e me coloca uma exigência absoluta (…). Não é o vulto especial do outro que me preocupa, mas o caráter incondicional e absoluto da sua reivindicação (…). Todo encontro é um destino e onde atinge o homem, logo o atinge também na sua totalidade. Um encontro multifário, o mais variegado possível, seria uma contradição em si mesmo; pois um encontro exclui sempre o outro; é tanto mais autêntico, quanto mais direto e exclusivamente atinge o homem”. E ainda: “Encontro sempre designa o fenômeno que assim podemos descrever: o homem esbarra em algo, que o defronta de maneira imprevista, digamos qual uma fatalidade, como algo radicalmente diverso daquilo que ele esperara segundo suas concepções anteriores, obrigando-o a se orientar de novo. Encontro é, portanto, nesse sentido, um acontecimento nitidamente destacado e (…) um acontecimento acentuadamente instável, que lança o homem fora da linha de desenvolvimento seguida até o momento e o coage a assumir novo início (…). É o puro ‘que’, isto é, a pura presença, a pura facticidade desse encontro, que lança o homem de volta a ele mesmo e o coage a se decidir, a partir dele mesmo, novamente. Justamente essa pura facticidade do encontro, privada de todos os dados de conteúdos explicativos e detalhes constitui o seu caráter existencial. Portanto, o próprio homem é colocado à prova no encontro. Diante da força do outro que me defronta, se decide o que em mim é autêntico. Nesse abalo devo-me confirmar. Eu posso subsistir ou fracassar. Assim, o encontro é uma prova da minha própria autenticidade. Sim, com maior nitidez: no encontro não se confirma uma substância já existente no homem. Pois é justamente nele que o homem vem a ser propriamente e pela primeira vez ele-mesmo. Este último núcleo do homem, o qual expressamos com o termo ele-mesmo ou existência, por princípio jamais se realiza na solidão de um Eu, mas sempre e unicamente no encontro. Por outro lado, porém, o encontro é algo poderoso, algo que por assim dizer assalta o homem, algo que absolutamente nada tem de amigável e convidativo. Ele é sombrio e ameaçador. Compreendemos assim porque o homem, no início, se assusta diante dele, dele procura esquivar-se e deseja permanecer na indiferença do seu estado anterior. Para que o encontro de fato aconteça, é necessário que seja aceito pela própria pessoa atingida, seja assumido por ela na liberdade. Como tal, o encontro exige o seu engajamento pleno”.

Encontro: algo inesperado. Fatalidade. Obriga a redefinir-me. A começar de novo. Invasão. Irrupção. Atingimento que lança novo início. Renascer.

Hermógenes: Pode ser que casal viva indiferente e quando um morre, dá encontro ou intensificação. Cr. Paulo Nagai no seu livro A corrente de Rosário, quando relata o seu encontro, depois da explosão da bomba atômica em Nagassaki, com os ossos carbonizados da sua esposa e ao lado dela a corrente de rosário (Cf. Felini, o filme La Strada, na última cena).

Marcos: encontro tem o caráter de Facticidade. Não é um fato entre outros.

Hermógenes: É irromper e lance de uma nova vida.

Fernando: Não se sabe de onde vem nem para onde vai.

Hermógenes: Não se sabe nem se dará certo?! Tem a liberdade e seu risco.

Marcos: Risco e angústia.

Hermógenes: É ventura e aventura, a bem-aventurança. Experiência totalmente nova.

Marcos: Certeza e asseguramento são categorias do eu na relação sujeito-objeto. No encontro o risco não é falta de certeza.

Hermógenes: Risco é o engajamento no salto.

Marcos: Como aparece o tu no encontro? O tu é graça. Eu não posso produzir, calcular um encontro.

Hermógenes: No encontro aparece o outro como outro. Fora do encontro aparece como prolongamento do eu, sujeito-objeto, ingerência do eu.

Marcos: Cada encontro exige que o outro seja para mim tudo.

Hermógenes: É um salto. Não é aproximar-se passo a passo.

Fernando: Os preliminares da conversão de São Francisco?

Hermógenes: São condições de possibilidade do encontro. Entre salto e preparação para o salto há uma diferença estrutural. O atleta, na quarta vez, que é o salto classificatório, não faz experiência. É tudo salto. Desde o primeiro movimento da corrida para o salto.

Marcos: Cada encontro é único e exclusivo. Por isso desaparecem todas as medidas de comparação. Disto nos fala Martin Buber: “Nada mais é presente do que este um. Medida e comparação se esvaíram. Os encontros não se ordenam para o mundo, mas cada encontro é um sinal da ordem da totalidade-mundo. Os encontros não estão ligados entre si, mas cada encontro te assegura tua ligação com o mundo”.

Hermógenes: Toda preparação é para se dispor. Mas a preparação não causa o encontro. Porém, se vem o kairós, o tempo de graça, estou disposto. Se alguém disser: se não sou eu que causo o encontro, se o encontro é graça, doação, por que então me preparar? Não entendeu absolutamente nada do encontro. Exatamente porque é dom, é graça, é que me empenho de corpo e alma para recebê-lo.

Fernando: O encontro é sempre caracterizado pelo extraordinário?

Hermógenes: Se se entende o extraordinário como algo espetacular, cheio de eflúvios e vivências, o próprio do encontro pode ser bem suave, imperceptível. O decisivo é que o encontro é radicalmente outro do usual e conhecido. A língua alemã, quando se dá numa batida e surge na fina porcelana uma rachadura, tão fina que é quase imperceptível de fora, chama essa racha de Sprung. Sprung é salto. A diferença radical da porcelana intacta e a “saltada” você percebe no som. A intacta tine. A “saltada” não ressoa, emite um som surdo, opaco.

