(Como aparece na questão da formação inicial e permanente a defasagem da nossa compreensão do que seja espírito e espiritual)
A significação da expressão formação inicial e permanente depende do uso. Tentemos a seguir, embora a grosso modo, diferenciar a significação dessa expressão, examinando um uso em que ela é submetida conforme a padronização que a sociedade determina hoje para sua fala.
Seria interessante pesquisar brevemente o histórico do surgimento e uso dessa expressão. P. ex. se ela surgiu no mundo secular, da habilitação e do ensino profissionais ou no âmbito da formação religiosa. Certo é que, hoje, no meio religioso da mundividência católico-cristã, usa-se a expressão para indicar o fomento da vida religiosa consagrada, enquanto vocação; distinguindo desse modo de formação para o chamamento à consagração, o que no mundo secular se denomina profissionalização, a saber, ensino, aprendizagem, habilitação e pesquisa para um determinado trabalho e encargo profissional. Aqui, por profissão[1] se entende um determinado trabalho estável, assumido não como afazeres esporádicos da sua vida particular e privada, da assim chamada vida caseira, mas como uma tarefa, encargo e contribuição oficial e social, para cuja habilitação existe exigência de ensino, aprendizagem tanto teoréticos como práticos. Essa exigência aparece organizada e institucionalizada como escola profissional, com diploma, título, especialização, coordenada e vigiada na excelência da qualificação do ensino pelo poder social público, seja qual for sua denominação. A demanda e oferta da sociedade moderna pelo trabalho qualificado e cada vez mais profissional e especializado faz com que a própria escola fundamental, secundária e superior comece a receber um cunho dominante de preparação e encaminhamento para o trabalho profissional[2]. Esse trend globalizante faz com que tudo quanto não tem esse modo de ser da funcionalidade em direção ao objetivo[3] padronizado e programático no seu modo próprio funcional da excelência e qualidade total seja classificado debaixo do atributo particular, pessoal, subjetivo, privativo, caseiro, sem muita possibilidade de sobreviver, muito menos de atuar na sociedade de hoje. Talvez seja por isso que as escolas confessionais insistem em dar o seu cunho próprio de tipo religioso, ou humanista, para humanizar a formação. Talvez seja por isso que p.ex. algo que denominamos de projeto virtudes começou a se tornar necessidade, sim até moda nas escolas confessionais. Uma outra expressão dessa necessidade é de acentuar muito a ética e sua fala nas escolas e nas profissões, e em alguns lugares a necessidade de não dispensar a filosofia nos currículos escolares. Essa maneira de recuperar ou ao menos não perder aquele outro modo talvez mais vasto, profundo e criativo de entender a formação humana num sentido todo próprio mais universal do que geral, é iniciativa necessária, mas por ser ela de importância decisiva para uma compreensão mais radical (referente à raiz e não ao radicalismo ideológico) não pode permanecer numa superficialidade paliativa de uma doutrinação do que houve até agora na tradição estagnada. Requer uma investigação mais exigente e qualitativamente mais originária de sondagem do que significa real e profundamente formação humana, e em que consiste o sentido mais profundo e originário da própria profissionalização e especialização dentro do todo do “desenvolvimento humano”. Juntamente com as categorias formação inicial e formação permanente seria necessário aprofundar para esse tema as categorias individual e social; particular e geral; subjetivo e objetivo. E recuperar o sentido mais profundo e originário do termo universal e singular.
No sentido do uso geral, agora independente de que conceito se tem da formação, o binômio formação inicial e formação permanente se refere à necessidade de uma vez formado como profissional, continuar estudando, para que não se fique atrasado, não participando do progresso e do avanço no saber, na informação, na técnica da profissão e especialização.
Subsídio 3
O que segue é bem breve, mas é de importância decisiva hoje para que possamos viver a VC (Vida Consagrada) de modo satisfatório e ali perseverar até o fim: é necessário abandonar de uma vez para sempre as categorias sociológico-psicológicas, nas quais a compreensão da vida humana ou existência humana, dentro da vida religiosa, foi desviada do núcleo e do vigor essencial da jovialidade de ser seguidor de Jesus Cristo.
Na VC hoje, é urgente formar os que nela se iniciam, como também os que nela já estão há muito tempo, para a facticidade da existência: com outras palavras, para a singularidade inalienável da realidade do ser humano, denominada história da pessoa: na linguagem da espiritualidade, história da alma. O comum, o comunitário, o social, o universal da realidade espiritual é densamente, unicamente a história da alma.
- Compreender e praticar isso hoje é dificílimo, embora cada um de nós o vivemos no núcleo de nós mesmos: cf. momentos de crise e depressão.
- Pois essa maneira de compreender a vida humana como facticidade da existência não é uma das possibilidades da vida ao lado das outras possibilidades. Esse modo de ser não está nem junto de, ao lado de, por cima de, atrás ou antes das vicissitudes dos nossos afazeres da vida usual. Ele é o fundo de todos os nossos afazeres, anseios, crises e desejos da nossa vida.
- Fazer exercícios de tentar ver o que foi insinuado acima, com exemplos.
- Achamos que o que se diz da vida espiritual é no fundo coisas da vida particular, vem do grande, sim grande e profundo equívoco que nos domina a nós religiosos nos últimos tempos, de confundir o pessoal (facticidade da existência) com particular, o comum com geral.
