O título desse trabalho soa “À coisa ela mesma, a fenomenologia”. “Zur Sache selbst”, à coisa ela mesma, é a divisa sob o qual a fenomenologia ficou conhecida, enquanto movimento filosófico. À coisa ela mesma evoca um retorno. Retorno a que? À coisa ela mesma. O que é, pois, a coisa ela mesma? De que coisa se trata, quando a coisa, ela mesma, é o ponto de partida, da qual nos afastamos e ao qual somos convocados a nos retornar? Essa pergunta, assim formulada, é precipitada. Pois o título apenas insinua que a coisa ela mesma a que tende a fenomenologia é a coisa, i. é, a causa dela mesma. À coisa ela mesma é a fenomenologia. Isto por sua vez significa que falar da fenomenologia é o mesmo que falar de que se trata, quando dizemos à coisa ela mesma.
O título indica o tema. No nosso caso, o título “À coisa ela mesma, a fenomenologia?” não indica propriamente um tema, mas antes uma hipótese. A hypothese na sua significação literal grega é o que está posto debaixo de, a base sobre a qual se ergue o que quer que seja. É, pois, o pré-jacente, que sustenta, e dá firmeza e concreção ao andamento à série de reflexões que seguem. No entanto, no nosso caso, o que deveria ser a base para dar firmeza e concreção ao andamento das nossas anotações, está acompanhado de uma interrogação. Isto significa que em todas as nossas anotações nos ficamos interrogando acerca do que o título insinua, a saber, que fenomenologia não é outra coisa do que à coisa ela mesma. Na Introdução foi dito que essas nossas anotações são chutações. O que o título insinua como tema com interrogação é uma hipótese, no sentido hodierno de suspeita. Só que no nosso caso a suspeita está no nível de chutação. Chutação é modo de abordar uma coisa, jogando verde para colher maduro. É esse modo de tratar a coisa da fenomenologia, “à la suspeita-chutação”, que toca as nossas anotações.
A seguir, coisa jogada como um lance prévio, nas nossas próximas anotações, é a suspeita de que nos termos que compõem a palavra fenomenologia, está dito o que quer dizer à coisa ela mesma. As palavras que compõem a palavra fenomenologia são fenômeno e logia. Assim, falemos do fenômeno, fenomenologia e lógos, do qual vem a logia.
- Fenômeno e sua implicação
Usualmente entendemos por fenômeno algo ou alguém, cujo ser ou atuação aparece num aspecto extraordinário. A esse aspecto, gostamos de chamar de fantástico[1]. Nas palavras fenômeno e fantástico aparece o verbo grego phainésthai, que significa aparecer. Aparecer é mostrar-se, vir à luz.
1.1. Fenômeno
É comum representar o aparecer como movimento de algo que estava escondido, atrás ou dentro de uma outra coisa, dela sair e vir para frente ou para fora.
O aparecer do fenômeno, no entanto, não diz respeito ao relacionamento entre duas coisas: entre a fachada e o que se oculta atrás dela. Refere-se antes à autoapresentação ou autopresentação ou à intensificação de uma presença. Nesse sentido é algo como luzir, incandescer. É tomar corpo, crescer no sentido da expressão cresça e apareça. É, pois, surgir, crescer e consumar-se, vindo a si, tornando-se presença. Para podermos ver melhor de que se trata quando falamos do fenômeno como autopresença ou intensificação de uma presença, examinemos brevemente o que Ser e Tempo nos diz da expressão grega phainómenon:
“A expressão grega phainómenon, à qual remonta o termo “fenômeno”, vem do verbo phaínesthai, que significa: mostrar-se; assim, phainómenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o próprio phaínesthai é uma forma medial do phaíno, trazer ao dia, colocar às claras; phaíno pertence à raiz pha– como phõs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visível. Portanto, devemos constatar como a significação da expressão “fenômeno”: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainómena, “fenômenos” são então a totalidade disso que jaz ao dia ou pode ser trazido à luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com ta ónta (o ente)”[2].