Marcos: Enamoramento. Paixão. São outros elementos do amor. Diz-nos um filósofo russo (Soloviev): por que o outro, no atingimento do enamoramento aparece como absoluto é que dá impressão de que quem está enamorado idealiza o outro. Este filósofo diz que no ser atingido pelo mistério do outro como meu tu, este tu me aparece como ele é em Deus, ou seja, como ele foi pensado, amado, querido por Deus, desde toda a eternidade. O enamoramento é, pois, um vislumbre do ser ideal do outro, ou seja, do esplendor e beleza do outro em sua configuração originária, anterior a toda a sua realização dentro do mundo criatural. No vislumbre do enamorar-se o tu me aparece como ele é em Deus. Afeição é o toque deste vislumbre deste tu como um tu eterno, como um reflexo do Tu divino. Não será por isto que o Cântico dos Cânticos chama o amor-paixão uma faísca, uma centelha que escapa do Fogo de Iahweh?

Hermógenes: O amor assim entendido é o real a priori. É o possível, entendido como condição da possibilidade dos nossos encontros. Aqui essa possibilidade a priori não é um campo aberto, um ideal a ser alcançado, mas um fundamento, dado como dom, como graça. Quem não vê esse amor fundamental, diz que o amor é um ideal utópico.

Marcos: Quando se vê o amor como o fundamental, os defeitos do outro não são motivos para não amar.

Hermógenes: É bem diferente de eu sujeito imaginando a realidade definitiva lá nos fins dos tempos….

Aloísio: Entender a coisa assim é uma compreensão superficial do escatológico.

Marcos: Nietzsche pergunta: como acreditar na redenção desses homens que parecem não redimidos? Sexualidade só se ilumina na realidade personalíssima chamada amor. Podíamos dar um passo à frente nos perguntando o que é pessoa?

Hermógenes: Já de princípio podíamos dizer que não é sujeito. E pessoal não é subjetivo.

Marcos: perdeu-se a origem da palavra. Parece que tem alguma relação com as máscaras do teatro grego.

Hermógenes: Mas logo que ouvimos a palavra máscara, nos equivocamos, pois logo pensamos no mascarado. As máscaras que se usavam nos teatros gregos, e hoje também no teatro no Japão, possuíam uma função toda própria. No teatro grego, serviam como que de amplificador das vozes. E serviam principalmente para caracterizar as personagens, como que dando-lhes a função de representar o arquétipo: o sacerdote, o governante, a mulher, a criança, a virgem, a mãe, o camponês, o comerciante, o rico, o pobre, o soldado etc. (Cf. o significado da palavra Eidos em grego que aparece na palavra idéia, ideal, eidética etc. )

Marcos: Seria algo como essência, perfilada numa singularidade.

Luciana: Como o palhaço.

Hermógenes: Isso mesmo. Um filme japonês que ganhou antigamente prêmio na Festival de Cannes ajuda a ver o que é máscara: O filme se chama O portal do inferno e a TVE, de vez em quando, passa esse filme. A cena onde aparece o que é a máscara é quando a esposa fiel de um nobre samurai é pressionada por outro samurai guerreiro que se apaixonou por ela e, encurralando-a, ameaça a matá-la e matar o seu marido, se ela não ceder ao seu pedido. A câmara mostra o rosto da esposa fiel em close-up. O rosto é imóvel, aparentemente uma máscara sem expressão, mas como que oculta no seu interior uma tempestade de emoções, decisões, lutas e em ocultando faz vir à fala todo um mundo da existência da mulher que na linguagem antiga do espírito do cavalheiro e da cavalheira se chama: o caminho da mulher. É Ulisses, que, em meio da festa em sua homenagem, esconde o abismo de tristeza pela separação do seu lar e da sua esposa. A palavra grega para verdade é a-létheia. “A” indica o que está virado à luz, o que aparece. “Létheia” o abismo que se oculta no que aparece, mas em se ocultando se anuncia na profundidade do seu retraimento. Não é a impressão que temos, quando no encontro das pessoas, se dá o olhar do olho no olho?

Ulrich: A máscara fala do que a pessoa é no seu mais próprio. Máscaras do Louvre comentadas por Rodin. O medieval dizia “res”, coisa, mas pensava na configuração.

4º dia – 02/11/04

Marcos: Vamos rever um pouco o movimento que fizemos até agora. No primeiro dia perguntamos pelo sentido da sexualidade. Vimos que está referida à existência humana, que chamamos de vida. Vida humana é responsabilização, ter que ser. No texto de Rahner foram aparecendo as palavras decisão, liberdade, responsabilidade

Vimos que o que chamamos de sexualidade é algo tão misterioso como a própria vida. Não pode ser tratada como coisa.

Depois começamos a ver as várias dimensões. As anedotas. O texto de Nietzsche estava dentro disso.

Ontem tentamos retomar este caminho com o esforço de evidenciar que o sentido da sexualidade está no amor. E passamos a refletir sobre relação. Ele, ela, eles, elas, isso, aquilo não estão na relação Tu. E procuramos ver como uma relação sujeito-objeto torna-se tu a tu. O elemento que desencadeia esta última possibilidade é o encontro. O caráter de invasão e irrupção que ele tem. O caráter de único do tu. Enamoramento: ser atingido pelo mistério do tu. E tudo isso tem a ver com a pessoa. Mas aqui não falamos mais de sujeito. Não havendo mais objeto não há mais sujeito. Tu nunca pode ser objeto. É sempre presença. E vimos que esta relação tu a tu começa dando um passo para trás, tirando a mão de cima do outro. Aí o outro também me permite ser eu. E terminamos o dia nos perguntando o que significa pessoa.

