Vocacional - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fragmentos de reflexões fenomenológicas VII

05/02/2021

 

  1. No sexto encontro do nosso círculo fenomenológico, não fomos muito adiante na leitura [pois o nosso animador frei Marcos teve de ausentar devido a uma viagem a São Paulo]. Em vez de ir adiante, tentamos retomar pontos das reuniões anteriores, sobre os quais alguns dos participantes acharam útil trocar idéias em repetição. Assim tentamos nos concentrar de novo sobre o tema possibilidade e realidade na compreensão fenomenológica. Esse tema nos levou a ver mais em detalhes o que seja redução, ideação e constituição etc. E com isso também examinamos a estrutura interna do modo de ser do esquema de teoria do conhecimento S ↔ O.

Nessa ocasião, comentando a observação de Heidegger no seu livro Fenomenologia da vivência religiosa que diz que dentro de um objeto não se pode morar, conversamos longamente sobre o modo de ser do mundo e da mundidade ou, com outras palavras, sobre horizonte e dimensão (embora esses termos não sejam simplesmente sinônimos do mundo), falamos também da existência e existencialidade (Da-sein e Existenz) como uma nova compreensão do ser do homem, diferente do ser-sujeito, diferente da subjetividade e com isso diferente também da objetividade. Tentamos ver assim que a realidade ao redor de nós, dentro de nós, diante de nós não se dá originariamente como objetos diante do sujeito-homem, mas o ente cada vez no seu todo se abre e se estrutura como mundo, digamos como uma paisagem cujo ponto de eclosão é o homem, não como sujeito e agente do mundo, mas como a abertura de passagem da possibilidade de ser, que vem à luz, se abre em leques como uma paisagem do ser, conforme a maior ou menor capacidade de o homem no seu ser, captar e deixar ser o sentido do ser que o conduz para deixar ser o mundo em eclosão.

Esse modo de compreender o homem como a aberta do mundo, como a possibilidade da realidade mundo, nos fez entrever que essa aberta-homem não aparece como esta coisa, aquela coisa, nem como sujeito e agente de ação sobre coisas, nem projetor subjetivista de objetos e conjunto de objetos, mas sim como a dinâmica de possibilidade do eclodir, crescer e estruturar-se do mundo. Tudo isso nos facilitou a ver uma paisagem-mundo toda estruturada no seu ser como um lado de uma folha, cujo outro lado é o homem, não como isto ou aquele, não como sujeito e agente dos objetos, mas como a aberta, como horizonte aberto: isto é ser-no-mundo.