O verbo do qual deriva a expressão fenômeno é medial. Como em português não há a forma medial; phainómenon é traduzido ou no sentido passivo ou reflexivo: o mostrado, ou o que se mostra ou o em se mostrando. O modo de ser da ação do verbo medial não é nem ativo nem passivo. Não seria, porém, um meio termo, uma mistura meio a meio, neutra. Seria antes uma dinâmica toda própria, um médium atuante, anterior à divisão em disjunção ativa e passiva. Usualmente, quando falamos de ação e atuação, representamos alguém ou algo causando uma força sobre um alguém ou um algo. Assim quem causa uma ação e a própria força atuante são ativas; quem ou o que recebe, padece ou sofre a ação é passivo. Quando quem age (o ativo) atua sobre si mesmo (o passivo), se dá o reflexivo: o agente é ao mesmo tempo o paciente, mas, aqui, o agente enquanto ativo e o paciente enquanto passivo não coincidem. Aqui o ser da iteração entre ativo e passivo e reflexivo é de tal feitio que é sempre unidirecional, uma linha reta a modo de flecha. O modo de ser da ação do verbo medial não pode ser captado, reduzindo-o à unidirecionalidade de flecha na iteração ativo-passivo-reflexivo, mas captando-o, vendo-o a ele mesmo, de imediato. O que ali aparece de imediato é o que está dito na expressão: fenômeno, i. é, o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Outros modos de dizer esse imediato são: em vindo ao dia, à luz, em colocando-se às claras, em aparecendo ou aparente, em se abrindo, mostrando-se[3]. O abuso do gerúndio, na forma em <…>ndo, aqui, é de propósito. Tenta insistir na consideração de que é necessário captar esse modo de ser da ação medial sui generis nele mesmo. Esse captar imediato de ser da ação medial seria muito simples, por ser imediato e, imediato por ser simples. Só que o imediato e o simples não pode ser percebidos no seu ser, a não ser que a percepção, ou melhor, a recepção seja imediata e simples, a saber, pele a pele, de todo em todo, cada vez de uma vez. O modo medial de ser ação pede a captação imediata da realidade, antes da sua divisão e classificação em sujeito, objeto, ato, em ativo, passivo e reflexivo, de tal sorte que a ação ou ato é ‘anterior’ ao sujeito e objeto, é a dinâmica do todo, em sendo[4]. Ademais, aqui, o que nos pode dificultar a perceber de que se trata, é a conotação que todas essas expressões trazem consigo de visualização[5]. Aparecer, mostrar-se à luz, vir à claridade do dia, no entanto, não tem primariamente muito a ver com visualização. Aperceber o manifesto, o mostrado, a recepção do que é em se mostrando a ele mesmo, é anterior a toda e qualquer visualização. Visualização é a maneira projetiva da objetivação interpelativa, pela qual colocamos o fenômeno dentro de uma determinada perspectiva do inter-esse do ponto de vista.
Hoje, sujeitos e agentes operativos do modo de ser da objetivação interpelativa, não percebemos que o que nos vem ao encontro como objeto, coisa ‘em si’, ‘real’, não coincide com o que se mostra, ele mesmo, mas é algo como espectro do projeto do inter-esse de pontos de vista. Esse modo de ser chamado objetivação interpelativa é uma das modalidades da objetivação. Aqui, para percebermos de que se trata, quando falamos do fenômeno como o que se mostra, a ele mesmo, anteriormente a toda e qualquer visualização da objetivação interpelativa, hodierna, reflitamos um texto acerca do que seja objetivação.
1.2. Objetivação
O que é objetivação, objetivar? A esse respeito responde Heidegger numa carta de 11.03.1964, endereçada aos participantes de um diálogo teológico sobre O problema de um pensar e falar não objetivantes na teologia, hoje[6]: Objetivar
“é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar. E o que significa objeto? Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro, em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso, subiectum significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas[7]. A significação das palavras subiectum e obiectum é em comparação com a nossa usual hoje, justamente a inversa: subiectum é o para si (objetivamente) existente, obiectum, o apenas (subjetivamente) representado”.
“Em conseqüência da transformação do conceito de subiectum por Descartes (cf. Holzwege, p. 98ss), também o conceito de objeto veio a se transformar. Para Kant, objeto significa: o contra-posto[8] existente da experiência das ciências naturais. Cada objeto é o contra-posto, mas nem todo contra-posto (p. ex. a coisa em si) é um possível objeto. O imperativo categórico, o ter que ser ético, o dever não são objetos da experiência das ciências naturais. Pelo fato de se pensar sobre eles, de no agir serem eles intencionados, eles não se tornam por isso objetivados.”
Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso em que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”.
“Eu posso considerar esta estátua de Apolo no museu em Olímpia, quiçá, como um objeto das ciências naturais no seu representar. Posso calcular fisicamente o mármore em vista do seu peso; posso pesquisar o mármore em referência à sua propriedade química. Mas esse pensar e falar objetivantes não miram o Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus ”.
“Objetivar é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar”. Algo é aqui ente, no sentido o mais abrangente possível; indica todos os entes atuais e possíveis.
Fazer é exercer uma ação de efetuação, de efetivação, de tal sorte que ente se torne objeto. E colocá-lo, posicioná-lo como objeto. Assim, ente se põe de pé e se firma como objeto, e somente como tal se torna de novo presente, é representado, é apresentado. Aqui a palavra do texto original alemão é vorstellen. Vorstellen usualmente significa representar, apresentar. Literalmente, porém, diz: colocar em frente, para frente, diante de. E stellen é colocar, mas pode conotar ação de pôr alguém ou algo sob a coação de uma determinação. No uso corrente, objetivar pode significar também tornar objetivo, i. é, tornar real ou existente objetivamente, materializar ou efetivar, ou também ter por fim, pretender.
