Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Dispostos para a nossa vocação religiosa

23/03/2021

 

Nesse retiro vamos refletir sobre a boa disposição para a nossa vocação religiosa franciscana. E de início coloquemos como nosso guia as palavras da Sagrada Escritura:

Convém lembrar: quem pouco semeia, pouco também colhe. Quem semeia com largueza, colhe com largueza. Cada um dê segundo se propôs em seu coração, não de má vontade nem constrangido, pois Deus ama a quem dá com alegria (2Cor 9,6-7).

Na raiz de dificuldades, desânimos, revoltas e indiferenças pode haver uma falta de disposição boa para com a nossa vocação religiosa franciscana. Estamos ainda no início do II semestre, quase entrando já no mês de setembro. É tempo em que facilmente caímos num estado de ânimo que costumamos chamar de setembrite. Setembrite é um estado de desânimo, uma baixa no interesse e busca, uma espécie de marasmo que toma conta de nós, exatamente nesses meses de setembro e outubro, proveniente de cansaço, de um certo desencanto pela vida cotidiana da busca, um certo ressentimento proveniente de experiências negativas sofridas na vida comum etc. Para que o crescimento na vida religiosa franciscana através de espírito e vida de oração, de convívio fraterno e de estudo intenso, continue no pique inicial, é útil e necessário reanimar-nos num ponto muito importante, a saber, retomar, criar de novo se foi perdida, a boa  disposição, ou melhor a boa vontade diante da nossa vocação preciosa.

Na vida espiritual, a boa disposição se chama boa-vontade. Cultivar conscientemente e com muita afeição a boa vontade de ser religioso franciscano é um segredo elementar do nosso caminho. Por isso hoje, nesse retiro, vamos refletir sobre a Boa Disposição ou a Boa vontade para a vocação franciscana através de uma apostilha que daremos o título de “A boa vontade, a semente de mostarda”.

Jesus compara o reino de Deus com a semente de mostarda: “A quem compararemos o reino de Deus?… É como o grão de mostarda que, quando é semente, é a menor de toda as sementes, mas, depois de semeado, cresce, torna-se maior de todas as hortaliças e estende de tal modo os seus ramos que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra” (Mc 4,30-32).

Talvez possamos dizer que, do ponto de vista do nosso empenho para a realização do reino de Deus, o elemento básico, ‘atômico’, a partícula, a mais pequenina e substancial é a Boa vontade. A boa vontade é também como o grão de mostarda do Evangelho. Examinemos o que é e como é a boa vontade, seguindo as dicas do grande mestre da boa vontade, Beato Egídio de Assis.

Segundo frei Egídio, a boa vontade não deve ser confundida com o bom propósito ou bom desejo. Por isso, se você entende a boa vontade apenas como bom propósito ou desejo, ela não satisfaz a Deus. Pois, para frei Egídio, a boa vontade é vontade mesmo! É querer para valer. É querer de tal modo que faz, age! Uma vida vivida com tal boa vontade se chama, segundo frei Egídio, vida ativa.

Na expressão boa vontade, o adjetivo boa tem o significado de per-feita, i. é, bem feita, algo que, em atravessando (per em latim) todas as etapas do processo de crescimento, se perfez, foi feito, se tornou consumado, bem no ponto, portanto per-feito. Boa vontade é, pois, a vontade na plenitude da sua essência, a vontade em “pessoa”.

Na vida espiritual cristã a boa vontade deve ser entendida como algo intenso, forte e vigoroso, de modo todo próprio, simples e direto, como de imediato em concreto vivenciamos na vida, sem pre-conceitos e pre-juízos provenientes de explicações psicológicas, pedagógicas e filosóficas etc.

De imediato em concreto, vivenciamos a vontade, ou melhor, o querer como um modo de ser existencial, impregnado de compreensão e afeição, no qual e com o qual nos realizamos naquilo que temos de mais belo, mais nobre e próprio de nós mesmos: o bem querer, a benevolêcia. Bem querer ou benevolência indica um modo de ser todo próprio de amar. É interessante notar que as palavras bem querer e benevolência indicam o amor, mas em ambas ocorrem o termo bem e querência ou volência, isto é, a dinâmica da vontade. Bem querer e benevolência dizem boa vontade.

