Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

VI – Que os Irmãos de nada se façam proprietários, da mendicância e dos Irmãos enfermos

18/02/2021

 

QUE OS IRMÃOS DE NADA SE FAÇAM PROPRIETÁRIOS, DA MENDICÂNCIA E DOS IRMÃOS ENFERMOS
QUOD NIHIL APPROPRIENT SIBI FRATRES, ET DE ELEEMOSYNA PETENDA ET DE FRATRIBUS INFIRMIS

Fratres nihil sibi approprient nec domum nec locum nec aliquam rem.

Os irmãos não tenham propriedade sobre coisa uma, nem sobre casa, nem lugar, nem outra coisa qualquer.

RNB: “Todos os irmãos se esforcem por imitar a humildade e pobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo. E se recordem que do mundo inteiro nada mais precisamos do que, como diz o Apóstolo, “o necessário para nos alimentar e para nos cobrir, e queremos estar contentes com isso” (1Tim 6,8). Cuidem os irmãos, onde quer que estejam, nos eremitérios ou em outros lugares, de não apropriar-se de qualquer lugar nem disputá-lo a outrem.

Com este capítulo chegamos a um dos pontos culminantes da Regra. Por ele São Francisco convoca os irmãos ao mais alto grau de pobreza, pobreza extrema que deve se enquadrar e concretizar numa comunidade verdadeiramente fraterna. Não é por mera coincidência que a Regra liga tão intimamente ambos os postulados da vida franciscana, visto que a pobreza e o amor fraterno são correlativos: um deve possibilitar e concretizar o outro. Cumpre considerar ambos como suportes da vida minorítica e praticá-los ao mesmo tempo. Sem a proteção do amor fraterno, a pobreza deprime e endurece; pela altíssima pobreza o amor fraterno vai crescer continuamente em vivacidade e profundidade.

Não tenham propriedade. Falando do trabalho, Francisco advertia os irmãos a não ganharem mais do que precisavam para viver; o trabalho constituía a maneira comum para adquirir propriedades. Os frades não se tornem pois operários de alto nível salarial, visando adquirir posses para garantir o futuro. Tampouco receberão propriedades, como era de costume no sistema feudal.

Este versículo da Regra exprime claramente a vontade de São Francisco de que todos os seus irmãos, isto é, toda a comunidade, nada possam reivindicar a título de domínio, nem casa, nem terreno, nem coisa alguma. Vamos indagar como Francisco, pessoalmente, entendia esta privação de domínio e como ele mesmo a vivia concretamente, isto é, vamos ver concretamente o conceito de pobreza do próprio São Francisco e não aquele atribuído a ele nas legendas posteriores. E sabido que, pelo menos a partir do ano 1230, como testemunha a bula “Quo elongati” de Gregório IX, a observância literal da Regra e portanto também daquilo que se refere à pobreza material, tornou-se um problema sério no seio da Ordem dos Frades Menores. Teve muita importância o fato de que, quanto mais o interesse na interpretação da Regra se concentrava sobre o ser “pobre de coisas e bens – pauper rebus (RB 6.4), tanto mais a pobreza era reduzida ao aspecto econômico e administrativo e a partir disso recebia sua valorização nas fontes narrativas, até o ponto de se tornar um valor absoluto.

Contudo, existe a feliz possibilidade de apresentar o conceito de pobreza de São Francisco mesmo, livre das interpretações das fontes posteriores. Seus escritos, apesar de serem quase todos ocasionais, permitem penetrar no mundo de seus pensamentos, justamente no que diz respeito à pobreza.

Pode não ser surpreendente o fato de que as exortações de S. Francisco sobre a observância da pobreza ocupam um lugar extenso; é bom porém lembrar que as exortações que têm por objeto a obediência, nos mesmos escritos, têm extensão ainda maior, e que todas as exortações sobre a pobreza têm uma “raiz espiritual-religiosa” que mais tarde (ainda na primeira fase da história da Ordem) foi esquecida; esta raiz é a “vida segundo a forma do Santo Evangelho”.

A – Afirmações sobre a pobreza material:

1. Os irmãos devem vestir vestes pobres e estar satisfeitos com um só hábito, que pode ser reforçado com remendos, quando for necessário: RB 1,14-16; RNB 2,13.14.

2. Conforme o discurso de envio missionário do Senhor aos apóstolos, os frades não devem andar calçados, salvo em caso de necessidade (RB 2,15); o falo de que, segundo Mc 6.9, bem cedo também usam sandálias, não contradiz a prescrição evangélica.

3. Eles não querem levar nada consigo em viagem, “nem bolsa, nem alforje, nem pão, nem dinheiro, nem bastão” (RNB 14.1) e isso em reverência à palavra do Senhor (Lc 9,3; Mt 10,9-10). Essa passagem falta na RB.

4. Eles devem viver do trabalho de suas mãos (RB 5,1-3; RNB 7,3-8; Test 20-22); mas não devem considerar o salário como direito, assim que, se ele lhes for negado, peçam esmolas para sobreviver.

5. De nada podem se apropriar, nem casa, nem lugar, nem coisa alguma: é a Pobreza no seu mais alto grau (RB 6.1; RNB 7,12).

6. A pobreza material inclui outras proibições, sobretudo a do dinheiro, que não só exclui mas fecha todos os caminhos possíveis de uso do dinheiro (RB 4,1.3; RNB 8,3).

7. Além disso S. Francisco proíbe aos irmãos de desejar algo da herança dos candidatos à Ordem e de modo algum se imiscuir nas questões de seus bens. Apenas em momento de necessidade podem aceitar esmolas, como os outros pobres (RNB 2,5-7). Esta concessão não é mais citada na RB 2,7-8.

8. Na doença, os irmãos não devem se tornar exigentes na reivindicação de remédios. Se alguém o fizer, estará demonstrando que não entendeu a pobreza e que de modo algum é um verdadeiro irmão menor (RNB 10,4).

9. Quando mais tarde, impelido pela necessidade, São Francisco anuiu a que os irmãos recebessem igrejas e casas, admoestou para que as mesmas correspondessem à pobreza professada na Regra, permanecendo nelas como forasteiros e peregrinos (Test 24).

10. Já cedo São Francisco havia proibido de se apropriar de ermidas e de processar judicialmente alguém (RNB 7,13). Nem sequer deviam reivindicar sobre o ganho de seu trabalho. Por causa dessa exclusão do caminho jurídico, no Testamento, à concessão de receber casas e igrejas segue a proibição de pedir à cúria Romana rescritos protecionistas (25).

B – Coisas que os frades podem receber: Ao mesmo tempo que São Francisco apela à palavra de São Paulo: “Se pois temos alimento e vestuário, contentemo-nos com isso” (1Tm 6.8) para uma pobreza material radical, ele sabe que o homem necessita para a sua sobrevivência de outras coisas além de vestes e comida. Estas coisas ele concede aos seus irmãos sem maior problema.

1. As duas Regras dizem expressamente que os irmãos podem “ter” um hábito com capuz, calças e cordão: e quando for necessário, um hábito sem capuz (RB 2,14; RNB 2,13; Test 16).