O encontro é um evento de graça. Mas é também uma tarefa. Porque pessoa é também tarefa. Nós não somos pessoa. Nós nos tornamos pessoa. E o fazemos a partir de uma errância: o amor deslocado, que, sendo deslocado, no entanto nunca deixa de ser amor. O poeta Rilke dizia que o amor é uma grande possibilidade de alguém tornar-se pessoa por graça de outro. A tarefa do amor consiste em deixar ser o outro. Santo Agostinho diz: Amo = quero que sejas. O amor, portanto, não é posse, não é usar o outro para minha satisfação.

Luciana: Mãe começa a sê-lo quando deixa o filho separar-se dela.

Marcos: Usualmente quando a gente escuta “deixar ser”, se escuta logo como “tô nem aí”!

Hermógenes: Aí não tem querer.

Leila: Nem compreender e aceitar o outro.

Marcos: Deixar-ser é tarefa: quero que te tornes o melhor de ti.

Leila: Era muito sonsa e esquecida. Quando aceitei a coisa, comecei a mudar.

Luciana: O voyer pode ser um bom fotógrafo.

Marcos: Acho que o principal é o seguinte: quando me aceito, já sou mais do que isso. Para o ser humano, quero que sejas significa: quero que te tornes aquilo que podes ser.

Luciana: Quando ouço alguém dizer: Eu sou isso e acabou! Isso me angustia. A verdade é que é possível ser muitas coisas, tornar-se muitas coisas.

Marcos: Liberdade não é excluir os condicionamentos. É fazer, trabalhar incondicionalmente o condicionado.

Hermógenes: Quando se diz é, a maioria pensa em coisa. Quando Sto. Agostinho diz “que sejas” na formulação imperativa, é para dizer que a pessoa, o outro não é coisa, nem o evolutivo vegetal ou animal, mas liberdade. Todo relacionamento humano, terapia etc. conta com esse modo todo próprio de ser humano como liberdade, como ter que ser, como dever, querer, poder amar. É o seu apanágio. É glória humana ter que dar sentido.

Aloísio: A situação que me é dada é a chance de eu me experimentar.

Marcos: No “quero que tu sejas” está implícito o “eu quero ser”.

Hermógenes: Agora fica desafiante entender o querer porque não tem mais poder. É um ser-junto-de no vigor da gratuidade mútua de se dar.

Daniel: Como é quando no querer há um interferir na vida do outro?

Marcos: Pode ser dominação, sufocar.

Hermógenes: Ao dizermos quero que tu sejas, e que nisso está implícito o eu quero ser, deixemos a atenção concentrar não tanto no ser, mas no querer?

Marcos: Há um modo de interferir que dispensa o outro de ser e que não é busca de ser por minha parte. Em vez de suprimir a liberdade do outro é convocá-lo a ser.

Marcos: Eu sou educador. A criança, de início faz ou deixa de fazer em vista do prêmio. Talvez, no fundo queira ser amada. Mas a coisa só deslancha quando faz por responsabilização. Ser responsável independente de premiação.

Hermógenes: O problema é como despertar? Toda esta fala ainda está no nível do objeto e não do tu a tu.

Frei Egídio diz que a gente não pode ensinar nada a ninguém. Pode acenar. Quem corre acena para outro, faz saltar faísca no outro. Acorda no outro a faísca de fazer algo consigo mesmo.

Marcos: Quando dou aula e os outros não se interessam, começo a dar aula para mim mesmo. E me empolgo. E os outros começam a acordar.

Hermógenes: Usualmente entendemos o binômio professor-e-aluno no sentido hierárquico. Só que o mestre não está acima do discípulo. Pois o Mestre é aquele que ensina a aprender o aprender, e nesse sentido deve mais aprender o aprender do que o discípulo.

Marcos: O professor é aquele que comunica o entusiasmo de aprender o aprender para o aluno.

Leila: Eu, muitas vezes, na terapia, aprendo com o cliente.

Hermógenes: Durante os meus estudos tive um professor, cuja redação de trabalhos admirava muito. Tive que apresentar a esse professor um trabalho, no qual gastei quase um mês. O professor mandou-me corrigir 5 vezes. Ao ouvir o meu protesto, convidou-me a almoçar com ele na sua casa, e depois do almoço, me convidou para tomar cafezinho na sua biblioteca. Assim, como quem não quer nada, me mostrou o seu último artigo a ser publicado, e pediu-me a opinião. Estava tão bem escrito que fiquei com inveja e expressei a minha admiração sem receio. Ele me olhou como que me gozando e me disse: Sabe, o frei, quantas vezes reescrevi esse artigo? 10 vezes, e ainda vou reescrever mais uma ou duas vezes. Empacotei envergonhado o meu pequeno trabalho, e voltei ao convento mais animado. Pois, se ele faz isso, por que eu pé rapado não posso fazer também o mesmo ou semelhante esforço? Em sendo, ele me ensinou a ser.

Marcos: O aluno percebe quando o professor está aprendendo o aprender e ensinando esta aprendizagem do aprender. Esta percepção aparece na fala, quando o aluno diz: “este prepara a aula”!

Marilza: Fiz o trabalho muito mais que a professora pediu e estava muito esperançosa. Ela porém me deu uma apreciação menor, pois, dizia ela, que queria uma coisa menor, usual.

