A pertença à Igreja
1Cel 13-15 – A aliança com a Senhora Pobreza
Abril-maio de 1209 – Mandado para conquistar almas
1 Cel 13 Francisco percorreu seu itinerário pessoal. Agora sua experiência pessoal tem irradiação no social-eclesial: outros se juntaram e se tornaram sócios” de seu caminho; é necessário tematizar numa Regra comum o cerne desta experiência. Assim nasce a primitiva regra e forma de vida. Francisco, porém, permanece a encarnação viva desta forma e regra de vida.
Ele quer estar em comunhão com a instância eclesial pela qual o Evangelho se torna presente e se perpetua. Por isso vai a Roma buscar a aprovação. Ele não se sente dono do carisma, cuja raiz vai além dele; se sente servo dele, e por isso busca a aprovação da instância competente: a Igreja Romana.
A regra de vida é a cristalização de uma experiência religiosa; não é, portanto, norma, lei; é também isso, mas com uma alma maior, um alcance que vai além do aspecto jurídico. Precisamos de muito estudo para tematizar pelo menos um pouco a experiência de São Francisco resumidas nas poucas palavras com que a Regra se formula.
COM SIMPLICIDADE E COM POUCAS PALAVRAS, SENDO EXPRESSÕES DO SANTO EVANGELHO. São expressões chaves, o núcleo fundamental. São Francisco é um discípulo-aprendiz do Evangelho e “leva para casa” algumas expressões “para decorar”! São as portas de entrada do Evangelho para Francisco e os seus.
ACRESCENTOU ALGUMAS POUCAS COISAS ABSOLUTAMENTE.. Francisco é homem prático: não tem medo de fazer “glossa” do Evangelho. Começa o longo caminho da Regra, que se fixará somente em 1223; “Estatutos” continuarão a sair também depois, ainda vivo São Francisco.
LTC 12 VAMOS, POIS, A NOSSA MÃE A SANTA IGREJA ROMANA. Ecclesia é a assembleia de Deus, povo de Deus, comunidade do Deus de Jesus Cristo. Por que será que São Francisco a chama de santa mãe? Santa significa sancionada por Deus, uma coisa toda especial, não conforme a medida humana. “Mãe”: costumamos tanto dizer Santa Mãe Igreja que projetamos nessa expressão nossas experiências caseiras de criança, perdendo a preciosidade de sua intuição originária. Mãe é aquela que dá a vida, traz vida nova, cria, cuida, fomenta. A força que anima, a vitalidade que pulsa no Povo de Deus de Jesus Cristo, a Igreja, o corpo místico de Cristo, é a força criativa da mãe. Força que cuida, fomenta, faz nascer, renascer, é o novo, faz novo, ensina, orienta, protege. Em referência à humanidade, a todo o universo, o grande povo dos seguidores de Jesus Cristo é animado por essa força, a Santa Mãe Igreja.
Sujeitar-se em obediência a esta Santa mãe significa total doação para essa maneira de ser e de viver, vitalizar, criar. Nós, ao pertencermos à santa Igreja, só vemos a parte institucional, como hierarquia em parte boa e em parte ruim. E nossa compreensão fica estreita. Quando São Francisco diz Igreja, ele pensa no Corpo Místico de Cristo em toda a sua vitalidade, em toda sua força inovadora, em toda sua força de dar vida. Obediência à santa mãe Igreja tem assim enorme dimensão. São Francisco usa este processo compreensivo mesmo com a Instituição, com as coisas jurídicas; vê lá no fundo essa vitalidade. São Francisco é cavaleiro, ele não desvia só para pegar o “espiritual”, ele pega o todo. Tendo dificuldade com bispos, padres, religiosos, povo, ele ainda quer ver pulsando atrás deles essa vitalidade, e como cavaleiro faz brotar essa vitalidade que no fundo pulsa em todo o corpo místico de Cristo. Essa atitude positiva se chama obediência, compromisso com a santa mãe Igreja.
l Cel 14,34-35.