2. Segundo a RNB, podem ter os livros necessários para o Oficio (3,7); segundo a RB 3,2 podem ter breviários; e os irmãos que sabem ler podem ter um saltério (RNB 3,8). Esta última permissão não reaparece na RB; o mesmo vale para a permissão da RNB, de poder ter instrumentos de trabalhos (ferramentas) adequados. para poderem executar os trabalhos manuais de sua profissão (7,8); dizia até “adequados”, e não “necessários”, como observa em relação aos livros litúrgicos.

3. Quando se revelou a utilidade de outros livros para a vida e os trabalhos dos irmãos, Francisco não se mostrou refratário.

4. Concedeu também o uso de igrejas e casas, quando no correr dos anos se tomaram necessárias para a vida dos irmãos. A Regra para os eremitérios, certamente impregnada do Espírito de São Francisco, diz com simplicidade: “tenham um recinto fechado (claustrum), e cada qual tenha aí sua cela onde reze e durma”; em 1213, São Francisco recebeu La Verna.

5. Na Carta à toda a Ordem Francisco fala dos “lugares onde assistem os irmãos” e que ali podem celebrar a Missa, segundo o rito da Santa Igreja Romana. Na linguagem da época, isso queria dizer que os irmãos tinham oratórios próprios. 6. Podiam também ter os paramentos para a celebração e conservação da Eucaristia. E, segundo a vontade de São Francisco, estes podiam ser preciosos.

Cabe pois dizer que , em todos esses casos, São Francisco se curvava às injunções da vida, e não levava a pobreza material a situações impossíveis. Que em todos esses casos se tratasse de “ter” realmente alguma coisa, prova-o o fato dele ter disposto das coisas, dando de presente capa, calças, capuz, túnicas, livros, ornamentos do altar, e desejando que os irmãos tivessem a mesma liberdade de fazê-lo.

A palavra que São Francisco gosta de usar para o uso das coisas necessárias é “receber”. Essa palavra insinua a situação de quem, não tendo nem querendo nada, aceita com gratidão de Deus e do próximo, quanto é necessário para viver; e São Francisco as usa dentro de uma medida bem “apertada”. Em todas essas concreções de pobreza material, transparece claramente o conceito característico da primeira geração franciscana sobre a propriedade; conforme São Francisco pessoalmente sempre formulava, Deus coloca todas as coisas à disposição do homem para que as use de acordo com da vida; são, por assim dizer, empréstimos aos quais o homem perde o direito quando se apresenta alguém mais pobre do que ele (Lc 3,10): se, em tal emergência, retivesse consigo o que lhe fora concedido, se “apropriaria” do empréstimo de Deus.

O “apropriar” de S. Francisco não é tanto um conceito jurídico, mas antes um postulado essencialmente religioso. As coisas devem sempre ficar à disposição de Deus, o “grande esmoler”, o verdadeiro proprietário. A qualquer momento Deus deve poder dispor delas livremente, sem ser “roubado” pelo homem com sua ambição de posse. Esse “não apossar-se” é entendido conforme 1Cor 7,29ss: “Quem tem mulher seja como se não tivesse…” Este pensamento São Francisco o reproduz, quando diz que os irmãos devem viver como “hóspedes” em seus conventos e igrejas.

Evidentemente, S. Francisco não pôs o problema da pobreza sob o aspecto filosófico, escriturístico-exegético ou jurídico. Ele tinha convicção de que Jesus Cristo passou seus dias neste mundo sem nada possuir e que mandou seus discípulos abandonar tudo para segui-lo, e ele fez o mesmo. Suas intuições acerca da propriedade, teorizadas mais tarde pela escola franciscana e pelo Sacrum Commercium, não o levaram a contestar o direito alheio à propriedade.

Nem sobre casa, nem lugar, nem outra coisa qualquer. São Francisco não deu importância ao aspecto jurídico da pobreza material; isso fica claro quando se examina o significado de “necessário” nas duas Regras. Todas as formulações do conceito de “necessidade” são ousadas para a regra de uma Ordem, buscando proteger e assegurar a vida na mais alta pobreza através do amor fraterno. Onde esperamos uma norma, nada vem fixo, nem regrado; cada irmão precisa encontrar a medida da necessidade, sua e dos irmãos, no projeto de vida franciscano, na “bênção-inspiração” do Senhor, anterior a qualquer vontade humana e à letra de qualquer lei.

Por muito tempo os franciscanos estiveram concordes em manter como característica de sua pobreza a recusa da posse legal em comum. Este princípio foi defendido acirradamente contra o clero na Sorbônia de Paris e contra o próprio João XXII, dispostos a forçar a exegese dos evangelhos para achar em Jesus Cristo e nos Apóstolos o próprio modelo de pobreza.

Nas décadas seguintes à morte de São Francisco surgiram muitos problemas sobre este ponto crucial da Regra. Muitos surgiram simplesmente do crescimento da Ordem, cujo aumento numérico exigiu não somente residências fixas, mas também a transferência das residências para dentro dos muros das cidades, a ampliação de conventos e igrejas, impulsionados pela procura dos fiéis que desejavam ouvir seus sermões, confessar-se e ter direção espiritual com eles, e encontrar sepultura entre eles em suas igrejas e claustros. O sucesso de seu apostolado, a admiração, para não dizer o entusiasmo, quase chegou a ameaçá-los na sua identidade. Não há província na Ordem que nas décadas seguintes à morte de São Francisco não empreenda trabalhos de transferência, ampliação e fundação de novos conventos.

Com demasiada facilidade se atribuiu a frei Elias toda a responsabilidade da evolução acontecida na Ordem minorítica. Os Espirituais culparam os ministros gerais, inclusive São Boaventura e os próprios papas, de terem por demais favorecido a funcionalidade da Ordem. Na realidade há leis naturais que determinam a passagem de toda instituição do período “carismático” àquele estrutural. O franciscanismo não podia escapar a estas leis. Por isso é exagero falar de um drama de São Francisco por causa da evolução do conceito e da prática da pobreza na Ordem. Sobre este ponto, é preciso ler com cuidado as fontes que procuram jogar no fundador uma problemática posterior de algumas décadas.

Baseando-se na distinção entre propriedade, posse e usufruto, foi possível resolver o problema dos bens em uso dos frades. Inocêncio IV aceitou em nome da Santa Sé a propriedade dos bens de que os benfeitores não reservaram para si. Não se pode negar, porém, a impressão de que esta solução (com os síndicos ou procuradores) seria simplesmente mais uma “fictio iuris” do que uma realidade. A bula de João XXII “Ad conditorem canonum” de 1322, igualou os franciscanos às demais Ordens mendicantes no que concerne à administração e à posse dos bens. A escolha feita sem traumas pelos dominicanos, defendida por São Tomás de Aquino, de aceitar a posse em comum, como já fizera o monaquismo, foi proposta também à Ordo Minorum e foi aceita pela OFMConv., com o assim chamado “privilégio tridentino” (Concílio de Trento, 1563).