Hermógenes: Isso pode ter sido negligência da professora. Mas poderia ter sido um desafio. Um professor meu, ao ler um pequeno trabalho de uma página que pensei ter feito muito bem sintético me disse: Você não precisa arriscar, mas se você conseguir resumir tudo que disse em três palavras, lhe darei 10. Um pouco ferido, lhe perguntei, se não conseguisse, quanto ele me daria. Disse: O. Tentei resumir o trabalho. Ganhei 0. Mas ele anotou no trabalho três palavras que realmente resumiam todo o meu trabalho.

Marcos: S. Francisco manda frade pregar nu. E vai também pregar nu.

Hermógenes: O zelo e o empenho em trabalhar a sua coisa supõem em primeiro lugar que a gente goste da vocação e profissão, no nosso caso de ser frade menor.

No livro Histórias do Rabi, de Martin Buber, conta-se a Anedota do rabino e do ferreiro.

Em sua juventude, o Rabi Itzhak morava em casa do seu sogro e tinha por vizinho um ferreiro. Este acordava de madrugada e começava a bater na sua bigorna de tal modo que o barulho ressoava nos ouvidos do moço adormecido. Ele acordou e pensou: – Se este homem pode arrancar-se do sono tão cedo por causa de um trabalho fugaz e de um ganho material, será que eu não posso fazer o mesmo para o serviço do Deus eterno? No dia seguinte levantou-se antes do ferreiro. Este, ao entrar na oficina, ouviu o jovem erudito lendo o seu livro à janela, em voz baixa, e isto o irritou: – Este homem não tem necessidade e já está no trabalho! Não vou deixar que leve a melhor!

Na noite seguinte, levantou-se antes de Itzhak. Mas o jovem rabi aceitou a porfia e venceu-a. Tempos depois ele costumava dizer: – Tudo o que consegui, eu o devo principalmente a um ferreiro.

Marcos: Quero que sejas é o amor. Simone Weil, filósofa judia, nascida na França, no seu livro “A Gravidade e a Graça”, diz: “É uma covardia buscar junto às pessoas que amamos (ou desejar dar-lhes) um outro reconforto que não seja aquele que nos é dado pelas obras de arte, que nos ajudam pelo simples fato de existirem. Amar, ser amado, isso só faz tornar mutuamente essa existência mais concreta, mais constantemente presente ao espírito. Mas ela deve estar presente como a fonte dos pensamentos, não como seu objeto. Se ocorre desejar ser compreendido, não é para si, mas pelo outro, a fim de existir para ele. Tudo o que é vil ou medíocre em nós revolta-se contra a pureza e tem necessidade, para salvar sua vida, de macular essa pureza. Macular é modificar, é tocar. O belo é o que não se pode querer mudar. Ter poder sobre é macular. Possuir é macular. Amar puramente é consentir na distância, é adorar a distância entre nós e o que amamos. A imaginação está sempre ligada a um desejo, isto é, a um valor. Só o desejo sem objeto é vazio de imaginação. Há presença real de Deus em tudo o que a imaginação não encobre. O belo captura o desejo em nós e o vazio de objeto, dando-lhe um objeto presente e impedindo que se lance para o futuro. Esse é o preço do amor casto. Todo desejo situa-se no futuro, no ilusório. Ao passo que, se apenas desejamos que um ser exista, ele existe: sendo assim, o que mais desejar? O ser amado então é real e está nu, não encoberto por um futuro imaginário. O avaro jamais olha seu tesouro sem imaginá-lo n vezes maior. É preciso estar morto para ver as coisas nuas”.

Marcos: Se a gente vê a obra de arte para satisfação estética, não olha como tal. Obra de arte a gente só entende como encontro. Aí entrou na dimensão dela. Ver obra de arte como Tu!

Hermógenes: Não é Rilke que fala de um torso, que ao ser visto por nós, nos vê e nos diz para que mudemos de vida? Na obra de arte aparece uma realidade grande. Existir como obra de arte não seria algo como o que aconteceu com Pedro, na pesca milagrosa? Pedro se viu atingido por uma realidade maior, diante da qual se sente pecador: Afasta-te de mim, Senhor, pois sou pecador.

Paul Klee, em sua Confissão criativa, diz: A arte não reproduz o visível, faz visível.

A tarde, estava programado para Leila expor sobre como a psicologia do Gestalt vê afetividade e sexualidade. Só que de repente falecera o sobrinho da Leila que tinha se submetido a uma grande operação em Curitiba. O corpo estava sendo trazido para Goiás, e Frei Marcos e ela tiveram de sair antes para o sepultamento. Assim, gastamos a tarde para já ir trocando idéias acerca do tema do próximo encontro e falamos de modo avulso e informal sobre a estrutura interna das ciências, hoje.

Próximo encontro: 12-15/11/2005 em Araraquara. Tema: Como cada profissão entende estudo – Subtítulos: fé e razão, afeto e fé, coração e razão.

Mike: Tratamos aqui sexo e afetividade diferente da maneira que se trata nas universidades por aí.

Hermógenes: Vamos tentar descrever a diferença.

Regina: Primeiramente não consigo distinguir sexo de afeto.

Hermógenes: As diferenças, como já vimos no início, podem ser diferentes, conforme os pontos de vista. Aqui, sem o perceber, cada um de nós pode estar enfocando afetividade e sexualidade, a partir e dentro de diferentes ciências, a que pertencemos, ora pela busca pessoal, ora pela nossa profissão.