Diante dessas determinações acerca da objetivação, muitos de nós, tentaríamos entendê-las mais ou menos assim. Na realidade em si, diante, ao lado, ao redor de nós há coisas, produtos da natureza. Mas, usando essas coisas dadas pela natureza como materiais, o homem fabrica objetos, ou também, as posiciona, transformando-as em objetos para determinados fins do interesse humano. Objetivar aqui significa, então, objetificação, fazer do ente objeto, para um determinado fim, meta ou objetivo, dado pelo homem. Essa nossa compreensão da objetivação, embora esteja incluída na explicação do texto, não diz bem, o que ele quer dizer com objetivação e seu objeto.
Segundo o texto, o termo objeto (obiectum) se dá em dois modos diferentes. A diferença no modo de ser do obiectum também diferencia o que se deve entender por subiectum. O texto fala, pois da compreensão do obiectum e subiectum uma vez na Idade Média, e outra vez na nossa época Moderna.
- a) Na Idade Média obiectum significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. Em contraste com isso subiectum significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex. as coisas.
- b) Na nossa época Moderna a objetivação se caracteriza, num sentido inverso ao da Idade Média, em significar subiectum como o para si (objetivamente) existente, e obiectum como o apenas (subjetivamente) representado. Esse modo de entender tanto subiectum como obiectum é conseqüência da transformação do conceito de subiectum operada por Descartes. Na seqüência dessa transformação “para Kant objeto significa: o contra-posto existente da experiência das ciências naturais”.
1.3 Objeto, visto a partir da substância: objeto-coisa
Na Idade Média uma das categorias fundamentais para a compreensão do ente no todo era substância. A palavra substância é tradução latina do hypokeímenon grego. Aqui, objeto significava o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar. E correspondendo a essa compreensão do objeto, sujeito significava coisa-substância. A dinâmica de efetuação da coisa-substância, o subiectum medieval, com o correspondente obiectum medieval, a coisa, não poderia ser chamada propriamente de objetivação. Pois se reserva a palavra objetivação e objeto de preferência para a dinâmica de efetivação do subiectum do representar como sujeito e obiectum como o representado, na nossa época moderna. A efetivação coisa-substância tem como resultado coisa, ou substância. A coisa é diferente do objeto. E o homem, enquanto “recepção”[9] dessa efetivação coisa-substância e sua coisa, é diferente do homem, “sujeito e agente” da objetivação do objeto-representação. Desta última se diz portanto: objetivar “é fazer algo objeto, pô-lo como objeto e somente assim o representar”.
Como, pois, entender essa definição da ação de objetivação e seu objeto-coisa e o homem que se acha nessa referência ao objeto-coisa? Provavelmente todos os termos da definição receberão sua peculiaridade toda própria, bem diferente à da objetivação do objeto-representação. Mas em que sentido e como?
1.4 Objeto, visto a partir do sujeito: objeto-representação
Nesse texto, o que corresponderia ao fenômeno, o manifesto, o em se mostrando a ele mesmo, o ‘aparecido em aparecendo’ no sentido medial? A tentação é de responder: o que está além ou aquém de toda e qualquer objetivação. Seria então: o ser rubro da rosa? O Apolo, como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus? ‘Isto’, esse ‘algo’ que não é nem isto nem aquilo, isto que não é, e nem está em nenhum algo, a saber, nem no jardim, nem na rosa que balança de lá para cá e de cá para lá, nem na estátua de mármore, é isto a manifestação, o aparecer, a mira, a maravilha, o transluzir, que está insinuado, quando Heidegger formula o aparecer do Apolo, o fenômeno Apolo, dizendo: como ele se mostra na sua beleza e nela aparece como a mira de Deus? Mas em que sentido insinuado? É que a palavra alemã, para a beleza, é Schönheit. Schönheit vem do verbo scheinen. Scheinen significa parecer. Mas essa acepção já é algo derivado[10]. Originalmente significa luzir, esplender, brilhar. Por isso phaínesthai é dito como trazer ao dia, vir à luz, colocar-se às claras. Daí a referência do fenômeno à claridade, à luz. Só que essa referência à luz e à claridade deve ser captada de modo todo próprio e não a grosso modo ou ao modo de “de-mostração berrante”, extrovertida da exibição à luz néon, fria, branca, escancarada, sem nuances de sombra. Não se trata também de uma iluminação, feita de fora sobre uma coisa. O modo de mostração do scheinen é algo como transluzir a modo de incandescência. É uma aclaração, o tomar corpo como claridade[11]. É o modo de aparecer do luar. Mas não no sentido de a lua como uma lâmpada a brilhar aparecer, saindo de trás de um monte e iluminar. Antes como clarear. Para ver o clarear como transluzir, como incandescência, é necessário, por assim dizer, suspender a tendência do nosso saber de tudo enfocar a partir e dentro de uma explicação causal. Nessa última perspectiva da explicação, a lua, o satélite do planeta terra, ao refletir a luz do sol, é causa de iluminação de uma área escura da terra. Em vez desse modo de ver, ‘real e objetivo’, tentemos ver de imediato, digamos ingenuamente, atentos ao crescer da claridade de toda a paisagem enluarada, a que chamaremos de luar. Reina escuridão. A escuridão, antes do luar a clarear, p. ex. numa floresta, não é simplesmente o fato de tudo estar preto; não é apenas ocorrência da falta de luz!