As atuais constituições da OFM parecem passar por cima desta questão, declarando simplesmente que os bens necessários para a vida e para as atividades dos frades, quando não são propriedade dos benfeitores, são “bens eclesiásticos”. O Direito Canônico (125 §1) define como bens eclesiásticos os que pertencem à Igreja universal, à Sé Apostólica e às outras pessoas jurídicas na Igreja. Pelo fato de a OFM, as províncias e as casas dos frades serem pessoas jurídicas, as constituições declaram que podem adquirir e usar bens temporais a norma do direito comum e daquele próprio da Ordem. E aplicando o cânon 634 (… capacidade de adquirir, possuir, administrar e alienar bens temporais…) omitem as palavras “possuir, administrar, alienar” e as substituem por “usar”. Mas, ainda que a Ordem, as províncias e as casas sejam consideradas como juridicamente capazes de adquirir bens e, diante do Estado, possam pôr os atos jurídicos necessários, os frades continuarão a considerar Deus, e os pobres, os donos de seus bens, (o que, aliás, os franciscanos conventuais estão fazendo desde 1563!).

No entanto, para lá da questão da possa jurídica, esta afirmação de nossa Regra é uma afirmação da experiência religiosa. Se quisermos compreender bem a pobreza franciscana, é necessário deixar de lado, por enquanto, essas questões e aquelas sobre a prática da pobreza material. Além domais, é miopia e decadência espiritual reduzir a questão da pobreza à questão jurídica, econômica ou à questão Pois temos tendência a determinar “o que”, e perguntar “o que fazer”, antes de colocar a questão de como seja ela mesma, a Senhora Pobreza.

A partir da experiência religiosa, a pobreza franciscana consiste em encurralar-se numa situação que obrigue o religioso a se abrir à dimensão de Deus. Toda vontade e prática de pobreza material de São Francisco visa fazer acontecer esta experiência. Da dimensão religiosa surge o entendimento de “raiz” da pobreza material franciscana: a Domina Paupertas, a “pobreza em espírito”, a minoridade. entendimento, se verdadeiro e existencial, busca necessariamente as concreções da pobreza em espírito na “pobreza material”, como seus “exercícios”.

Et tanquam peregrini et advenae (cf. 1Ptr 2,11) in hoc saeculo in paupertate et humilitate Domino famulantes vadant pro eleemosyna confidenter, nec oportet eos verecundari, quia Dominus pro nobis se fecit pauperem in hoc mundo (cf. 2Cor 8,9).

Mas, como peregrinos e viandantes (cf. 1Pt 2,11) que neste mundo servem ao Senhor em pobreza e humildade, peçam esmolas com confiança; disso não se devem envergonhar, porque o Senhor se fez pobre por nós, neste mundo (cf. 2Cor 8,9).

RNB: E devem estar satisfeitos quando estão no meio de gente comum e desprezada, de pobres e fracos, enfermos, leprosos e mendigos de rua. E, quando for preciso, que vão pedir esmola. Nem se envergonhem disto, mas antes recordem que Nosso Senhor Jesus Cristo o Filho Deus vivo todo-poderoso, enrijeceu sua face como pedra duríssima (Is 50,7) e não se envergonhou de se tornar para nós pobre e peregrino; e vivia de esmola, ele mais a bem-aventurada Virgem e seus discípulos. E se os homens os tratarem com escárnio e não quiserem dar-lhes esmolas, rendam graças a Deus; porque pela humilhação receberão grande honra diante do tribunal Nosso Senhor Jesus Cristo. E saibam que a humilhação não é imputada aos que a sofrem, mas que aos que a infligem. E e esmola é uma herança e um direito adquirido em favor dos pobres, conquistada por Nosso Senhor Jesus Cristo. E os irmãos que se afadigarem em recolhê-la terão grande recompensa, proporcionando ainda aos que a oferecem, ocasião de lucrá-la e merecê-la. Pois tudo o que os homens deixam pare trás no mundo perecerá, mas pela caridade e pela esmola que tiverem feito receberão do Senhor a justa recompense (cf. Mt 6,19s; Lc 16,1-9).

Como peregrinos e estrangeiros. Nessas palavras São Francisco exprime o sentido genuinamente religioso do “non appropriare”, e também define substancialmente um dos postulados essenciais da vida minorítica. O peregrino e viandante está sempre a caminho; quando se detém nalgum lugar. o faz como hóspede: na itinerância os frades deviam ganhar a vida pelo trabalho, mas não podiam exigir como direito o salário do trabalho, nem cobrá-lo judicialmente; até o salário devia ser aceito a titulo de esmola; quando isso não bastasse, deviam recorrer à “mesa do Senhor”, e pedir esmola de porta em porta, como os outros pobres. O pobre voluntário em tempo e lugar algum faz valer direitos e pretensões, mas aguarda o que a caridade de Deus lhe dá por intermédio dos homens.

A Regra aponta dois motivos que levaram São Francisco a esse teor de vida pobre: o exemplo de Jesus Cristo, que por nosso amor se fez pobre neste mundo, e a expectativa escatológica do cristão que se concretizará na segunda vinda do Senhor; dois pensamentos prediletos de São Francisco que formaram e caracterizaram toda a sua vida cristã.

Servem ao senhor em pobreza e humildade, peçam esmola com confiança. Pobreza e humildade são as experiências primordiais, a porta pela qual São Francisco entrou no “mundo de Jesus Cristo”. Mas contentar-se com uma vida quotidiana de tamanha necessidade em que se deva até pedir esmola para ter do que comer e vestir, é buscado como meio para um fim ou é buscado como um fim, ele próprio altamente desejável?

Lendo o texto, sentimos certa ambiguidade; para nós, a afirmação “imitar Jesus Cristo dá-nos com o alimento e o vestir” soa como uma afirmação um tanto “gostosa”, como retorno à vida simples e natural: “Para que tanta coisa? Vamos voltar ao simples, ao necessário; vamos nos contentar com o pouco; já temos tanta coisa, basta diminuir”. Mas ter que esmolar o necessário para sobreviver soa desagradável; o “contentar-se” para o pobre não tem conotação de diminuir porque já se tem demais: ele tem que esmolar até mesmo o comer e o vestir. Também em S. Francisco o contentar-se tem conotação diferente: significa “ter cordialidade numa vida dura”. Mas isso é meio para outro fim ou vale em si? Para um faquir, por exemplo, a vida dura é economia de energias para outro fim. S. Francisco não é um rico que quer privar-se do supérfluo, nem um pobre que quer superar sua situação, nem um religioso que faz ascese; para ele, pedir esmola é o fim, isto é, imitação-aprendizagem de Jesus Cristo: o meu mestre buscou a Encarnação, a kénosis; eu também quero ficar bom naquilo que o meu mestre buscou.

Por querer ser como Jesus Cristo, São Francisco procura positivamente uma vida de “mínimo necessário, mas não na atitude de Jó: “Deus deu, Deus tirou, bendito seja Deus”, pois isso tem como consequência uma espiritualidade da “resignação”: não estou apegado em nada, mas posso usar de tudo. São Francisco diz: não usar coisas superfinas mesmo vindas de Deus; vamos ficar no mínimo. E a espiritualidade discipular que surge do Encontro: estou apreendendo de Jesus Cristo a viver uma dureza que não é ascese, nem penitência, nem masoquismo, por ser o próprio jeito de Deus: Deus é assim.