  1. Da-sein como modo de ser próprio do homem deve ser entendido com precisão na oscilação da sua ambigüidade. Pois, uma vez pode ser entendido como o modo diferencial que distingue o homem dos entes não-humanos. Assim entendido, no jargão filosófico, dizemos que o Dasein é uma diferença ôntica que distingue o homem de outros entes não-humanos. Nesse caso, teríamos duas grandes regiões do ente como: a região do ente humano e a região do ente-não humano. Embora nessa divisão entre o modo de ser próprio do homem e o modo de ser do ente não-humano haja grande diferença, o sentido do ser que abrange essas duas regiões numa generalidade maior e mais vasta é o ser, num sentido bem determinado. Pois tanto os entes humanos como também os entes não-humanos são entes. O sentido do ser aqui é comum, geral a ambas as regiões. A expressão o modo de ser próprio do homem, entendido como diferencial diante do ente não-humano, debaixo do igual sentido do ser, comum a ambos, é diferença ôntica. O modo de ser próprio do homem, porém, ao ser entendido como diferença ôntica, pode ao mesmo tempo ser entendido também como diferença ontológica. Na diferença ontológica, a diferença existente não é entre este ente e outro, nem entre ente e ente num sentido mais geral, mas entre o ser e ser, ou melhor, “entre” o sentido do ser e o sentido do ser. Mas de que se trata? Em vez do ser ou sentido do ser usemos os termos horizonte, ou melhor, mundo. Nesse sentido, então, a diferença ontológica diz respeito à diferença existente entre horizonte e horizonte, entre mundo e mundo. Só que aqui é necessário não entender o horizonte (ou o mundo) de modo vago e abstrato como se fosse um grupo, uma classe ou uma região diferente de entes. Pois horizonte ou mundo diz respeito à totalidade, de tal modo que não se trata de “objetivar” a totalidade como ente, colocando os entes um ao lado do outro a modo de conjunto de coisas. O horizonte ou o mundo como cada vez totalidade abrange todos os entes atuais e possíveis sob o sentido do ser ali operante, de tal modo que, uma vez dentro, não há nada que possa ficar fora e, a partir de dentro não se pode perceber que é possível uma outra totalidade. Surge a pergunta, é possível se pensar o mundo o mais geral que abrangesse todos os mundos na sua mundidade? Não seria possível um mundo assim geral, pois o mundo não é um gênero, nem espécie, nem isso ou aquilo, mas …cada vez mundo, cada vez seu, na total autoidentidade de e consigo mesmo, sem se trancar em si, pois a partir de dentro se expande indefinidamente, mas na sua identidade diferencial, se perfaz radicalmente “fechado” ou “oculto” a si mesmo, pois não se pode sair do mundo e tomar pé numa posição extra ou além-mundo, para adquirir uma visão panorâmica geral dos mundos na sua mundidade. Uma tal visão panorâmica é fruto de um bem determinado horizonte, cujo modo de ser é caracterizado pelo termo algo (etwas) e mesmo ente (Das Seiende) ou também objeto (Objekt), cujo “grau” de mundidade é tão baixo que o ente não aparece aqui a não ser como um quê-bloco totalmente abstrato e indeterminado. O modo de ser da mundidade caracteriza o modo de ser ôntico do homem que ambiguamente se pode chamar também Da-sein, mas é precisamente nesse modo de ser onticamente diferencial que aparece a possibilidade de recolocar a busca, i. é, a questão do sentido do ser, na sua diferença ontológica, pois é somente no homem agora entendido como Dasein que se abre a compreensão de que se trata quando dizemos ser como horizonte, como mundidade do ente na sua totalidade. Esse modo de ser que é ao mesmo tempo ôntico e ontológico, ou melhor, o modo de ser ôntico, que na sua diferença ôntica, ao se distinguir do ente não-humano, traz nessa diferença identificadora do ser do homem a revelação, a abertura que mostra a mundidade como a diferença que caracteriza a identidade de cada ente no seu ser (diferença ontológica) se diz no Ser e tempo ser-no-mundo e se refere à finitude essencial do homem como Da-sein.
  2. Na fenomenologia essa expressão deve ser entendida com grande precisão em referência à partícula no (ser-no-mundo). No aqui não é dentro de. Mas sim como dinâmica do ponto de salto da eclosão do mundo. Esse ponto, porém, não é ponto, mas origem. Todo o problema com a compreensão da origem é que, por origem, usualmente representamos alguma coisa que está ali como causa, fundamento, base ou alguém, que faz surgir, que segura etc. Sendo assim, imaginamos a origem como um algo a modo de prolongamento para trás, do que foi originado. A origem como o surgimento e donde vem o mundo, não pode ser um algo ou um alguém a modo do mundo que surgiu, pois do contrário esse algo ou alguém anterior deve ter a sua origem, de tal sorte que a origem anterior não é origem, mas já era algo originado. Por isso, a fenomenologia diz que a origem originante é nada. Só que quando dizemos nada, de novo o representamos como algo espacial vazio. Aqui é melhor tentar representar esse nada como abismo de possibilidade de ser na sua dinâmica, que não aparece como uma coisa em si, mas que somente surge e logo se retrai como abismo de possibilidade de ser no instante em que eclode o mundo. Se compararmos o eclodir do mundo como uma cintilação, a escuridão que aparece como fundo do qual se dá a cintilação seria o nada-origem. Da-sein, o ser-aí como o modo de ser próprio do homem é instante da cintilação, onde se dá a passagem do abismo da possibilidade de ser que envia uma das possíveis possibilidades de ser como realização no abrir-se do mundo.