- Enquanto não clarearmos bem, e bem mesmo, esse ponto, os religiosos que realmente querem buscar uma VC que os satisfaça desistem por fim; levando consigo o mesmo equívoco para outras novas possibilidades pelas quais optam.
Espírito é disposição para o a priori, Pati
Na aprendizagem da vida espiritual, é necessário se concentrar num modo de caminhar, e estudar longamente esse modo. Esse estudo se chama adquirir experiência. No entanto, para nós hoje, que temos dificuldade de nos concentrar para bem trabalhar, se torna necessário saber de antemão o que segue:
Quando falamos de se concentrar num modo de caminhar, e estudar longamente esse modo ou adquirir experiência:
- Não se trata de adquirir e acumular informações e saberes sobre o assunto, como quem quer ser especialista. Trata-se aqui da experiência[4] de um saber de altíssima excelência e qualificação chamado sofrer.[5] Atender bem que sofrer, nesse sentido, é bem diferente de agüentar o sofrimento, mas sim é ver claramente que aqui se trata de conhecimento (conascimento): conhecimento existencial. A maneira de tornar-se bom no conhecimento existencial exige mais do que um conhecer e saber especializado. Este pode ser muito exato e possuir um volume muito grande de saber, mas na experiência do todo do fenômeno humano, que é estreito demais.
- Não se trata de acionar o empenho e desempenho de um querer voluntarista. Um querer voluntarista não é suficientemente querer, por não saber esperar, não saber ir trabalhando pouco a pouco, não poder nem saber fazer muito no pouco. A esse querer autêntico, frei Egídio chama de boa vontade, a saber, vontade boa. Esse querer verdadeiro se chama no pensamento cristão amar. Por isso, no pensamento cristão amar não é nem vivência, nem sentimentalismo, nem experimentação. Formar em cada um de nós um querer que é boa vontade se chama no pensamento cristão de fazer a vontade de. Por isso a necessidade de mudar a compreensão do que seja em tudo fazer a vontade de Deus.
- Daí a decisiva importância de construir a nossa formação e a nossa aprendizagem do espiritual no compreender e querer.
- É necessário usar o que já se tem, com uma bem outra disposição do que se tem hoje em dia. Por isso, para se crescer na disposição cordial e capaz de fazer experiência, é necessário ficar perto de si, perto de casa, e não buscar a solução longe: cá cá cá e não lá, lá, lá.
Quando não cuidamos de saber todas essas dicas da vida espiritual, e nos adentramos a querer vivenciar de qualquer jeito, começamos a entrar num país, onde reina confusão, muito barulho por nada, muita agitação e aprendizagem nula.
Caminhar longamente um caminho nada tem a ver com fundamentalismo, bitolamento, tradicionalismo, unilateralismo etc.; tem a ver com entrar passo a passo de modo inteligente para dentro de uma paisagem, onde reina a vastidão, profundidade e céu aberto da liberdade da graça que como o dom do Pai, vem do alto (o apriori).
A formação inicial e permanente da VC se concentra nisso de nos tornarmos pessoas aptas a trabalhar a raiz de toda a vigência do que se constituiu e se institucionalizou como Igreja, Ordem, congregação e comunidade. E onde se localiza essa raiz? Na alma, no “interior” de cada pessoa!
Há mil e mil coisas importantes, a saber, a fazer, a ter; coisas que são da nossa responsabilidade individual, comunitária e social. Examinar concretamente em você quais são essas coisas importantes para você, enumerando as principais.
Mas todas essas coisas principais pertencem ao grande conjunto do que chamamos de minha vida, tua vida, nossa vida, vida da congregação, da Igreja, da humanidade. Toda essa Vida está enraizada em Deus, do qual vem do alto toda a graça. E tudo que se refere a esse Deus e sua possibilidade são de tal envergadura que sua vastidão, profundidade e criatividade livre ultrapassam toda e qualquer possibilidade nossa. Ser espírito, espiritual é simplesmente a disposição de ser capaz de receber esse a priori e deixar que ele atue, transforme, aja em nós.
O que é o mais importante, o único importante de todas as mil e mil coisas importantes na nossa vida?
Se você acha que é possível dedicar-se inteiramente a se dispor para receber, e tornar-se um especialista, de tal sorte que, full time, esteja à disposição dessa busca, está seguindo um método inadequado e não vai conseguir ir muito longe. Mas por quê?
Porque esse a priori está em toda parte e em todas as coisas. Mas como ele ali está enquanto é o mais importante de todas as coisas, i.é, como aquele ou aquilo que im-porta, ou carrega-me para dentro? Não está como minha realização, como facilitação das minhas dificuldades, como consolo, mas sempre de novo e de modo novo como pati (cf. nº 1). Para quem viu que pati é im-portar, os sofrimentos não aparecem mais como adversidades indevidas, mas como importâncias, como novas entradas para o reino do a priori. Aqui não forçar voluntaristicamente a entrada, como se fosse da sua competência conquistar essa sabedoria, mas apenas examinar se já em alguns setores dos seus afazeres não está sofrendo esse tipo de dor, esse tipo de crise. E então ali se concentrar, sem pressa e medo, mas tentar ver, ver, ver cada vez mais, e não, corrigir, corrigir, livrar-se do incômodo da dificuldade. É que no âmago das nossas dificuldades se esconde uma pequena porta fechada que nos conduz para novas dimensões.