Disso não devemos nos envergonhar. Pedir esmola é mais exigente e comprometedor do que dar; quem pede esmola tem que jogar fora cara e vergonha para sobreviver, acionando o que o ser humano tem de mais forte e livre: pedir esmola é dar de si mesmo. Por isso, Deus é aquele que antes de dar, está na atitude de “esmolar”: é pobreza total da qual brota a cordialidade, a atitude “de todo o coração” (toda a alma, todas as forças); isso é coisa tão grande que é herança do Pai, isto é, Deus é assim: é nesse sentido que a esmola é “herança-justiça” e quem não dá faz uma injustiça.

RNB: A esmola é uma herança e um direito. É-nos apresentada a possibilidade de entender a esmola além do sentido corriqueiro. O que é esmola afinal? Dinheiro é um sistema pelo qual não se está no terra-a-terra e se faz dívidas direto (!): São Francisco é contra o dinheiro porque elimina o contato direto com a realidade. Filhinho de papai com sua mesada compra o que dá na cabeça, porque se não der certo não tem problemas, pois o pai dá mais dinheiro; jovem que trabalha e estuda, com seu dinheirinho não compra qualquer coisa: ele fica no corpo a corpo, sente o que compra como fruto de sua fadiga (real, humilde); mãe de filho excepcional que enfrenta a opinião pública e cuida pessoalmente do filho e mãe que põe o filho excepcional num internato são duas atitudes bem distintas. Na vida espiritual hoje não se corre mais atrás do inimigo para lhe cortar a garganta! Contentamo-nos de contar o heroísmo dos outros! No campo da aprendizagem ou da pesquisa científica, para quem quer ser “bom” na sua profissão, a busca do mais difícil não parece masoquismo; no nosso meio, porém, a busca do mais difícil na vida fraterna, na pastoral, na comunidade…, é tachada assim! São Francisco quer ser um ótimo cristão e por isso busca cada vez a lição mais difícil: o viver do necessário, sem enfeites. “Pedir esmolas” é o ideal de São Francisco; ele está sempre procurando situações em que se o grão de trigo não morrer, não vive! Procura sempre ficar encurralado, porque de outro jeito nós sempre “maneiramos”. São Francisco procura situações em que não há mais escolha, situações em que tenha que viver “por Deus”! Não será, então, que “esmola” quer dizer busca da Gratuidade? Jesus Cristo trouxe esta liberdade radical, que é a maior riqueza, apesar de aparecer como privação: a riqueza de Deus.

Haec est illa celsitudo altissimae paupertatis, quae vos, carissimos fratres meos, heredes et reges regni caelorum instituit pauperes rebus fecit, virtutibus sublimavit (cf. Jac 2,5). Haec sit portio vestra, quae perducit in terram viventium (cf. Ps 141,6). Cui, dilectissmi fratres, totaliter inhaerentes nihil aliud pro nomine Domini nostri Jesu Chirsti in perpetuum sub caelo habere velitis.

Esta é aquela sumidade da mais elevada pobreza que a vós, meus caríssimos irmãos, instituiu herdeiros e príncipes do reino dos céus e, fazendo-vos pobres de bens, vos cumulou de virtudes (cf. Tg 2,5). Seja esta a vossa parte, que conduz à terra dos vivos (cf. SI 141,6). Pelo que, meus diletíssimos irmãos, apegando-vos inteiramente a ela, não queirais, por amor ao nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, possuir jamais outra coisa, debaixo do céu.

Sumidade da mais alta pobreza. A Regra, após as determinações da forma negativa, realça agora o lado positivo: vem o hino solene sobre a “celsitudo altissimae paupertatis”, que encerra toda a teologia bíblica da pobreza, cuja precisão e riqueza dificilmente poderão ser ultrapassadas. Neste hino, Francisco dá a argumentação mais profunda do que disse aos irmãos acerca da sua vocação. Ao mesmo tempo mostra-lhes a perspectiva última: sua paupérrima vida e caminho para o Reino de Deus.

Não é sem motivo que Francisco chama seus irmãos de “peregrinos e viandantes”, caracterizando com essas palavras seu modo de viver genuinamente cristão: o cristão é um homem que está sempre a caminho; não é deste mundo, onde vive como forasteiro, mas vai ao encontro do Reino dos Céus (Jo 15,18ss). Aguarda com esperança a suma perfeição de sua vida no Reino de Deus vindouro. Para São Francisco, a pobreza é senha do homem esperançado. Ela conserva viva no cristão a nostalgia de sua verdadeira pátria, a Terra dos vivos (Sl 141,6), como diz o salmo predileto de S. Francisco.

Instituiu herdeiros e príncipes do reino dos céus. Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus (Mt. 5,3): eis a razão por que a pobreza era para Francisco o “penhor da herança celestial”. Quando um dia a mendicância se tornou pesada inclusive para os irmãos da primeira hora, Francisco os consolou: “Meus irmãos, o Filho de Deus é mais nobre do que nós, no entanto por nosso amor se fez pobre neste mundo… Não fica bem aos herdeiros do Reino envergonharem-se do preço que custa a herança celestial”. Deste conceito cristão da pobreza decorre, portanto, a exortação final que nosso Pai nos dirige: “Apegando-vos totalmente a ela, meus irmãos diletíssimos, não queirais pelo Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo jamais possuir outra coisa debaixo do céu”.

Vos cumulou de virtudes. Há uma radicalidade desconhecida neste texto: paira nele uma grandeza humana de todo respeito, uma evidência que é produto da experiência de uma vida inteira; parece dizer que a pobreza muito “pobre” não é pobreza franciscana. Pois a pobreza não é um programa de ascese, mas a corajosa afirmação de uma grande busca essencial: busca do vigor que perfaz o âmago da existência humana, a riqueza essencial. Deveríamos tentar

experimentar esta grandeza e evidência nessa lengalenga do experimentar pessoal, como quem busca tirar uma música de Beethoven no violão!

Há um ponto muito difícil de cultivar, que antes é muito difícil de entender: os textos de S. Francisco e de seus discípulos tem um colorido escuro, sem brilho: neles se fala de abnegação, de submissão, de obediência, de humildade, de paciência, e outras virtudes “passivas”. Na vida espiritual há também, e é disso sobretudo que fala a espiritualidade de nossa época, virtudes “ativas”, não tematizadas pelos textos franciscanos das origens, como o ânimo, a vontade boa, a coragem, a fortaleza, engajamento, todas elas indicando vigor brilhante. Se quisermos aproveitar bem dos textos de São Francisco, temos de entender bem esse colorido escuro. O que é tão atraente e desejável no pedir esmola, em ser ser paciente, em ser servo inútil, a ponto de ser buscado com tamanho afinco por São Francisco? Em ser:

Humilde, pobre altamente, esmoler, contente com o necessário, dar graças na saúde e na doença, servos inúteis: isso é altamente desejável, é a Cruz, um SIM originário, simples, generoso, alegre, sem ressentimento ou dominação, cheio de ânimo e disposição cordial.