… Ela é uma paisagem. Sim um país, um reino, prenhe de perspectivas, planos de presenças de fundo e de superfície, nuances da intensidade e das modalidades de escuridão. A nossa representação da escuridão achata essa paisagem de implicações da multi-diversidade da escuridão numa chapa preta homogênea sem nuance e diferenciação ou como superfície de cor preta ou simples ausência da luz. Assim, a nossa representação da escuridão é como a primeira impressão de alguém que entra de dia, numa sala de cinema, e capta o choque da ausência da luz, de sorte que vê tudo preto. Na medida em que o nosso olho vai se adaptando à escuridão, começam a surgir e nos vir de encontro perspectivas, profundidades, silhuetas, perfis, assombreamentos, constelações de diversas pessoas e coisas, enfim toda uma paisagem. Se permanecermos na fixação da representação, por mais que multipliquemos as representações na sua diversidade, jamais percebemos o surgir, crescer e se firmar na dinâmica do todo de tal paisagem da escuridão. No aclarar do luar o modo de ser e a lógica de sua estruturação são os desse surgir, crescer e se consumar. Nesse sentido, toda a paisagem que se torna cada vez mais clara emerge da escuridão que por sua vez possui a sua emergência a partir e dentro da sua própria paisagem da escuridão como acima foi insinuado. Esse movimento do vir a si e o tomar corpo desse e nesse crescimento ou aumento é o fenômeno, o aparecer, o se mostrar ele mesmo. A dinâmica desse aparecer, o tomar corpo do aumento desse crescer se diz em latim através do verbo latino: evideri. Do qual deriva a palavra evidentia, a evidência. O fenômeno é o que se evidencia, a partir de si, a ele mesmo.
Depois dessa descrição do que seja fenômeno, aparecimento, perguntemos: o que significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno?
1.5 Fenômeno e objeto
Acima, à mão do texto de Heidegger, ao falarmos da objetivação e do objeto, distinguimos suas diferentes significações e percebemos diferentes níveis de colocação da questão. Aqui em 2.3, aprofundemos a nossa compreensão do que seja coisa e coisalidade, retomando diferenças de significação sugeridas pelas diferentes palavras na língua alemã em referência à coisa. E nessa retomada da nossa busca pela compreensão do que seja coisa, tentemos responder a pergunta acima colocada: o que significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno. Antes, porém, observemos e comentemos no texto acima citado de Heidegger alguns pontos de importância para o prosseguimento da nossa reflexão.
Repetindo: “Na Idade Média, afirma ele, em contraste com isso, subiectum significava o hipokeímenon, o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex., as coisas”. Aqui, Heidegger usa o termo latino obiectum. E usa a palavra latina subiectum para dizer o grego hipokeímenon, o qual caracteriza como o prejacente a partir de si (não o que é levado de encontro através de um representar), o presente, p. ex., as coisas.[12] Essa compreensão é medieval. Na seqüência do texto, ao caracterizar a compreensão do objeto na nossa época moderna, Heidegger afirma que ela é determinada pela transformação da compreensão do subiectum através de Descartes. Aqui, obiectum significa o contra-posto existente da experiência das ciências naturais. A esse tipo de contra-posto, se dá o nome de Objekt em alemão. E o distingue do outro tipo de contra-posto, em alemão Gegenstand. Este é caracterizado como um algo tematicamente representado.
Depois dessas observações, voltemos ao texto onde Heidegger caracteriza o obiectum medieval em contraposição ao subiectum, enquanto tradução do hipokeimenon, portanto, da substância, no sentido medieval. Que coisa é essa?
Na Idade Média, obiectum significa o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar.
Na Idade Moderna, Objekt é o contra-posto como tema do enfoque das ciências naturais. E Gegenstand é algo tematicamente representado (Vollgestellte). Haveria uma diferença decisiva entre “o contra-posto tematicamente representado” e “o lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar?
Usualmente não vemos nenhuma diferença essencial entre esses dois tipos de contra-postos. Pois entendemos a contra-postatização (Vergegenständlichung) num sentido geral de oposição entre Sujeito-Objeto, no esquema do juízo S – P da Teoria do conhecimento. Segundo Heidegger, no entanto, a grande diferença que advém à compreensão do que seja obiectum, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, é causada pela transformação operada na época moderna (Descartes) na compreensão do que seja subiectum. Subiectum na Idade Média é substância. Subiectum na Idade Moderna é sujeito. O que significa tudo isso? Tudo isso, de que se trata?
Em vez de tentar logo responder a essa pergunta, diferenciemos mais ainda a colocação, observando o que diz Heidegger a mais acerca dessa questão da objetivação e do objeto na experiência cotidiana. Repitamos na íntegra o que ele diz: “A experiência cotidiana das coisas no sentido lato não é nem objetivante nem é uma contra-postatização[13]. Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”.