O decisivo para a compreensão do Da-sein como ser do homem, i. é, como ser-no-mundo é não se contentar em representar esse movimento da origem enquanto dinâmica como um movimento físico, neutro, digamos automático, que se dá por si, naturalmente, como um estado de coisas ou uma sucessão ou um acontecer de fato, mas como liberdade de responsabilização no deixar-ser o sentido do ser que se anuncia no instante da eclosão do mundo. Por isso, Heidegger define o ser do homem a existência ou o Da-sein como liberdade e ser-no-mundo.

Na medida em que começamos a compreender o ser do homem como Da-sein, como a passagem, como a aberta, no instante da eclosão do mundo, onde pela recepção da disposição da pura espera do inesperado, se deixa ser o sentido do ser que percute a eclosão do mundo no seu ser, é que começamos a compreender que o caminho do campo, sua paisagem e em seus acenos, tendo como a tonância do fundo o simples e o grande, na serenidade da imensidão, profundidade e liberdade de ser não é literário, comparação, símbolo poético ou descrição do estado psicológico do autor ou do leitor, nem sequer uma explicação antropomorfa ou antropológica do universo, mas sim pura ontologia.

  1. Em chinês caminho se diz Tao. Para de alguma forma podermos entender o que seja origem na fenomenologia, que coincide com o caminho do campo, tentemos ler atentamente o seguinte poema.

O texto é do pensador chinês Chuang-Tzu, na versão adaptada de Thomas Merton[1], e se intitula: Onde está o Tao?

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: “Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado”. Respondeu Chuang Tzu: “Não há lugar onde ele não possa ser encontrado”. O primeiro insistiu: “Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado”.

“Está na formiga”, disse Chuang. “Está ele em algum dos seres inferiores?”. “Está na vegetação do pântano”. “Pode você prosseguir na escala das coisas?”. “Está no pedaço de taco”. “E onde mais?”. “Está no excremento”. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.

Mas Chuang continuou: “Nenhuma de suas perguntas é pertinente. São como perguntas de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando “toda escala do ser”, como se o que chamamos “mínimo” possuísse quantidade inferior do Tao? O Tao é grande em tudo, completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Esses três aspectos são distintos, mas a realidade é o uno. “Portanto, vem comigo ao palácio do Nenhures onde todas as muitas coisas são uma só: Lá, finalmente, poderíamos falar do que não tem limites nem fim. Vem comigo à terra do Não-Agir: O que diremos lá – que o Tao é a simplicidade, a paz, a indiferença, a pureza, a harmonia e a tranquilidade? Todos esses nomes deixam-me indiferente, pois suas distinções desapareceram. Lá minha vontade não tem alvo. Se não está em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, não sei onde repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, não sei onde terminará. A mente permanece instável no grande vácuo. Aqui, o saber mais elevado é ilimitado. O que concede às coisas sua razão de ser não pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em “limites”, ficamos presos às coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se “plenitude”. O ilimitado do limitado chama-se “vazio”. O Tao é a fonte de ambos. Mas não é, em si, nem a plenitude, nem o vazio. O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste, mas não é nem um nem outro. O Tao congrega e destrói

Mas não é nem a totalidade nem o vácuo.”

[1] Merton Tomas, A via de Chuang Tzu. 4ª edição, Petrópolis: Vozes, 1984, p. 158-160. Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome é Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. É um dos maiores pensadores chineses do Taoísmo, do século III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mêng-Tzu. Seus escritos estão reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai p’ien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A tradição atribui a autoria de nei p’ien a Chuang-Tzu e de wai-p’ien a seus discípulos. Cf. Feiffel, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959, p. 47.
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