Em cada ponto sente-se o aceno para uma atitude fundamental: o discipulado de um “sim”, uma tarefa para casa. O “altamente desejável”, a cordialidade de Deus, só podem ser compreendidos em concreções, como humilde, pobre, esmoler…; não são etiquetas, mas melodias que levam a escutar o tom fundamental, o altamente desejável: Deus é um sim limpo, originário, cordial, sem medida.

O pensamento contemporâneo começa a perceber que há dois tipos de forças humanas: as que aparecem em público, que dominam, agitam, movimentam o universo, chamadas forças apolínias, e as que correm dentro da história, subterrâneas, ocultas, que não aparecem, suportam, sofrem, chamadas de forças herméticas. Isso no homem aparece como extrovertido e introvertido. São Francisco é um dos grandes representantes das forças herméticas. Existem forças de animação, alegria e coragem que não têm as características daquilo que costumeiramente entendemos por força, alegria e coragem. Por exemplo, na espiritualidade litúrgica dizemos: está chegando a Páscoa, vamos ressuscitar, vamos nos animar. E quase todos entendem “animar” como ficar com cara aberta, disposta, capaz de dizer: “Sim, Senhor!” a qualquer situação, como por exemplo, levantar num instante da cama no inverno. Acontece que no primeiro dia que vai realizar esse propósito, desanima, porque sentiu preguiça e custou muito para levantar; e se censura, achando-se pessoa fraca; sente inveja das pessoas extrovertidas, de sangue mais quente, capazes de pular da cama num instante: a pessoa a quem acontece isso está fazendo uma grande confusão: está entendendo o apolíneo como única medida; não percebe que na maneira de ser “escura”, não” brilhante, há outro tipo de ânimo, uma enorme área de forças, aquelas forças que. no funda. Estão sustentando a humanidade.

Nenhuma mãe de família, sobretudo se for operária, ao levantar cedo, levanta “animada”; antes, diz: “De novo! Gostaria tanto de descansar mais um pouco…”; e se levanta na marra; Nós religiosos pensamos e dizemos: levantar assim não adianta, é fingir, é fazer obrigação, este fazer não tem valor humano. No entanto 99% do que acontece na vida, acontece “empurrado” desse jeito! 99% da humanidade não vive na generosidade espontâneo apolínea, como imaginamos; faz como o filho da parábola que diz ao Pai: “Não vou!”, mas foi; ao passo que quem disse “Vou!” não foi. Se as crianças vão para a escola, se na mesa tem almoço todo dia… é porque tem gente que faz “na marra”. Este ânimo de estilo hermético deve ser cultivado não euforicamente, mas tenaz, humilde e pacientemente. Temos que quebrar o esquema apolínio e abrir os olhos para ver esta força enorme subterrânea, escondida, que para a mentalidade apolínia parece medíocre, menos engajada, mas que se não cultivada, a vida se torna pesada, sem força, dura como terra inculta.

O fenômeno religioso, no que chamamos de espiritual, tem como estilo o cultivo dessa força “passiva”, receptiva, na qual o centro não está no “nosso” “animo-coragem-vontade, mas num ânimo-coragem-vontade muito maior, independente de nós, que aparece de forma sempre diferente: uma vez como grande firmeza, outra como suavidade e ternura, outra ainda como humildade. É por isso que a vida religiosa sempre afirma que deve haver silencio, meditação…, e que ela se constrói sobre humilda, paciência, obediência…, pois tudo isso de fato torna o religioso “quieto”, disponível não para a força que ele tem, mas para a força que está ali escondida e que através dele começa a atuar.

Quietude e’ como um radar bem sintonizado, como uma disposição total para ser tocado por aquela força que está ali doando-se. Mas hoje vivemos numa falta de quietude tamanha que não conseguimos sequer ficar sentados 10 minutos. Um radar assim capta, escuta, somente a si mesmo. Ao passo que um radar como São Francisco capta toda essa força, pois está na quietude (= não fazer a própria vontade).

Ao ler textos de São Francisco com este colorido escuro, em vez de pensar: “Eu tenho que fazer essas coisas horríveis?!”, precisamos ter olho limpo e inteligente e dizer: aqui o nosso Pai está descrevendo o método de crescimento do espírito do tipo hermético. O silêncio, a meditação, foram introduzidos na Vida Religiosa para despertar esse fundo hermético. Temos, portanto, que mudar o nosso ocular e cair fora por completo da compreensão pietista e piedosa da vida espiritual, e recuperar a compreensão de que espírito é essa força subterrânea, força de raiz para a qual somos exercitados desde a juventude.

Tema: A pobreza em espirito

Et, ubicumque sunt et se invenerint fratres, ostendant se domésticos invicem inter se. Et secure manifestent unus alteri necessitatem suam, quia, si mater nutrit et diligit filium suum cf. 1Ts 2,7) carnalem, quanto diligantius devet quis diligere et nutrire fratrem suum spiritualem?

“E onde quer que estiverem e se encontrarem os irmãos, mostrem-se afáveis entre si. “E, com confiança manifeste um ao outro as suas necessidades, porque, se uma mãe ama e nutre seu filho carnal (cf. 1Ts 2.7), com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?

RNB: E tratem-se mutuamente conforme a palavra do Senhor: “Tudo o que desejardes que os homens o façam a vós fazei-o também a eles” (Mt 7,12). “E ainda: “Guarda-te de jamais fazer a outrem o que não quererias que te fosse feito” (Tb 4,16).

E onde quer que estejam os irmãos, e sempre que se encontrarem em algum lugar, devem respeitar-se e honra-se espiritual e diligentemente “uns aos outros, sem murmuração” (1Pd 4,9). E um manifeste ao outro com confiança as suas necessidades, para que este lhe arranje o necessário e o sirva. E cada qual ame e alimente a seu irmão como a mãe ama e nutre a seu filho (cf. 1Ts 2,7); e o Senhor lhe dará sua graça. E “aquele que come não despreze o que não come, e o que não come não julgue o que come” (Rm 14,3).

Os irmãos. Depois de pedir a seus irmãos uma vida de extrema pobreza, criando uma situação totalmente precária. Francisco procura dar-lhes, agora. uma garantia genuinamente cristã para a sua sobrevivência: e a comunidade fraternal em que o pobre encontra amparo e defesa.

Fraternidade vem de “frater”, irmão. Os irmãos tem o mesmo sangue. O sangue é o suco, a dinâmica vital que pulsa no homem, o vigor vital de nascividade vindo dos mesmos pais. Na dimensão religiosa o “sangue existencial” que torna irmão é a experiência de Deus-Pai feita por Jesus Cristo. Quem segue a Ele no discipulado vive a partir de e participa do modo de ser da natureza do vigor de Deus-Pai. Isto significa: todos os minoritas estão unidos no mesmo modo de ser do amor do Deus de Jesus Cristo, modo esse chamado de servir, isto é, minoridade. Por isso, a medida que orienta o relacionamento pessoal e comunitário é o servir, isto é, relacionar-se ao outro com o mesmo modo de ser pelo qual o Deus de Jesus Cristo se relaciona com cada um de seus filhos: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Mostrem-se afáveis entre si. São Francisco dirige novamente o olhar para os pequenos grupos de irmãos itinerantes, peregrinos e hóspedes, sem moradia certa. Em todo lugar onde se acharem ou encontrarem, deverão portar-se como “domestici invicem inter se”. Palavra quase comovedora! O amor mútuo substituirá o aconchego familiar; a caridade fraterna compensará a ausência de casa, do lar, do convento. A comparação com o amor materno, amor que deve ser superado pela caridade fraterna, bem frisa a importância deste aviso. O amor mais que maternal do irmão será o amparo dos frades menores sem lar e sem pátria.