1.6 Fenômeno e o representar
Heidegger, no texto acima mencionado, diz do Gegenstand que ele é “o contra-posto tematicamente representado”. E ao falar do obiectum no sentido medieval, diz que é: “o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar”. E perguntamos acima se há diferença, e se houver qual seria, entre “o contra-posto tematicamente representado” e “o que é lançado e mantido de encontro em face do aperceber, da imaginação, do julgar, desejar e mirar?” Essa pergunta, no fundo, pressupõe na sua pergunta que representar (vorstellen) é um ato semelhante ao aperceber, imaginar, julgar, desejar e mirar. Só que em alemão a palavra vorstellen pode ser lida como indicando um dos atos, ao lado deles, denominado representar, mas também na sua acepção literal de vor + stellen, sugerindo todo um modo de ser. Mas em que sentido? Vorstellen, literalmente, não significa propriamente re-presentar, mas antes uma modalidade toda própria de “contra-pôr”. É que vor significa diante, em frente de, para frente, avançando para frente. E stellen pôr, colocar na acepção da expressão: “pôr na parede”, “interpelar”, “colocar a alguém debaixo de uma exigência”, “intimar a alguém a um interrogatório”. É nesse sentido do stellen que se diz: o policial colocou o criminoso diante de si, na parede, em nome da lei, e o intimou: estás preso!” É o que assim aparece diante de nós, o contra-posto, o Vor-gestellte. É o que poderíamos denominar de ação da pro-ducção interpelativa, entendendo-se a produção como trazer, conduzir para frente, pro-ducere: projetar. E objetivar no sentido da pro-ducção do Objekt tem o modo de ser do vor-stellen todo próprio das ciências naturais, físico-matemáticas. Haveria aqui um vor-stellen, cuja projeção poderia ser chamada de Vergegenständlichung, a saber, uma objetivação cuja pro-dução não é propriamente Objekt, mas sim Gegenstand? P. ex. objeto das ciências humanas, cujo caráter não possui o modo de interpelação produtiva das ciências naturais? Ou toda e qualquer ciências no sentido moderno, seja naturais, seja humanas, de alguma forma, possui o modo de ser da interpelação produtiva, própria das ciências naturais? E que na Idade Média, seja como for o objeto, jamais teria o caráter de Objekt, mas sempre de Gegenstand, mas em que sentido? Num sentido geral, ou todo próprio, caracterizado pelo sentido do ser que marca a diferença da epocalidade medieval?
E em que consiste a realidade da dimensão da experiência cotidiana mencionada por Heidegger “das coisas no sentido lato” que “não é nem objetivante, nem é uma contra-postatização (Vergegenständlichung)? Como entender em concreto a descrição: “Quando p. ex. estamos sentados no jardim e nos regozijamos diante das rosas floridas, não fazemos da rosa um objeto, nem sequer um contra-posto, i. é, um algo tematicamente representado. Quando, pois, na fala silente estou devotado ao rubro esplendor da rosa e sigo no pensar ao ser rubro da rosa, esse ser rubro não é nem objeto, nem coisa, nem um contra-posto como rosa a florir. A rosa está no jardim, balança talvez ao sabor do vento. O ser rubro da rosa, porém, não está nem no jardim, nem pode balançar ao sabor do vento. Entrementes, eu o penso e dele falo, nisso que eu o nomeio. Assim, se dá um pensar e falar, que de nenhum modo objetiva nem contra-põe”. Aqui a “rosa a florir sem porque”[14] não é Objekt, nem Gegenstand, mas que tipo de coisa é? Ou aqui não se pode mais falar de tipo, mas apenas de coisa ela mesma? Mas em que sentido?
- O que significa objeto e objetivação em referência ao fenômeno?
Depois dessas anotações interrogativas do excurso, à mão do acima citado texto de Heidegger sobre a objetivação, observamos a diferença de impostação na compreensão da realidade entre a Idade Média e Idade Moderna. A diferença provinha da realização da realidade, a partir, dentro e através da pré-compreensão do que seja o ente na sua totalidade ou melhor o ente no seu ser, fundamentada na categoria de fundo chamado substância (originariamente, i. é, em grego, hypokeímenon) na Idade Média e a sua substituição, ou melhor, transmutação dessa categoria de fundo-substância em sujeito da subjetividade, cuja objetividade produz o objeto. Essa nova realização da realidade, essa nova pré-compreensão do ente na sua totalidade, abriu a possibilidade da exigência de colocar a pergunta acerca da coisa e sua coisalidade, portanto, da questão da coisa ela mesma dentro de uma nova perspectiva, na qual a coisa na sua coisalidade é entendida dentro da objetivação e sua objetividade, como coisa, i. é, causa da produção da “realidade”, enquanto objeto, i. é, enquanto o que vem ao encontro como resultado do lance do projeto do homem, sujeito e agente e medida de todas as coisas. Nesse sentido, hoje, quando usamos o termo coisa e seus similares como algo, objeto, ente, ser, em alemão Gegenstand, Ding, Sache, de imediato e na maioria dos casos, pensamos objeto, segundo o projeto da interpelação produtiva impregnada da dinâmica das ciências naturais sob o poder da tecnologia, portanto pensamos Objekt, e a partir dali nos indagamos: como é, o que é, a realização da realidade p. ex. dos medievais, onde a realitas significava substância e seus acidentes, em cuja coisalidade ainda podemos ouvir a tonância do hypokeímenon da antiga Grécia, cuja percussão originária tenha sido talvez bem diferente da que ouvimos hoje na repercussão medieval e repercussão dessa na nossa modernidade na perspectiva da objetividade do “Objekt” da Subjetividade científico-tecnológico. Essa questão então no texto de Heidegger aparece formulada no aceno, através do qual nos surgem as perguntas: em que consiste a realização da realidade, que é anterior a todas essas objetivações epocais? Como se deve entender essa anterioridade e a sua temporalidade, se o tempo da história dessa transmutação da causa da coisa ela mesma é medida e é produzid, pela interpelação produtiva presente de modo quase totalitário na impostação da predominância das ciências e tecnologias historiográficas, produtos da mesma interpelação produtiva acima mencionada, como objetos do projeto da subjetividade moderna?