Na vontade como bem querer ou benevolência, o querer é uma ação. Há ali, uma atuação imediata e espontânea da nossa liberdade, uma doação do que de melhor e mais íntimo somos. É pois um doar-se a si mesmo, livre, ativo, sem coação de fora como deveres e obrigações impostas. Mas essa doação livre e espontânea não é arbitrária, assim ao léu, sujeita ao meu capricho. Pois essa doação livre  e espontânea é toda ela impregnada, vivificada por uma necessidade que vem de dentro, do âmago de nós mesmos como impulso vivo e bem acordado, que foi atingido por uma afeição. Assim, a nossa liberdade já está sob o toque de uma afeição.

Por vir do âmago, do cerne da minha mais profunda interioridade, essa afeição é algo inteiramente meu, íntimo, pessoal e livre.  Mas ao mesmo tempo é algo anterior e superior a mim mesmo, como um a priori do toque, que sempre já me atingiu no fascínio e no enamoramento de um apelo, de um chamado, que vem do “além”, do meu mais profundo íntimo. Esse toque, esse apelo, no entanto, não se impõe como “super ego”, que tolhe com o medo de castigo a minha liberdade. Antes, pelo contrário, desencadeia em mim, desperta o vigor, a força do que há de mais belo, livre e nobre em mim mesmo, acorda a bem querença, a benevolência, a BOA VONTADE. E nunca somos tão autenticamente nós mesmos como quando somos boa vontade de doação e engajamento, em dizendo: eu te quero bem, eu te amo, eis-me aqui. É a experiência da “noblesse oblige” (a nobreza obriga). Essa “necessidade” livre da bem querença que me compromete, me liga de modo intenso e definitivo, muito mais  e qualitativamente diferente do que a necessidade da imposição que vem de fora, é o verdadeiro e o originário sentido do dever e obrigação humana. É por isso que em português costumamos responder a um favor da bem querença, dizendo: obrigado!

A boa vontade como ação do bem querer, da benevolência, é profundamente sentimento, não porque sentimentalmente a vivenciamos, mas porque o toque originário dessa ação é uma feição profunda que vem do cerne mais íntimo de nós mesmos. Mas é ao mesmo tempo vontade para valer, porque nessa ação, o querer não é apenas um “gostaria que”, um “quereria que”, portanto um desejo, uma veleidade, mas sim impulso de lance que se engaja, que se joga inteiramente sem reservas para dentro da doação de si. É finalmente plena atenção clarividente de inteligência da compreensão,  que nítida e distintamente se dispõe à busca e à investigação incondicional, na entrega ao inesperado da revelação do bem-amado. É pois a límpida disposição da dinâmica do dar-se e acolher: a vontade boa, a boa vontade. Esse poder amar, o bem querer, a benevolência é o que somos como filhos de Deus, é a imagem e semelhança de Deus, é a “centelha” de Deus em nós. A nossa formação, o nosso estudo, a nossa vida comunitária, a nossa vida de oração pressupõe essa disposição, depende dela no crescimento da nossa vocação franciscana.

É importante e decisivo para a nossa vida recordar o que foi dito antes: para frei Egídio há uma diferença essencial entre boa vontade e o ato psíquico do desejo ou da veleidade. Tentemos ver a diferença através de um dito notável de frei Egídio.

Um dia aproximou alguém de frei Egídio e lhe disse: “O que faço para sentir a suavidade de Deus?” E frei Egídio: “A ti, Deus alguma vez, te inspirou boa vontade?” ”Ora, muitas vezes…!”, respondeu o homem. Egídio começou a gritos, a vociferar: “Por que então não guardaste aquela boa vontade que te conduziria ao bem maior?!”

Por que frei Egídio ficou zangado? O que há de tão grave e ruim na resposta “Ora muitas vezes”, para fazer o santo homem perder as estribeiras? A ponto de gritar: “Que diabos!, por que não guardaste….?”Ou há ali algo realmente tão decisivo e grave para desequilibrar um santo de Deus? O grito de frei Egídio é na realidade um grito de alerta para chamar a atenção do outro que cegamente avança para frente numa alienação e falta de seriedade na disponibilidade diante do chamamento de Deus. Mas por que ficar indignado que o outro está assim alienado? É que frei Egídio ama o irmão, se interessa por ele, quer ajudá-lo, e ao mesmo tempo sabe quem é e como é a Boa Vontade de Deus, do Pai que continuamente, sempre de novo, se doa incansavelmente, todo e inteiro, inspirando ao homem a boa vontade. Nesse sentido, Deus “se mata” para inspirar a boa vontade. E o homem nem se toca com isso, levianamente ri e diz, como que fazendo pouco caso: “Claro, muitas vezes já me deu a boa vontade!… e daí!?