Manifeste um ao outro suas necessidade. A vida na pobreza franciscana é uma vida exposta à penúria. É pois necessário ter algo com que remediar esta precariedade, providenciando-se aquilo de que nem o Frade Menor pode prescindir. A fim de que a caridade seja possível, é necessário que um diga ao outro sua necessidade. Ninguém deve encasular-se em sua aflição, pelo mal avisado empenho de aturar e vencer tudo sozinho. Declare pois sua angustia e indigência ao confrade, para que este possa “ser caridoso para com ele e prestar-lhe assistência”.

Em diversos lugares a Rega fala desta “necessitas” e “necessaria vitae”. Surpreende o fato de que este termo, nas seis vezes que é usado, não foi “regulado”. É deixado à consciência de cada um. Vale tanto para aqueles “qui necessitate cogantur – que são coagidos pela necessidade” a calçar sapatos, como para os irmãos que por uma “manifesta necessitas” não estão obrigados ao jejum corporal e para os que andam a cavalo num caso de “manifesta necessitas”. O mesmo aparece ainda com maior clareza quando se pede aos ministros de cuidarem dos irmãos, “sicut necessitati viderint expedire – conforme virem a necessidade” e, por fim ainda, quando aos frades é concedida a licença de aceitar salário para si e para seus confrades para terem os “necessaria vitae”. A Regra reconhece, pois, o direito de ter o necessário. Contudo não dá normas jurídicas a respeito. É preciso ver caso por caso, sob a inspiração do Senhor.

Essa liberdade sem leis jurídicas poderia levar a abusos, uns arrogando-se mais direitos que outros, e isso poderia introduzir certa discriminação entre os irmãos. A história da Ordem mostra que houve quem sucumbiu a este perigo. Para impedi-lo temos “apenas” uma admoestação da regra que convida a cada irmão a socorrer à necessidade dos outros com amor mais que maternal.

Et, si quis eorum in infirmitate ceciderit, alii fratres debent servire, sicut vellent sibi serviri (cf. Mt 7,12).

E se algum dos irmãos cair doente, os outros irmãos o devem servir, como gastariam de ser servidos.

Se um dos irmãos cair doente, os outros não o abandonem, esteja onde for, sem designar um ou, se necessário, mais irmãos, para o servirem como gostariam de ser servidos. Mas em caso de absoluta necessidade, poderão encarregar uma pessoa de confiança para cuidar dele durante sua enfermidade. E peço ao irmão enfermo que por tudo dê graças ao Criador, e seu próprio desejo seja de ser assim como Deus quiser, são ou doente; pois todos os que Deus predestinou para a vida eterna (cf. At 13,48), disciplina-os por estímulos de flagelos e enfermidades e pelo espirito de compunção, conforme diz o Senhor: “Eu repreendo e corrijo todos os que amo”(Ap 3,19). Se porém um irmão enfermo ficar perturbado ou se exaltar contra Deus ou contra os irmãos, ou acaso exigir remédios com demasiada insistência para curar o corpo, que está fadado a morrer em breve e é um inimigo da alma, isto lhe é inspirado pelo maligno; é um homem carnal; nem parece ser dos irmãos, “amando mais o corpo que a alma.

Se algum deles cair doente, os outros irmãos o devem servir. O texto fala de como entender e praticar a vida em comunidade. A comunidade é a família do frade. Se, em sua doença, alguém cair (ceciderit) de cama, incapaz de prosseguir o caminho com os outros, os irmãos devem devem cuidar dele conforme a norma áurea do sermão da montanha, pois o irmão enfermo pertence à família. E se não houver outro jeito (absoluta necessidade), a comunidade crie um ambiente onde irmãos enfermeiros ou profissionais cuidem dos enfermos. Mas, no campo da caridade, não há “especialistas”, na caridade todo mundo está “na sua”: a caridade e’ especialização de cada um, e os irmãos todos devem ser profissionais da caridade. Portanto, todos os irmãos são enfermeiros, isto é, todos devem ter caridade. E quem é especialista em enfermagem não exerce simplesmente sua especialização; ele é mais do que especialista enfermeiro; ele serve na caridade ao irmão enfermo, como o irmão cozinheiro ou o irmão sacerdote são mais que cozinheiro ou pastoralista; cada um deve servir na caridade: a caridade é a verdadeira especialização de cada um.

A comunidade sempre supõe um trabalho de identidade, isto é, que o religioso sempre de novo busque os sentido da vida religiosa. Esse trabalho dá sentido e cria a união: a comunidade. Por ser a comunidade a família do frade, o enfermo não deve ser tirado de seu relacionamento humano. O importante para o enfermo não é o remédio e nem a técnica. O verdadeiro remédio é o aconchego, o carinho dos irmãos, o relacionamento amoroso. E isso pode ser dado também por aquele que não é enfermeiro. Por isso ninguém abandona ou isola um doente. Quando se chega a abandonar um doente é sinal de que a busca da identidade enfraqueceu.

Para internar o enfermo, corre o perigo de demonstrar que não tem bastante capacidade de amor e sacrifício para tratar o irmão enfermo; seu vigor comunitário está muito fraco, e o sentido da vida religiosa está esvanecendo. Assim, se o enfermo necessitar de especialista ou de hospital ou se a comunidade não puder tratar dele, tudo seja feito como expressão de carinho e aconchego fraternal, caso contrário seria pura ilusão pensar que se está cuidando do enfermo.

RNB: Peço ao irmão enfermo que por tudo dê graças. Qual o sentido de doença e morte? É um grande problema: Fica-se meio atrapalhado diante de um imbecil de nascença.

Que sentido tem isso? O que São Francisco diria a respeito disso? Há pessoas que desde o começo da doença não se revoltam e tomam uma atitude de gratidão. Por que achamos isso extraordinário? São Francisco acharia isso extraordinário?

Por ser graça, “assumir” a doença não basta; para São Francisco saúde é viver cada momento como graça; o irmão doente, portanto, deve ser bom administrador da vida, agradecido a Deus pela vida minguada que tem; por isso deve lutar para não entregar os pontos; e os remédios que toma deixam de ser apego à vida; são antes ânimo de gratidão na boa administração do dom da vida.

RNB: Assim como Deus quiser, são ou doente. Há doenças que só incomodam e há doenças que abalam; estas últimas frustram completamente nossos projetos e aspirações e empurram para o fundamental da vida. Normalmente doença soa como desgraça e saúde como graça. Dar graças a Deus na doença: o pior é que nós nem sequer damos graças quando estamos com saúde!