2.1 Emaranhados na questão chamada coisa da fenomenologia
Repetindo resumidamente o que dissemos da coisa como do objeto temos: 1. obiectum e subiectum da Idade Média; 2. a transformação do conceito subiectum enquanto substância para sujeito; 3. Objekt; e 4. Gegenstand como contra-postos de tipos diferentes tematicamente, do representar, em alemão, do vorstellen; 5. coisas cujo ser não é nem a modo de Objekt, nem a de Gegenstand, mas do aparecer, do se mostrar, do fenômeno. Se agora ligarmos esses itens acima resumidos com o que foi rapidamente dito no 2.3 acerca da objetivação e suas implicâncias, de repente, ou aos poucos, surge uma suspeita: quando a cima, sempre ainda provisoriamente, ao falarmos da coisa e coisalidade, enumeramos em alemão os termos afins à coisa, a saber, etwas (algo), das Seiende (ente), das Sein (ser), der Gegenstand (o contra-posto), das Objekt (objeto), das Ding (coisa), die Sache (coisa) não estávamos a nos adentrar dentro das implicações complexas de uma questão filosófica, cuja busca é o inter-esse e a paixão do modo de ser e pensar denominado fenomenológico? Agora, o título desse presente trabalho “O que é a coisa ela mesma, na fenomenologia” soa tanto mais complexo a nos oprimir para dentro de sentimento de complexo, de angústia e de fascínio, mencionado na introdução. O que é, pois, fenomenologia?
- Fenomenologia, logos e –logia, suas traduções
3.1. O que quer dizer logos?
Sem querer aqui aprofundar muito o assunto, mencionemos brevemente o que e como se deve entender por logia, da palavra fenomenologia, segundo o que Heidegger expõe. Resumamos assim o § 7. B (O conceito de Logos) do Ser e Tempo, pg. 32-34: O conceito de logos é múltiplo; nele as diversas significações parecem tender para diversas direções sem congruência, enquanto não conseguirmos captar de modo próprio o seu sentido fundamental, uno no seu conteúdo primário, originário grego. É usual dizer que logos significa fala. Essa tradução é somente válida, na medida em que nessa tradução literal, a nossa compreensão atual consiga ouvir e entoar a tonância disso que logos ele mesmo como fala propriamente quer dizer. As múltiplas e arbitrárias traduções provenientes de uma interpretação das filosofias posteriores entulham e encobrem o sentido próprio do que seja a fala, que nos gregos está à luz do dia, simples e claramente. Essas traduções defasadas e impróprias seriam p. ex., razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação. Traduz-se logos também como sentença, enunciação, discurso. Mas se entendermos todos esses termos como juízo, e o juízo como ligação (entre S e P ou S e O) ou tomada de posição (o reconhecer e o rejeitar da ligação), tudo isso dentro da assim chamada “teoria do juízo”, pertencente à teoria de conhecimento, falseamos o sentido próprio e fundamental da palavra logos.
Assim, segundo Heidegger, lógos como fala diz antes de tudo delõun, fazer patente, isto do qual na fala “vem à fala”. Aristóteles explicitou essa função da fala com maior acuidade como apophaínesthai[15]. Logos deixa ver (phaínesthai) algo, a saber, isto, sobre o qual é a fala e quiçá para o falante (Médium), respectivamente, para os falantes uns com outros, mutuamente. A fala
deixa ver apò… a partir disso mesmo do que é a fala. Na fala (apóphansis), na medida em que ela é autêntica, isto que é falado deve ser exaurido, a partir disso sobre o que se fala, de tal modo que a transmissão falante no seu falado faz patente isso sobre o que se fala e assim o faz acessível ao outro. Esta é a estrutura do logos como apóphansis. Não se apropria a cada “fala” esse modo do fazer patente no sentido do deixar ver manifestante. O pedido (euché) p.ex.faz também patente, mas num outro modo.