Egídio pergunta: “E a ti, Deus, alguma vez, te inspirou boa vontade?” Inspirar significa soprar para dentro. É pois respiração “boca a boca” para reanimar, recuperar no outro o sopro da vida. Isto significa que a boa vontade que Deus, boca a boca, inspira para dentro de mim é o sopro vital Dele mesmo. E o meu sopro, reanimado e recuperado no vigor, segue o fluxo e o ritmo dessa respiração de Deus e assim eu volto à vida! A boa vontade é portanto segundo Deus? É isso mesmo, diz frei Egídio! Isto significa que, na boa vontade que surge,  nasce em mim como bem querença, como benevolência, como disposição, está o mesmo modo de ser da Boa vontade, i. é, do Amor de Deus? Certamente!

De repente, levamos um susto. A boa vontade, a disposição de querer, esse ato tão insignificante, tão passageiro e momentâneo, “algo” tão pequenino como semente de mostarda se revela como o elemento básico, principal da Vida, que contém em si o mesmo o modo de ser do Deus de Amor, Criador do Universo. É por assim dizer, uma minúscula, micro-explosão atômica do abissal, onipotente, onisciente e onipresente vigor do Deus de Amor. Só que, na Boa Nova, no Evangelho, onipotência, onisciência e onipresença são todas palavras, cujo sentido está toda e inteiramente colocado na perspectiva do poder humilde e suave do Amor, do Poder da absoluta Boa Vontade, da Doação incondicional de Si do Deus da Misericórdia. E nós, cada um de nós, em cada um dos atos da boa vontade –por mínimo e insignificante que ele seja –, participamos, em todos os afazeres e em todas as vicissitudes do nosso viver cotidiano, da imensidão e profundidade abissal desse poder do Amor de Deus, com Ele colaboramos, Nele e através Dele atuamos a dinâmica da boa vontade no universo.

Cuidar, com solicitude e vigilância, da manutenção da Boa Vontade em nós e nos outros, com toda a limpidez e precisão, porque a boa vontade é o vigor ordinário de todas as extraordinárias tempestades, explosões e dos terremotos, mas também de todo o nascer, crescer e consumar-se das estações do Universo dos Homens, é talvez, ou melhor, certamente o trabalho essencial do cotidiano cristão na sua fidelidade à vocação.

Para além de todas as nossas dificuldades, de nossas fraquezas, antes de tudo, talvez devamos pois reconhecer a nossa vocação religiosa, e dispor-nos sempre de novo a sacudir o pó e as ferrugens da má vontade, da inércia e indisposição, para nos colocarmos todos os dias no trabalho precioso de crescer na boa vontade de ser religiosos franciscanos. Repitamos pois as palavras de 2Cor 9,6-7: “Convém lembrar: quem pouco semeia, pouco também colhe. Quem semeia com largueza, colhe com largueza. Cada um dê, segundo se propôs em seu coração, não de má vontade nem constrangido, pois Deus ama a quem dá com alegria(cf. Apocalipse 3,14-16).

Textos:

Lc 13,22-30
Lc 14,25-33
Lc 12,35-40

Ditos de Frei Egídio, Cap. 6: Da ociosidade, p. 1273ss.

Modo de refletir:

– Ficar a sós, diante de Jesus Cristo, e examinar com toda sinceridade de que é capaz, como aprecio a minha vocação religiosa franciscana.

– Examinar, se esse apreço realmente aparece no meu engajamento em assumir as exigências da formação (vida de oração, vida comum, empenho dos estudos).

– O que fazer e como fazer, caso descubro que sou bastante indiferente e alienado na disposição para com a vocação religiosa franciscana, a qual assumi através de juramento dos votos.

– Fazer esse retiro, pessoal e individualmente, colocando-se com todo empenho diante de Jesus Cristo, a sós.

Rondinha, 22 de agosto, 1998.

Fr. Hermógenes Harada

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