A partir deste texto, a doença não deve ser “considerada” graça, mas “é” graça! Nós dizemos: Deus “permite” a doença, mas para São Francisco Deus pela doença “disciplina e flagela”. Ao dizermos saúde, nós entendemos algo objetivo; na realidade, porém, “saúde” tem sua acepção a partir do sentido da vida que se tem. A compreensão da saúde que nós temos hoje, não será ela doentia? Não será ela própria a doença de nossa época? O fato de pensar que o homem não deveria ficar doente, que não deveria envelhecer e morrer, esta é a verdadeira doença! A doença física muitas vezes reconduz à saúde existencial, restitui a saúde humana”, conduz à dimensão gratuita da vida, que é reino de Deus: “Olha! para o Pai, doença e saúde é a mesma coisa; o que não e’ a mesma coisa é ser grato ou não grato!” Se São Francisco descobrisse que para alcançar o sentido da vida precisasse ficar doente, ele ficaria!

São Francisco questiona o irmão enfermo: está desesperado por estar doente? quer viver mais? Onde esta então sua identidade? Onde ele coloca o sentido da vida? O questionamento gira em tomo da doença; mas doença e problema da vida e da morte: o questionamento, portanto, encaminha para a questão de onde se coloca o sentido da vida; é o problema da identidade, da busca do sentido da vida. Tanto a doença como a velhice são confronto com a morte, e quem não as aceita quer evitar esse confronto, confronto que no fundo constitui o motor da vida, porque articula o crescimento da identidade.

Morte não indica só o fato de morrer e ir para o além. Ela envolve uma reflexão mais ampla. Nós, cristãos, quase não damos conta do problema da morte e sofremos com isso. O problema não é que nos falta fé; é que não entendemos bem o que é fé! Estamos lendo um texto altamente sofisticado na ciência da fé. Temos dificuldade de entender temos como este, não porque são difíceis, mas por que nós, no que chamamos de ciência da fé, estamos “no primário”, considerando extraordinário tudo que vai além desse nosso saber normal. Mas se São Francisco tem uma compreensão altamente sofisticada na ciência da fé, é porque trabalhou, pois não há pessoa no mundo que consiga alguma coisa sem trabalhar.

Diante da morte, a palavra de Deus manda ter esperança e pede ao crente para ser diferente daqueles que não têm esperança. Mas como é ter esperança concretamente, de tal sorte que possamos usá-la na prática? Pensamos (e ensinamos!) que se trata da perspectiva para depois da morte. Mas será que é esta a força da doutrina cristã? De doutrinas assim está cheio por ai: islamismo. budismo e quase todas as religiões ensinam deste jeito; é raríssimo encontrar alguém que pensa que a morte é o fim de tudo.

Um cristão, ao dizer “nós cremos, nós temos esperança”, diz o mesmo que estas religiões? Em outras palavras: para acreditar no além, precisa ser cristão? Parece que não. Para a fé cristã, não desesperar nessa vida é muito pouco; resulta num cristianismo de nível de missa de 7° dia ou de jardim de infância.

Usualmente, morte e além não são uma força para viver, e sim um medo angustiante; a fé é um instrumento para aliviar a dor. Precisamos ter uma concepção mais real, profunda e nítida sobre o que a consiste a novidade da mensagem cristã. Mas então qual e’ a mensagem cristã acerca da morte e o que a diferencia das demais religiões.

A mensagem cristã não é para explicar que depois da morte tem vida. Entender a mensagem assim seria ficar no nível de noviço, que antes da profusão se preocupa com o corte de cabelo. É necessário ter mais ambição na compreensão de nossa fé! Fé para S. Francisco, é como que a grande busca de uma nova humanidade, a busca de um valor supremo para o qual se pode sacrificar saúde, beleza, tudo.

O cristianismo é uma nova teoria sobre a humanidade. A mensagem de Jesus Cristo continua sendo em cada época sempre de novo, uma nova teoria sobre o que seja o ser humano. Ele nos trouxe uma nova compreensão também no que diz respeito à morte e ao além. Quando dizemos “além”, nós cristãos afirmamos corajosamente uma realidade maior, presente nesse mundo ainda que não apareça: estamos afirmando que o morrer de uma pessoa não significa absolutamente nada, pois nossa realidade é aparência; o real mais real e concreto é aquilo que o ateu chama de abstrato e não demonstrável O cristão não é um cara que um dia acordou nesse mundo e começou a perguntar-se: ‘De onde vim? Este mundo tem sentido? há algo além dele? Ah, deve ter alguma coisa, senão esse mundo não teria sentido”. Esse discurso de fim do mundo, no céu, um dia vamos estar lá, isso é uma explicação muito primária. O cristão não se coloca assim, pois isso é muito fraco, muito anêmico.

A mensagem cristã é: nós não somos deste mundo; somos de outra raça; somos extraterrenos, viemos do além; nós acreditamos numa outra realidade, somos de uma realidade maior. Essa realidade, esse mundo não tem muito sentido porque, no fundo, é coisa derivada. Existe uma realidade mas fundamental; se ficar escandalizado e perder a fé, você é bobo, pois isso é ilusão; faz sofrer sim, mas você está esquecendo que tem uma realidade além dele, essencial e invisível: o Reino de Deus”. Ele então. apesar de todo o mal que vê, continua com mais fé. Em outras palavras São Francisco não está procurando o sentido da vida, pois, ele já o tem: traz à tona o sentido da vida mostrando que a realidade maior, “o além”, não e’ uma realidade abstrata. Atrás das aparências, já estamos vivendo o céu; é como na transfiguração: bastou um momento para dissipar toda a ilusão e começar a aparecer aquele brilho que atuava em Jesus. A turma ficou assustada, Jesus apagou para não assustar demais.

Morrer então como a semente: se não morrer, não viverá. Viver é o invisível que está pulsando atualmente e que esta agora presente; nós acreditamos nisso. Acreditar, então, não significa crer que deve haver uma vida depois da morte; significa ver, ver mesmo que já aqui há uma vida divina pulsando. A fala do evangelho “Bem aventurados os puros de coração porque verão a Deus”, não é fala simbólica; é uma realidade. Fé é um ver, uma evidência não do além, mas do agora-além; e São Francisco está vendo mesmo! Nós cristãos acabamos por ver a realidade fundamental como a mais real. Quando começamos a ver isso, não vamos mais sofrer, pois aquilo que nos faz sofrer é, no fundo, ilusão. Assim, se um ente querido morre, ele não se afastou de nós. Ficou mais próximo. A pessoa cujo defeito sempre precisei carregar, tanto de não ser tão “querida”, era carcaça de uma coisa que ainda não tinha nascido direito.

Num filme de kung-fu o “gafanhoto” está triste; o mestre cego lhe pergunta “por que está triste? Ele responde: “Porque desde pequeno não tenho nem pai, nem mãe; não tenho ninguém da família aqui”. O mestre lhe diz: “Você está só? Não entendendo!” E pede ao gafanhoto para que sinta o cheiro do campo e das ervas, pisar no chão, escutar os pássaros, e pergunta: “Tudo isso não são teus companheiros? Como você pode dizer que está só?” Para nós, isso soa naturalista, mas não São Francisco diria: “Como dizer que está só, se tem Jesus Cristo, Abraão, Nossa Senhora e todas as gerações que passaram, seus avós, seu pai e sua mãe”. “Ah! mas não estão aqui presentes!” “Que diabos significa presença?”, diria São Francisco admirado de que não consigamos ver.