Na sua realização concreta esse deixar ver acontece como sonorização em palavras. Assim, logos é “phonè metà phantasie”, i. é, sonorização vocal, na qual cada vez algo se mostra. É essa função de apóphansis, o logos que faz com que ele tenha a estrutura de sýnthesis. Síntese não tem aqui o significado de ligar e atar representações, lidar com ocorrências psíquicas, fazer com que haja concordância da vivência psíquica interna com o seu corresponde exterior etc. “O syn aqui tem a significação apophântica e quer dizer: deixar ver algo no seu ser-junto-com algo como algo”. Como deixar-ver, logos pode ser verdadeiro ou falso, não, porém, na acepção da verdade como adequação, concordância, do juízo como o lugar da verdade. A definição da verdade como adaequatio rei et intellectus não nos conduz à intuição originária da captação do que seja primariamente a verdade, que em grego se diz alétheia.
“O “ser verdadeiro” do logos como aletheúein diz: recolher do seu velamento o ente, do qual é a fala, no légein como apophaínesthai e deixá-lo ver como desvelado (alethés), descobrir”. “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do que o mencionado logos é a aísthesis, o singelo colher sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver as cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido”verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”.
E explicando porque, dessa compreensão direta e simples do logos, surgiram traduções de logos como mente (Vernunft), ratio (razão), fundamento, relação, Heidegger conclui a sua exposição, dizendo: “E porque a função do logos está no singelo deixar ver de algo, no deixar colher (Vernehmen) do ente, logos pode significar mente (Vernunft). E porque de novo logos é usado não somente na significação de légein, mas ao mesmo tempo na do legómenon, a saber, o mostrado como tal, e porque este não é outra coisa do que o hypokeímenon, a saber, o que jaz no fundo ocorrendo para toda abordagem e toda consideração, logos enquanto legómenon diz também fundo, fundamento, ratio. E finalmente, porque logos enquanto legómenon pode significar: isto que como algo abordado, se tornou visível na sua relação para com outro, no seu ser “relacionado” logos recebe a significação de Relação e referência”.
Não vamos agora nem comentar, nem analisar mais a fundo esse texto acima exposto. Tudo isso o faremos no decorrer dos seguintes capítulos, mais indiretamente do que tematicamente, embora examinaremos também tematicamente o texto em questão.
3.2. Logos e aisthesis: a Wahrnehmung
Aqui, por enquanto, apenas destaquemos um ponto que será de importância para o seguinte capítulo. O ponto a ser destacado se resume na seguinte frase acima citada: “Verdadeiro” nesse sentido grego originário, “e quiçá num sentido mais originário do que o mencionado logos é a aísthesis, o singelo colher sensível de algo. Na medida em que uma aísthesis cada vez é afim à sua ídia, i. é, ao ente cada vez genuinamente apenas acessível através dela e para ela, p. ex. o ver as cores, é assim o colher sempre verdadeiro. Isto quer dizer: ver descobre sempre cores, ouvir descobre sempre tons. No mais puro e no mais originário sentido” verdadeiro” – i. é, apenas em descobrindo, assim que jamais pode encobrir, é o puro noêin, o colher singelamente mirante das tonâncias do ser, as mais simples do ente como tal. Esse noêin jamais pode ser encobrir, jamais ser falso, pode aliás permanecer um não-colher, agnoêin, um não suficiente para um singelo, apropriado acesso”. A importância desse texto destacado para a nossa compreensão da fenomenologia é que nesse texto breve está dito o que e como devemos entender aquilo que constitui a essência da mostração, o ser da presença corpo a corpo da coisa ela mesma, da evidência do ser que recebeu o nome de “Wahr-nehmung”, e que muitas vezes em certas exposições ligeiras da fenomenologia é de alguma forma identificada com a apreensão sensível dentro do esquema de oposição, tradicional: mundo sensível e mundo inteligível. O nosso inter-esse jaz na identificação que é insinuada no texto acima mencionado entre aisthesis, lógos e nõus como o límpido, puro deixar ver, como o colhimento do alethéuein.
Resumamos brevemente os vários momentos de nossa reflexão até agora. Seguindo a seqüência das palavras que constituem o título do trabalho “O que é a coisa ela mesma, na fenomenologia” tateamos, num modo bastante provisório: 1. várias significações da palavra coisa e similares, tentando observar que elas apresentam variações e diferenças de nuance no modo de ser da intensidade do horizonte ou de mundidade, a partir e dentro da qual faz aparecer o ente no seu ser; 2. a significação do que seja fenômeno, seguindo as insinuações da palavra fenômeno, em grego phainómenon, phaínesthai como o mostrar-se de algo ele mesmo como autopresentificação; 3. e mencionamos algumas implicações da terminação –logia, da palavra fenomenologia, citando a breve exposição de Heidegger acerca de logos, na sua interpretação toda própria.