ALIANÇA COM A POBREZA. A determinação pessoal e comunitária de ser pobres toma forma de aliança. O que significa isso? Com quem se faz aliança? Eles estão num lugar bonito e agradável. Estão num momento alto e “sensível” da experiência religiosa. Se pobreza é ter esta alegria, a buscarei sempre! Aliança: andar junto na vida. Aqui é aliança de um cavaleiro com a sua dama. Aliança de serviço e dedicação. A aliada Senhora Pobreza cria espaço para Deus. É compromisso e tarefa. Mas o caminho não pode parar no “agrado” da experiência religiosa: é necessário cuidar com zelo da pobreza evangélica abraçada.
Zelo é cuidado bastante intenso; é busca, pesquisa, conservar, fazer progredir a pobreza evangélica. Pobreza evangélica em São Francisco é Jesus Cristo crucificado, com toda a atitude de disponibilidade dinâmica, suavidade, positividade que ele tem. Essa é a pobreza evangélica, e tudo que de alguma maneira está ligado com esse modo de ser. Então zelo pela pobreza evangélica significa zelo pela Senhora Pobreza, isso é, zelo por Jesus Cristo crucificado, a quem seguimos como seu exército especializado.
Pobreza assim exige que se lance todos os cuidados e solicitudes da alma e do corpo para Jesus Cristo, o bom pastor e nutridor de nossas almas e de nossos corpos. Nós todos temos “cuidados”: trabalho no colégio, no hospital, na pastoral; temos também de cuidar de sobreviver. São Francisco está convidando para uma atitude radical e fundamental; o Senhor Jesus não é um símbolo, não é uma imaginação, mas realidade que está diante de nós que nos convoca para ele; e nós assim convocados temos honra de segui-lo. No último instante a atitude deve ser de lançar todo cuidado nele. Nós precisamos cuidar de nós mesmos como qualquer outra pessoa faz; nossa atitude interna, porém, é diferente, pois quando ‘há algo impossível que não nos deixa dormir de noite, nestes momentos lançamos essas preocupações para Jesus Cristo, dizendo: “Você é o nutridor, o provedor de nossas almas e de nossos corpos”. Essa atitude com que com o tempo durmamos de noite nas pires situações, não por sermos pachorrentos e não percebermos o perigo; mas por sermos seguidores de Jesus Cristo dizemos: “Aqui estamos com o nosso trabalho, o resto por favor você cuide; não vou perder tempo com isso não; a energia que tenho uso para durmo para você”.
Ter no coração como única intenção sincera e franca de estar inteiramente atrás disso, isso se chama de “mundície”. Contrário de mundície é imundície. Quando alguém está num projeto, num chamamento de seguimento, e é límpido na intenção, não mistura outra coisa; diz: “É isso que eu quero; por favor, Senhor, me conserve nesta limpidez!”; então sua alma está pura. Casta é uma pessoa assim. Quando se fala casto, logo se pensa castidade “sexual”; castidade, porém, é pureza como atitude. Casto, puro, mundo significa alguém que tem uma única intenção límpida, pura, desde o inicio até o fim. Temos que ter coração puro, límpido, uma única intenção de seguimento. Quando nos afastamos disso a nossa própria sexualidade começa a ter outra atuação.
SE DEVERIAM PERMANECER ENTRE OS HOMENS OU RETIRAR-SE PARA LUGARES DESERTOS. Uma questão pertinente, no momento justo. A questão nasce porque São Francisco e companheiros são fiéis cultores da justiça divina. Francisco ouviu os apóstolos serem enviados ao mundo; reinterpreta agora o “Vai Francisco, restaura a minha Igreja”, e se orienta decididamente para a missão apostólica.
Numa leitura superficial se tem a impressão de haver tensão entre ação e contemplação. Na lê etapa da caminhada o homem religioso é chamado para a felicidade. Mas com o tempo percebe que essa felicidade consiste em servir 0 Senhor. Buscar a Deus para si significa buscar a Deus para servi-lo.
Tanto na ação como na contemplação surge a questão: o que é “apenas para si” e o que é “entre os homens”? Vida “ativa” e vida “contemplativa” são o mesmo quando radicalizadas. Por isso, se for rezar para buscar a Vontade de Deus, vá “em nome do Senhor”; se for pregar, pregue “em nome do Senhor”. A contemplação é como iluminação do raio e a pregação como a percussão do raio, o trovão. Quem permanece no fundamental é contemplativo na atividade e é ativo na contemplação.