Mike: Na escola aprendemos a separar ciência de senso comum. Aquela tem rigor. Este, não. Por isso, em referência à verdade, a ciência é mais.

Hermógenes: Cada ciência tem os seus conceitos fundamentais que caracterizam a sua área e determina o seu objeto. Como aqui estão vários psicólogos, poderiam dizer quais são os conceitos fundamentais ou categorias básicas da Psicologia? Seriam mais ou menos: libido, consciência e inconsciência, motivação, estímulo e reação, energia psíquica, figura e fundo, arquétipos, inconsciente pessoal e coletivo?  O conceito fundamental, o mais geral expressa o positum, i. é, o fundamento, a partir e dentro do qual as ciências constroem o seu sistema. Por isso se chamam ciências positivas.

Regina: A primeira coisa na faculdade é dizer que a psicologia nasce da filosofia.

Hermógenes: Essa colocação pode estar dentro do que o positivismo antigo (Augusto Comte) esquematizou de como evolui o nosso saber: do Mito Þ Religião Þ Metafísica (ou Filosofia) Þ Ciência como o ápice da evolução como saber racional na plenitude. E nós hoje podemos perguntar de onde a ciência tira esses conceitos fundamentais? Da vida. O primeiro passo de uma ciência é assim, a grosso modo, determinar o âmbito, a área a partir da vida, para então dentro dessa determinação tirar os conceitos fundamentais que dão o fundamento, o positum de uma ciência. A partir e dentro desse âmbito, o qual se tenta limpar sempre mais na sua homogeneidade, lançam-se hipóteses e se processa a tentativa de experimentação para confirmar a hipótese lançada, até não acontecer uma averiguação que contraria a hipótese. Então lança-se uma outra hipótese, melhor, e se processa de novo a tentativa de confirmação etc. Mas qual a diferença existente entre ciências positivas e filosofia? Filosofia não constrói para cima, sobre um positum. Ela questiona os pressupostos de qualquer positum.

Do que se falou no nosso encontro, será que deu para entender o que é necessidade vital e necessidade livre?

Fernando: Quando São Francisco se hospedou com o sacerdote, ele diz para si: é necessário que vás mendigar. Essa decisão é necessidade livre.

Hermógenes: Necessidade vital é a tendência natural das necessidades básicas da nossa sobrevivência: comer, beber, sexo, afeto, exigência de ser amado, respeitado.  A necessidade vital vem por si, espontaneamente. Aqui não há dificuldade em despertá-la. A necessidade livre não vem por si. É necessário se despertar para ela, cultivá-la, exercitar-se no compreender e querer. P. ex. a nossa vocação religiosa.

Irmã: É por isso que na nossa constituição está: “A irmã obriga-se livremente”.

Hermógenes: Há religiosos que pensam que contemplação é necessidade vital. Aí, quando lhes acaba entusiasmo, gosto, pensam que está regredindo. Tudo que chamamos de espiritual é de necessidade livre, portanto, a fortiori, a contemplação. A necessidade vital é chamada muitas vezes na Tradição da espiritualidade de necessidade da carne.

Fernando: É a noite dos sentidos dos santos, p. ex. de S.João da Cruz?

Hermógenes: É ficar na fidelidade à necessidade livre.

Fernando: Qual o positum da espiritualidade?

Hermógenes: Fé é a raiz. Teologia é o tronco. Espiritualidade é um dos ramos da Teologia. E o adjetivo cristão indica o relacionamento de tu para tu com JC encarnado e crucificado.

Frei João Mamede – Mogi, 08.11.04

Apêndice:

Apostilhas do Hermógenes

  • Anotações espirituais em torno do masculino e feminino, uma questão

I

Usualmente não é possível falar do masculino e feminino sem se referir de algum modo à afetividade, ao sexo e à sexualidade. Na espiritualidade sexo e sexualidade se referem à união de corpo, alma e espírito, no amor do encontro entre dois seres humanos, entre homem e mulher, de cuja união podem e devem nascer e renascer três novos seres humanos, a saber pai, mãe e filho, enquanto vida humana a partir e dentro da existência cristã. Trata-se, portanto, de uma totalidade toda própria, com sua lógica própria, ou com a sua razão de ser, cuja imensidão, profundidade e originariedade abrange, toca e atinge o âmago da profundidade a mais íntima do ser humano, a pessoa[1], que na linguagem usual da Psicologia parece receber o nome de Self, Selbst (Jung). O que a mundividência cristã, usando indevidamente a Filosofia, explica como Deus transcendente da metafísica i. é, para além do ser humano, de alguma forma está referido, embora de um modo muito deficiente e defasado, à experiência de fundo do ser humano, onde homem e mulher, em sendo pessoa é acolhida e recepção cordial e grata do toque, da diligência e do cuidado de uma transcendência radicalmente outra, na ternura e vigor de um encontro também radicalmente outro. Radicalmente outro quer dizer tão inteiramente idêntico nele mesmo que não pode ser percebido, explicado, a não ser nele mesmo como ele mesmo A esse fundo do ser humano acima denominado Self, Selbst, na Psicologia, e na mundividência da Espiritualidade de pessoa, a Grande Tradição do Pensamento Ocidental chamou de Psiqué, Lógos, Espírito, Razão, Liberdade e Ser[2]. Nesse sentido falar do masculino e feminino é como tocar na ponta de um ice-berg, cujo fundo submerso na sua totalidade é o mistério da essência do Homem. A Espiritualidade da mundividência cristã pretende falar sobre o masculino e o feminino a partir e dentro da dimensão da pessoa acima insinuada.

