No ano sabático que viveria na Itália em 2018, o jornalista Edison Veiga decidiu escrever um livro sobre Santo Antônio que não ficasse somente na pesquisa, mas fosse resultado das andanças suas pelos lugares que o santo franciscano percorreu.
Desse trabalho, nasceu “Santo Antônio – A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil”, publicado pela Editora Planeta. A nova obra sobre o santo levou o Vigário Provincial, Frei Gustavo Medella, a fazer um convite ao jornalista para o segundo programa do Convento Santo Antônio do Rio de Janeiro, “Santo Antônio in LIVE”, transmitido ontem à noite pelo YouTube do Convento, sua página do Facebook e também pelo Facebook da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Esse encontro de ontem teve a presença de Róger Brunorio, frade que reside no Convento e é curador provincial dos bens culturais.
Frei Medella lembrou que no horário das 20 horas do Brasil, quando teve início o programa, na Eslovênia, onde reside Edison, era 1 hora da madrugada de hoje. Edison agradeceu pelo convite. “É sempre um prazer estar falando sobre o meu trabalho, minhas pesquisas e sobre esse santo que é tão querido: Santo Antônio”, disse.
Edison é natural da cidade de Taquarituba (SP), onde nasceu em 1984. Escritor e jornalista, trabalhou na revista “Veja São Paulo” e no jornal “O Estado de S. Paulo”. A partir de 2018, passou a colaborar com veículos como “Deutsche Welle”, “BBC”, “Radio France Internationale”, “O Estado de S. Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “UOL”, entre outros. Além deste, já publicou sete livros. Atualmente, mora em Bled, na Eslovênia.
Frei Medella iniciou o bate-papo lembrando que no título do seu livro diz: “A história do intelectual português que se chamava Fernando”. Segundo o frade, aí está a primeira informação importante: Santo Antônio não foi batizado Antônio, mas Fernando. “Eu queria pedir a você que apresentasse a nós um pouco da família, do menino, cujo nome completo era Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo”, disse Frei Medella.
“Isso mesmo. Acho que o primeiro grande desafio quando coloquei no papel que queria escrever uma biografia de Santo Antônio era tentar me munir o máximo de informações documentais. Eu revirei diversos arquivos, andei muito pela Itália. Eu queria encontrar documentos e registros para gente conseguir dizer quem foi o ser humano Antônio antes do santo. E é muito difícil isso porque a gente está falando de quem viveu há 800 anos. A própria organização dos países era diferente, os registros eram muito parcos. Eram sociedades praticamente ainda iletradas. Pouca gente era letrada e uma prova dessas inconsistências está na própria data de nascimento. Não existe um registro que diga o ano que ele nasceu. A tradição consagrou o ano de 1195. Se você buscar informações no Museu Santo Antônio, em Lisboa, há informação de 1195, mas o próprio museu também traz a informação de 1191 e exames antropométricos, realizados nos anos 80, concluíram que os restos mortais atribuídos a ele, que estão na Basílica de Pádua, são de um homem na faixa dos 40 anos. Como nós sabemos que ele morreu dia 13 de junho de 1231 – e isso, sim, está bem documentado, inclusive com relatos dos franciscanos daquela época -, imaginamos que ele tenha nascido mesmo por volta de 1190 e não 1195. Acho que é a primeira inconsistência histórica”, explicou o jornalista.
Sobre o nome Fernando, Edison contou que existem muitos registros ao longo da vida dele. “Muito possivelmente com todo esse nome completo, Fernando Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo, já indicava que ele era de uma família de posses, uma família da elite lisboeta, porque o próprio fato de ter sobrenome naquela época era um indicativo de uma família importante e fazia questão de registrar esse sobrenome. Alguém com vários sobrenomes como ele já é um indício muito forte. Aí sobre os pais dele, a gente não sabe muito. É muito mais uma questão de tradição do que comprovação. Mas se acredita que o pai dele era Martim de Bulhões e a mãe Teresa Taveira de Azevedo e que seriam, sim, de posses. Há quem diga que o pai chegou a ser prefeito de Lisboa. Mas o que sabemos pelo próprio legado que Santo Antônio deixou é que ele foi alfabetizado desde pequeno. Ele teve acesso aos estudos, o que indica uma infância mais abastada. E, de certa forma, da infância dele não sabemos mais do que isso. Tem um capítulo no meu livro que eu busco trazer elementos da infância, mas é muito mais uma soma de lendas que a tradição perpetuou do que de registros históricos de fatos”, observou.