3.3. Fenomenologia
Depois de tudo isso, concluamos esse capítulo, citando como uma compreensão ainda provisória, o significado da fenomenologia no Ser e Tempo:
Tornando concretamente presente o que resultou da interpretação de ‘fenômeno’ e ‘logos’, salta aos olhos uma referência interna entre o que é pensado com essas palavras. A expressão Fenomenologia deixa-se formular gregamente: légein ta phainómena; légein diz, porém apophaínesthai. Assim Fenomenologia diz: apophaínesthai tà phainómena: deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo. Este é o sentido formal da pesquisa, que se dá a si mesmo o nome de fenomenologia. Com isso, porém, é expressa nada mais, a não ser a máxima, acima formulado como: Zur Sache selbst, i. é, “À coisa ela mesma.
Assim chegamos à conclusão, ainda que provisória: a convocação que está na palavra fenomenologia, enquanto deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo é expresso numa outra formulação: à coisa ela mesma (Zur Sache selbst!). Diante dessa convocação, porém, segundo o título da nossa reflexão perguntemos, em repetição: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo? Dito com outras palavras: O que é fenomenologia? Ou ainda numa outra formulação: O que é à coisa ela mesma?
Com essa pergunta retomada do título, não repetimos a pergunta. Antes a trocamos com uma outra pergunta: Da pergunta “O que é a coisa ela mesma, na fenomenologia” passamos a perguntar: “O que é à coisa ela mesma, na fenomenologia”. E porque, como acima foi mencionado, à coisa ela mesma é o mesmo que fenomenologia; e porque fenomenologia diz deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo, a interrogação o que é fenomenologia agora pergunta: O que é deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo?
A pergunta que tinha por ‘objeto’ a coisa, agora tem por objeto “deixar ver”, portanto um ato do sujeito homem. E formula o seu interrogatório: o que é?…A pergunta cujo feitio tem a forma de o que é? chama-se pergunta essencial ou pela essência, ou pelo ser do ente e pelo ente do ser que está em jogo. Assim a pergunta, ao submeter um objeto ao seu interrogar, o coloca como um “que” e indaga acerca do seu ser. Assim, a pergunta tem diante de si um “quê”, um ente, interrogado pelo seu ser. Ente e Ser, ente no Ser e Ser no ente. E a pergunta, ela mesma, pode se virar sobre si mesma e também se colocar como um “que”, como um ente e se interrogar no seu ser.
Isto significa, porém que ao iniciarmos a reflexão intitulando-a O que é coisa ela mesma, na Fenomenologia?, a própria colocação inicial já estava determinada a posicionar o que quer que fosse, o que ela tocava na sua interrogação, como ente interrogando-o no seu ser.
3.4. Fenomenologia como questão do sentido do ser[16]
A pergunta que interroga o ente no seu ser se chama questão do sentido do ser. Questão significa busca.
Segundo Ser e Tempo, §2 (A estrutura formal da pergunta pelo ser), numa busca temos o que buscamos. O que buscamos é o ser, ou melhor, o sentido do ser. Sentido do ser não encontramos como isso ou aquilo, não como algo, como ente, como objeto, como o contra-posto, seja ele de que feitio for, não como coisa-Ding, coisa-Sache. Tudo isso que nomeamos como termos indicativos afins ao ente, que aparecem como coisas de infinitas variações, nuances e diferenciações, são como que lugares, situações, a partir e dentro das quais a busca procura o seu buscado, o Ser, submetendo o respectivo ente sob o interrogatório acerca do seu ser. Essa situação da busca se perfaz numa estruturação de colocação bipolar, na qual num dos pólos se acha o interrogante com o seu interrogatório e no outro o interrogado como ente-objeto, contraposto ao quem interroga. Surge assim uma interação, um intercâmbio de dois tipos de ente, denominados usualmente como sujeito e objeto[17]. Esta estruturação pode se dar em diferentes complexidades de interação, e em interpretações diferenciadas, mas como tal, por assim dizer estatui o modo de agir e ser do que denominamos conhecimento, cuja estruturação está baseada na definição tradicional da verdade como adequação da coisa e do intelecto[18], cuja esquematização se fixa como relação S – O, refletido na fala lógica como S-P, i. é, conhecimento como juízo. Essa fixação é algo como redução da questão do sentido do ser à estrutura da teoria do conhecimento, insuficiente para levar à consumação à busca, na sua radicalidade. Assim substitui-se por doutrina e teoria dogmatizada do conhecimento, a questão do sentido do ser que se perfaz como busca do sentido do ser na situação do ente submetido ao interrogatório acerca do seu ser, a partir e dentro do qual pode emergir o vir à fala do ser no seu sentido, não como ente, como algo, não como algo-sujeito, nem como algo-objeto, nem como algo comum de dois, mas como pregnância de uma presença toda própria como ente-no-ser e ser-no-ente.
A fenomenologia como deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo é a tentativa de fazer retornar a busca da verdade enquanto questão do sentido do ser, libertando-a desse aprisionamento impróprio da sua essência dentro da camisa de força da teoria do conhecimento, a convocando à volta para coisa a ela mesma, i. é, à causa ela mesma da sua dinâmica, evocada na própria expressão fenomenologia , i.é, deixar ver de si mesmo o que se mostra assim como ele se mostra, a partir dele mesmo: o delõun.