II

Usualmente se distinguem os adjetivos feminino e masculino do fémea e macho. Correspondentemente se distingue sexual do genital. O adjetivo genital se refere ao aspecto físico-corporal de reprodução animal do ser humano e a suas implicâncias; sexual, ao aspecto psico-físico, anímico sensual, erótico do ser humano, que de alguma forma está relacionado com o aspecto genital. Pergunta-se: o sexual diz respeito, de alguma forma, também à dimensão chamada espiritual? Os medievais perguntariam pois: os espíritos (a saber, a alma, o espírito, o anjo e Deus) têm sexo? Se o tem, de que sexo é?

Essa questão, hoje ridicularizada, na realidade implica numa questão que nos aparece na questão atual, colocada acerca da Ciência Moderna no que se refere ao seu ser. Em que consiste a cientificidade das ciências naturais e a cientificidade das ciências humanas? O que significa o termo ciência, quando se refere às ciências modernas, naturais e humanas? O saber ciêntífico tem sexo? Certamente não?! Há geometria, aritmética ou matemática feminina, masculina, ou sensual e erótica, ou católica ou protestante ou budista, há matemática anciã, adulta, infante? Certamente o saber científico nada tem a ver com todos esses adjetivos, indicativos do ser humano. Mas há Psicologia feminina? O saber chamado psicológico, enquanto saber, é masculino, feminino ou neutro? Por que intuição é feminina? Raciocício, masculino? O que significa intelecto é mais do masculino, o coração, mais do feminino?

Mas, não houve aqui uma troca de assunto? Começamos a falar da diferença do aspecto genital do aspecto sexual. Começamos falando portanto da realidade em si, denominado genital e sexual no ser humano. Agora ao perguntar se o saber científico tem sexo, estamos falando não da dimensão objetiva denominada genital e sexual, mas do saber sobre o genital e sexual. O objeto de um saber pode ser o masculino e o feminino. O sujeito do saber  pode ser masculino ou feminino. Mas o saber, o ato de saber pode ser masculino e feminino? Mas, dizemos: o modo de abordar, o modo de compreender e explicar um objeto, no nosso caso o masculino e o feminino, pode ser masculino e feminino! Mas então podemos também ampliar o que foi dito e dizer: a abordagem, a compreensão de uma coisa, de um tema pode ser genital e sexual, sensorial e sensual, engajado e neutro, católico, protestante e materialista, progressista e fundamentalista, pode ser material, psíquico e espiritual, historiográfico, estórico, estético e artístico, medicinal, terapêutico etc. Essa questão, hoje muito importante na teoria de conhecimento, esquecida em certos círculos científico-acadêmicos, no início do  século XX mobilizou o Ocidente quando a Psicologia começou a aplicar para si o método científico experimental. E apareceu sob a denominação corrente na época de: psicologismo, biologismo e naturalismo. Não entrando muito nessa questão, para ver mais ou menos de que se trata, em relação ao nosso tema masculino e feminino, vamos ouvir duas anedotas budistas que nos pode fazer ver a questão acima mencionada. São anedotas que mostram o modo de ser de dois homens a respeito de uma jovem mulher em apuros e de duas mulheres a respeito de um monge “exemplar” na busca da iluminação.

III

Confira as anedotas mencionadas acima, no relatório de Fr. Mamede.

IV

Comentário acerca das anedotas:

Observemos: a) o modo de ser do monge mais velho que carregou uma moça muito bonita em apuros para transportá-la à outra margem do rio, podemos chamá-lo de modo coisal de abordar uma realidade. Aqui, o contacto do corpo e corpo, do monge e da jovem mulher é de coisa para coisa, de coisa e coisa. Aqui se dá o encosto, não porém, toque ou contato propriamente ditos. A relação não é propriamente relacionamento. Não há colorido. É neutro. Indiferente e indiferenciado em referências a aspectos que não sejam naquilo que diz respeito à lógica de um transporte de carga, do carregador de fardos. Aqui o ato humano é apenas ocorrência. b) O modo de ser do monge mais novo em referência ao ato do seu colega ter carregado a moça, podemos chamá-lo de moral. Aqui não se trata apenas de um ato como ocorrência. Trata-se de um modo de ser que visa uma meta dentro de um projeto. Por isso diz: “Onde se viu, um monge, no caminho da iluminação…”. Aqui a moça pode aparecer de imediato como impedimento, perda de tempo; mas também como tentação cedida de tocar no feminino como objeto de prazer etc. A relação aqui entre o monge mais novo e a moça, sai da neutralidade do encosto de coisa e coisa e se torna um envolvimento colorido, onde a moça não é um simples peso de carga, mas um ‘objeto’ que toca o sujeito mais agudamente, como impedimento, tentação. Nesse toque surge uma dimensão que antes não havia na ocorrência de encosto coisa e coisa. Proibição e permissão, mandamento e submissão, apego e renúncia são termos que começam a ter um sentido dentro dessa dimensão moral. No entanto, no monge mais jovem essa dimensão parece ainda não estar na plenitude do seu ser, de modo que ele considera o modo de agir do monge mais velho como uma transgressão ou infidelidade ao projeto da busca da iluminação; ao passo que à primeira vista o  monge mais velho parece mover-se no modo de ser apenas coisal, pode ser que vive a plenitude da dimensão moral que nele poderíamos chamar de ético, onde a meta da busca da iluminação impregna todos os seus atos, de tal sorte que tudo, a cada momento, todos os seus afazeres têm um único sentido e função, ser etapas e momentos de uma única busca que é a aquisição da iluminação. c) Na segunda anedota, a velha viúva e o monge parecem estar vivendo intensamente essa dimensão ética acima mencionada no b). E a moça empregada, na busca do seu marido, numa dimensão que é mais do que a dimensão coisal, intensamente sensível, sensual onde está em atividade de alguma maneira o modo genital e sexual, mas tudo isso a partir e dentro de um modo de ser impulsivo e instintivo, o qual denominemos de natural ou hedônico ou estético. Aqui a meta, o projeto de casamento é como que uma eclosão da realização natural do seu instinto. d) Voltando à atitude ética, tanto da velha viúva como do monge, percebemos no fim da anedota, uma diferença radical. No monge, na sua atitude ética, a meta da iluminação é buscada não como uma causa a que ele se entrega para ser transformado segundo o desígnio da iluminação. Em vez disso, a meta é usada para engrandecer o poderio e a autosuficiência do próprio eu. Assim, em lugar de tornar-se um “corpo livre”, a saber, uma disposição bem concreta e finita, cada vez nova, aberta cordialmente ao frescor do inesperado, tornara-se endurecido qual uma “cabeça” de pedra, a ponto de desprezar a “possibilidade” da jovem mulher como “cipozinho” mirrado. Com outras palavras, a sua dimensão ética, tornara-se moralizante, ideológica, e não mais uma preparação incondicional para a liberdade da iluminação. A velha senhora percebe tudo isso, por estar ela na plenitude da dimensão ética. Temos assim nas anedotas mencionadas as seguintes dimensões de abordagem do que é masculino e feminino: 1. dimensão da abordagem material-coisal; 2. natural (ou estética, hedônica); 3. ética (ou moral ou moralizante); e como que insinuada na plenitude da dimensão ética, 4. a dimensão da abordagem religiosa.