Diante da morte e da salvação, a perspectiva usual é: “Preciso merecer um Pai que me ame; por isso me mato para fazer o bem, para poder agradar o Pai”, e se surgir uma duvida diz: Não. não! Não vou perder a esperança!” A mensagem cristã, pelo contrário, diz: “Olha que coisa artificial: está falando de ter que conquistar o amor do Pai! Deus é um Pai que, antes de você o conquistar, até mesmo você sendo mim, já te ama”. O dia em que o cristão entender isso, sentir-se-á empurrado a amar, cada vez mais! E, se tem angústia e tristeza diante da morte, não diz: “Infelizmente tem que morrer”, mas: “Jesus Cristo já ultrapassou tudo isso e eu já ultrapassei com ele; ele me deu sentido para além de tudo isso: então vou olhar a realidade da vida e da morte de lá pra cá!”

RNB: Castiga-os por estímulos e flagelos. Para São Francisco, Deus é mestre que tempera o discípulo: não é um Deus sádico, mas a mão firma do mestre. “Castigar” tem sentido positivo: fazer um trabalho castigado significa trabalhar de cinto apertado, caprichado, com todo empenho e usando de todos os recursos. Quando uma pessoa ensina a outra com todo apreço por ela, “castiga” quem é castigado não se sente judiado, mas amado.

O frade menor tem que ser assim. O discípulo medieval nunca diz ao professor: “Não faça isso comigo!” ou: “Professor, olha que já trabalhei cinco horas! O discípulos sente a correção como uma graça que o mestre ensine; não desconfia do que o mestre manda fazer. Modernamente nas academias de arte, de esporte ainda é assim, se são artesanais, em tudo tem superdisciplina e superestrutura. Só na vida religiosa se acha que se deve viver espontaneisticamente. Quando se fala de obediência, suportar superiores, não será que se trata de exercícios de cultivo do ideal? O segredo é ter consciência de que tudo isso é para crescer na identidade. Esta era a consciência nítida e clara de são Francisco e de seus companheiros, por isso o formando não atribuía os “exercícios” da vida religiosa ao capricho do superior ou do mestre, como acontece hoje. Hoje se confunde o rigor, que é escuta da dinâmica da obra, com durão, que é estar voltado sobre si. A instituição religiosa católica tem uma força extraordinária, mas não consegue mais ter evidência do específico de cada carisma e dos exercícios necessários para desenvolvê-lo. Cada carisma poderia ser uma academia de formação humana!

RNB: E pelo espírito de compunção. Espirito de compunção é paciência, compassividade boa. Alguém que não está fazendo bem uma coisa, percebe, arrepende-se por não ter estado no ponto, renasce na vontade de acertar e pede perdão: quero recuperar de novo um relacionamento originário. A enfermidade pode trazer uma atitude assim.

RNB: Ficar perturbado ou se exaltar. Quem é doente fica muito sensível: de um lado percebe logo se o outro faz por obrigação, ou se está servindo como gostaria de ser servido; por outro lado, fica “sombrio” e imagina coisas, ficando às vezes “revoltado” contra a doença e contra os irmãos. Trata-se de ser capaz de dizer a verdade ao irmão doente por estar preocupado com sua caminhada; e de ser capaz de libertar aquela confiança que uma mãe suscita no filho doente; e, ao dizê-la, fazer como se estivesse dizendo-a a si próprio. Uma mãe sempre se pergunta: como fazer para que meu filho doente fique feliz? O “como gostaria de ser servido” se refere ao jeito e não ao conteúdo.

RNB: Corpo inimigo da alma. O corpo biológico mesmo, que quando é apenas carnal e de fato inimigo da alma, e quando é espiritual é amigo da alma. Corpo como corporação, como bando de vícios e pecados; associação, estruturação de vícios e pecados que constituem a história da pessoa. O corpo é sempre extensão da pessoa: a mão pode ser mão de carinho ou de tapa, mas junto com a mão é todo o corpo, a pessoa toda que é de carinho ou de tapa; carinho ou tapa é concreção do ser da pessoa como corpo. Corpo inimigo então é todo o ser da pessoa na sua concreção. Cada tentação, com sua manifestação “corpórea” específica, tem o seu jeito de ser enfrentada. Os antigos franciscanos estudavam essas coisas e na hora “h” não eram que nem barata tonta.

O corpo precisa ser disciplinado para que dê o que nós queremos dele; o fator biológico deve se adequar à dinâmica do espirito pela aprendizagem, independentemente de conseguir ou não, pois sempre confundimos o fazer-querer com o resultado; o valor da obra está no ânimo com que esta é feita. Quero, por exemplo. rezar, mas fico distraído ou estou com sono: o querer real é mostrado pelo fazer o que posso nessa situação: vou para o lugar da oração nem que depois durma, tomo a postura de concentração nem que depois não consiga. A vontade real começa sempre pelo mínimo que está ao meu alcance e usa o corpo. No discipulado o “eu quero” é condição essencial; mas o segredo do discipulado está no ver se a obra está saindo boa ou não, e crescer na aprendizagem.

São Francisco judiou de si. Sua vida foi quase um suicídio lento! Esta atitude, porém, não nasceu de uma competição para ser campeão de perfeição; ele não é o herói recordista que morre de enfarte na chegada. São Francisco tem muita discrição; não conhece excessos; ele não tem uma espiritualidade militar, não é durão; ele é, sim, animado como cavaleiro que entra na batalha. O recordista tem atitude de dono da vida, São Francisco, de servo da vida, buscando a saúde existencial. A dureza de São Francisco consigo é fruto da passionalidade, no bem e no mal, do medieval; o medieval era radical nas medidas virtuosas; nós somos xucros, sem grandes paixões nem no bem, nem no mal. São Francisco é como amor de mãe que gasta sua saúde para cuidar da criança doente, mas cuida também dela própria.

RNB: Nem parece ser dos irmãos. É a mesma frase dita em referencia ao dinheiro: Nem parece ser um dos nossos. Perdeu a evidência do time; esqueceu o porque da Vida Religiosa; caiu fora da companhia dos irmãos. É especifico da Vida Religiosa buscar a identidade da vida no confronto com a morte, por isso na Vida Religiosa sempre vem à tona o tema da morte. Não aceitar a doença como um confronto com a morte significa não estar comungando com o ideal dos irmãos da comunidade. O irmão que fica perturbado na doença c se agarra à vida, o faz porque nunca entrou para valer na comunidade, nunca entrou “na morte”, nunca se confrontou com ela. O essencial da vida não e’ a saúde. Faltando a reflexão da morte como problema radical e fundamental para buscar o sentido da vida, a saúde se toma ideia fixa que desnorteia a caminhada, e assim “nem parece ser dos irmãos”.

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