Nosso esquema de vida contemplativa e vida ativa é o seguinte:
a – Vida contemplativa é viver Deus só para si mesmo; isso porém “soa” egoísmo e não se justifica. Vida contemplativa se justifica somente como um abastecer-se de Deus para poder dar-se aos irmãos. Daí a afirmação que só vida contemplativa não basta.
b – Vida ativa é viver para o bem dos outros; é irradiar o que na vida contemplativa se recebeu de Deus. Há necessidade de unir num bom equilíbrio a vida contemplativa e a ativa.
A partir deste esquema, o fato de São Francisco não saber se Deus o chamou só para ele mesmo ou para a salvação dos outros, é interpretado como não saber se deve viver a vida contemplativa gozando a intimidade de Deus como sua grande realização pessoal de vida interior ou se deve se sacrificar, assumindo as responsabilidades pastorais.
Uma tal colocação é estranha ao pensamento de São Francisco. Pois para o medieval vida contemplativa jamais é gozo da intimidade com Deus como realização pessoal, por quanto isso possa parecer nobre e sublime. Vida contemplativa é antes um chamamento, uma vocação para se doar a Deus de corpo e alma, inteiramente, sem reservas: amar a Deus sobre todas as coisas, com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento e com todo o ser; é seguir Jesus Cristo e ser obediente à vontade do Pai até a morte da Cruz. Ser obediente à vontade do Pai é exigência da doação aos irmãos, pois Jesus, em se doando todo inteiro à Vontade do Pai, doou sua vida aos irmãos. Por isso a dúvida de Francisco e companheiros não está em saber se devem se doar a Deus ou aos irmãos ou se a ambos!
Não saber se Deus o chamou só para si ou também para os outros, significa: a – não ter dúvida que tanto na vida contemplativa como na ativa a exigência é de doar a vida para ser obediente à Vontade do Pai até à morte da Cruz = disposição absoluta de doação a Deus e aos irmãos;
b – mas essa radical doação podia ser concretizada de duas maneiras: na solidão desértica de isolamento mortal na montanha da vida eremítica (= só para ele mesmo) ou no esfrega esfrega da vida de convívio comunitário eclesial (permanecer entre os homens).
É afirmação usual hoje que só se deve pregar aquilo que se vive. É necessário distinguir: alguém, por exemplo, pode estar lutando muito contra alguma dinâmica “viciosa” do seu eu e não conseguir grandes resultados; nem por isso deve ficar calado; ele deve pregar pois está na luta. Mas alguém poderia não estar lutando e por não lutar, não ter “donde” falar. Pode ainda haver alguém que, escondendo-se numa capa de “humildade”, fica calado sob o pretexto de não viver suficientemente o Evangelho; na realidade, porém, no fundo está alimentado a preguiça. Se fulano não Vive, ele deve pelo menos falar, pois assim alguém pode aproveitar. A Igreja controla a verdade do que é dito, mas não a conduta de quem diz; por que? Porque um bom pregador de vida moral ruim, não está tirando sua pregação de si mesmo, mas da Tradição; azar dele se não vive, o que prega. Quem ouve porém deve aproveitar. São Francisco no seu relacionamento com os sacerdotes pecadores, só vê o Mistério do Senhor. Quem não vive e, podendo falar, não fala, será cobrado ainda mais pelo Senhor.
A nossa espiritualidade moderna tem outro problema que o medieval não tinha: pensamos que o valor daquilo que é dito repousa na autenticidade de quem fala. Este slogan está fomentando o valor do individual, da “personalidade”, e nos faz cair no culto da personalidade, na espiritualidade do fã. E os inimigos da Igreja aproveitam disso. Nietzsche, por exemplo, era sifilítico, ficou louco, mas a obra “Assim Falou Zaratustra” não é loucura; é uma das maiores revelações do pensamento moderno. Van Gogh era esquizofrênico; suas obras, porém, não eram esquizofrênicas. O mesmo se dá com a vida espiritual, porque “viver” não significa estar conseguindo, mas lutar para conseguir, sem deixar de perceber que o viver cristão tem por referência Jesus Cristo.