V

A seguir proporemos, apenas como proposta, examinar juntos as seguintes afirmações hipotéticas: a) As ciências positivas naturais, na abordagem do que seja masculino e feminino, permanecem na dimensão 1, e reduzem e miram as dimensões seguintes a partir e dentro de si. b) as ciências humanas permanecem na dimensão 2, reduzindo e mirando as outras a partir e dentro de si; c) as ciências filosóficas questionam a partir e dentro da dimensão 3, a si e as outras, interrogando-as no sentido do ser, presente e dominante na impostação das suas pressuposições de fundo. d) A espiritualidade, enquanto cristã e saber, tenta ser sabedoria, i. é, ao sabor do toque da gratuidade da alteridade radical de um radical outro ab-soluto, i. é, livre e solto na sua doação graciosa e grata, deixando-se criticar, i. é, se limpar pelas ciências a, b, c em tudo quanto nela se aninhou como explicações, pressuposições, hipóteses, teorias e doutrinas que não vêm nem pertencem à dimensão e abordagem da graça, ternura e vigor da sua dimensão.

VI

Depois de termos discutido, à bessa, as afirmações hipotécitcas anteriores, tentemos agora destacar uma das assim chamadas características diferenciais do masculino e feminino, a saber, o binômio ativo e passivo, para ver como dentro da perspectiva da acima mencionada afirmação hipotética d) a da espiritualidade (dimensão 4) considera o ativo como característica do masculino, e o passivo como característica do feminino.

Em primeiro lugar, a espiritualidade deixa de lado as considerações da dimensão 1, por ser ela neutra demais no seu modo de ser, onde ainda não surgiu a diferença entre masculino e feminino; mas considera a dimensão 2, porém,  passiva, portanto feminina; ao passo que a dimensão 3, ela considera ativa, portanto masculina. E na dimensão 4 apenas insinuada na compreensão que a viúva budista tinha da iluminação, ao chamar o monge de charlatão, a espiritualidade vislumbra um passivo todo próprio, que é a essência do feminino. E é esse feminino da 4ª dimensão que conduz tanto o religioso como a religiosa na lógica da sua doação ao amor, dentro do celibato cristão. A seguir vamos esquematizar o que foi dito de modo mais detalhado, mas assim em estilo telegráfico, pois o que aqui está exposto só se presta para servir de instrumentum laboris para as nossas trocas de idéias.

  1. Dimensão da abordagem material-coisal: silenciada, pois ao menos à primeira vista parece neutra demais, demasiadamente coisal para poder referir-se ao ser humano na sua vitalidade sensível, sensual, erótica e hedônica, estética da dimensão 2 natural; ou na responsabilização, moralizante, moral e ética da dimensão 3. ética e da 4, da religiosa, o lugar próprio da espiritualidade. No entanto é de grande interesse para a espiritualidade uma interpretação toda própria e aprofundada dessa neutralidade provisoriamente coisal. Cf. o amor no Mistério da Encarnação em São Francisco: Natal, Eucaristia, Morte na Cruz.
  2. Dimensão natural (ou estética, hedônica) = passivo, feminino: aqui pertence o elemento sensorial de prazer e desprazer e suas sensações; elemento sensual, desde o prazer e desprazer a nível genital, erótico, até o prazer e o desprazer a nível da sensibilidade estético-espiritualista. O fascínio e a atração pelo gosto e desgosto; pela beleza e hediondez, pelo prazer e horror envolvente na passividade do ser afetado, do padecer as vicissitudes da necessidade vital. É a dimensão ou o reino do sensível, do visível na impostação “metafísica” tradicional; é a dimensão da “carne”. Atribuições: naturalidade, espontaneidade, vitalidade, vivência, coração, sentimento, irrupção instintiva, paixão cega. Mãe libertadora e devoradora. “Participation mystique”. Na Ásia: Dragão que é feminino: Ternura e vigor da vida elementar (intempéries e erupções da fúria da natureza; a generosidade e o abismo da pujança vegetal, e animal), gracinha e fofura das crianças, espontaneidade e vitalidade inocente e solta das meninas, infantes e adolescentes, sua doçura e sensibilidade; graça e beleza da jovem mulher, virgem (Jung-Frau: a garota de Ipanema – Vinicius de Moraes); sensualidade madura, cheia de ternura e vigor de recepção e doação do amor-paixão, cuidado e diligência, mas ao mesmo tempo tenaz, persistente, envolvente como fogo abrasador e devorador, serenidade cheia de transparência da bondade na benignidade do retraimento. Mãe-Terra.
  3. Dimensão ética: aqui a dominante é autonomia e responsabilização da liberdade, que se chama também o reino da necessidade livre. O tom é ativo, masculino. É o reino do saber, querer, buscar, conquistar, do poder. Reino do empenho, do trabalho, planejamento, do assumir. Esse masculino, no entanto, nada tem a ver propriamente com o “colorido” machão do poder e dominação da subjetividade agressiva e empoada, mas com o varão no sentido latino do vir, -i; donde vem a palavra virtus, -tis, a virtude, do sentido grego do anér sophón, o varão na acepção da imensidão, profundidade da vigência de serenidade clara, vigorosa da generosidade de ser. Na Ásia: O Céu. A vigência da grandiosa serenidade da imensidão do céu aberto, infinito, a perder-se no abismo da claridade profunda. Explicar o ideograma chinês Daí: 1 = linha do horizonte; em cima Céu, em baixo Terra. Homem atravessado por uno é daí = grande. Ligar a idéia dessa grandeza com virtus, trabalho e cuidado do Senhor, i. é, Dominus, Dominus dominantium, = servo, modo de pai de família: daí o éthos como moradia, a possibilidade do morar, habitar a Terra Þ Mundus.
  4. Essa dimensão não é resultado de 2 e 3, enquanto fundamentação, complementaridade, evolução, oposição, mas sim de repercussão diferencial do e ao uno: isso se chama na espiritualidade cristã de participação e comunicação: comunhão. É, pois, um fenômeno do encontro., o mais intenso e profundo no amor, exemplificado pela união corpo e alma e espírito na contração sexual de duas pessoas, uma masculina e outra feminina: matrimônio cristão. Mútua doação e recepção de si, num movimento centripetal de contração, onde se dá a concreção de mútua posse e identificação: desenhar o movimento espiral, centripetal para a direção de um ponto: olho do furacão. Esse movimento de doação e recepção, da recepção da doação e da doação da recepção da doação etc. etc., continuamente se abandona ao deixar-se continuamente para trás, abandona a si, se renuncia, se aniquila, morre para que haja vida, no retraimento humilde, pobre e sine próprio do servo inútil da disponibilidade-serventia, do servo de toda a humana criatura: Deus de Jesus Cristo, a Misericórdia. Esse modo de ser que está presente no ponto assintótico da fuga para dentro do olho de furacão que em tudo, de tudo, para tudo, é apenas a disponibilidade de ser usado como serviço à saúde da vida em todas as dimensões é o que está acenado nessa 4ª dimensão que é a da espiritualidade cristã e aparece junto do matrimônio cristão como celibato cristão dos religiosos e das religiosas. Mas aqui, se há algo como superioridade, esta pertence ao matrimônio cristão, pois o celibato é na sua essência participação na essência desse Servo de toda humana criatura, cujo nome é um Deus chamado Jesus Cristo, o pobre e humilde, Crucificado. Essa Dimensão é anunciada por São Francisco de Assis como a Senhora Pobreza, e é a feminilidade originária, em cujo fascínio e em cuja atração da graça vivem tanto o varão como a mulher como cavalheiro(a)s, irmã(o)s de armas, companheiro(a)s, sócio(a)s , no seguimento de Jesus Cristo.
  5. Se tudo que aqui foi lançado, assim de modo provisório, e nas discussões ficar mais coerente e claro, então há que se tentar mostrar como o esquecimento da 4ªdimensão faz de-cair as dimensões 2 e 3 para variantes da dimensão 1: coisa bloco como pedra; e a nihilidade do vazio da ocorrência sem vida. E colocar a hipótese: Se assim 1 e 4 coincidem, disso não resultaria a Eucaristia e a Cruz como Morte de Deus e Morte da morte de Deus? Castidade, Obediência e Pobreza como Vida Consagrada, hoje?

[1] Pessoa é uma palavra chave da Espiritualidade. Não confundir, porém, aqui o conceito de sujeito com a pessoa. Pessoa só se torna compreensível na experiência do que na mundividência cristã, nem sempre muito transparente para dentro de si mesma até o fundo, se chama de encontro de amor. De aqui entendido tanto como genitivo subjetivo como objetivo. Cf. O mistério da Santíssima Trindade: uma natureza em três pessoas.
[2] Todos esses termos significam coisas diversas, conforme são usados na Espiritualidade, Psicologia e Filosofia. Esses termos foram denominados por Blaise Pascal de mots primitifs, i. é, palavras originárias, e indicam não isso ou aquilo, nem conjunto disso ou daquilo, mas sim totalidade das totalidades, i.é, mundidade dos mundos, e nascem lá onde o ser humano se torna aquilo que é o próprio dele mesmo, a saber existência, i.é, a aberta de todo um sentido do ser que inaugura uma nova paisagem do ser.
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