A mudança de nome acontece, segundo o jornalista, por causa de uma tradição religiosa, que muitas ordens religiosas conservam. “Se a gente parar para pensar, é uma tradição que até o Papa traz de uma maneira muito simbólica, que é quando você assume uma função religiosa e se consagra à vida religiosa. Assumir uma nova identidade tem esse significado de deixar aquele passado mundano para trás e você reiniciar uma nova vida. Tem esse sentido de iniciação mesmo. Mas, no caso dele, é um pouco curioso esse percurso. Sabemos que Santo Antônio foi um frade franciscano, mas antes ele chegou a ser agostiniano, da Ordem dos Cônegos Regrantes. Isso porque ali, ao longo da adolescência quando foi despertada a vocação religiosa, o primeiro convento que ele buscou foi o Convento São Vicente de Fora, em Lisboa, dos agostinianos. Isso tem registros. É quando começam os registros documentais. Se você buscar nos arquivos da Torre do Tombo, que é o famoso arquivo português, lá tem um registro muito lacônico com uma frase dizendo: ‘Em 1210, professou em São Vicente aquele que viria a ser o Santo Antônio de Lisboa’. Ou seja, sabemos que ele, então, entrou nessa Ordem em 1210 e se tornou religioso, mas ainda com o nome de Fernando. Mais uma vez aparece essa questão da data de nascimento dele porque se essa informação do primeiro registro dele era 1210, se ele tivesse realmente nascido em 1195, ele teria entrado para a vida religiosa com 14 ou 15 anos. E há muitos registros na época mostrando que os agostinianos costumavam receber jovens um pouco mais velhos, já na faixa dos 20 anos. Tudo bem, poderia ser um entendimento de um jovem prodígio ou ser uma verdadeira discrepância com a verdadeira data de nascimento dele. Mas o que aconteceu é que ele entrou para os agostinianos e se tornou um cônego regrante. Mas essa primeira vivência perto de Lisboa, depois ao longo da vida ele iria contar que não foi algo que esperava. Ele passou a se queixar muito que não conseguia se desconectar da vida mundana, porque toda semana familiares e amigos iam visitá-lo e ele acabava não se desligando dos problemas que não queria como religioso. As questões familiares eram trazidas, como a resistência do pai dele a essa vocação e isso estava à tona ainda. Ele conseguiu convencer os superiores a ser transferido para Coimbra, que tudo indica foi no início de 1212. Em Coimbra, ele foi para o Mosteiro de Santa Cruz, que é a mais antiga instituição dos regrantes em Portugal. Aí foi realmente quando ele se formou intelectualmente, porque, na época, Coimbra era a capital de Portugal e não Lisboa. Isso justifica porque Coimbra tem esse peso intelectualizado, universitário e dessa questão acadêmica. O Mosteiro de Santa Cruz já era, na época, uma referência intelectual. Ele contava então com biblioteca completa, não só de teologia e estudos religiosos, mas também de ciências, astrologia, medicina, matemática, gramática e o jovem Fernando mergulhou nisso. Tanto que o Papa Gregório disse que ele entrou em Coimbra para se tornar sacerdote e saiu de lá para se tornar Doutor, porque fez um percurso intelectual invejável”, contou o escritor.
Para Edison, a identidade que ele assumiu aconteceu quando Santo Antônio já estava alguns anos em Coimbra. “Um grupo de frades franciscanos italianos – vamos lembrar que era uma Ordem recém-criada, São Francisco ainda era vivo – estava na região de Coimbra. Eles chegaram a fundar em Coimbra um conventinho, muito pobre, muito simples como a Ordem Franciscana prega. E, nesse conventinho, eles tinham uma estrutura mendicante. Eles costumavam bater com frequência no Mosteiro de Santa Cruz pedindo alimentos, pedindo alguma ajuda justamente para sobreviver. Muitas vezes quem atendia essa porta é o jovem Fernando, escalado para ser o porteiro do Mosteiro. E ele passou a se encantar com aquela vida. Seria muito mais interessante ter uma vida missionária. Eles contavam para ele sobre as Missões que eles tinham feito no Norte da África, na Espanha, e o jovem Fernando disse um dia: ‘Minha vida não vai ser nesse claustro em meio a esses livros. Eu quero pregar pelo mundo. Eu estou pronto para isso’. Se foi difícil a transferência de Lisboa para Coimbra, imagine a transferência de uma Ordem religiosa para outra. Vocês, que são religiosos, sabem do voto de estabilidade e dizem que foi uma grande negociação, por sorte um desses franciscanos, Frei Giovanni Parente, traduzido muitas vezes como Frei João Parente, tinha uma formação equivalente a de um advogado na época e dizem que ele fez toda a fundamentação, dizendo que na verdade Fernando era um franciscano com trajes de agostiniano. Ele não era um agostiniano de verdade. Aí conseguiram convencer seu superior e, num belo dia, os irmãos franciscanos já levaram o hábito franciscano para ele se trocar e sair do convento. E, a partir de então, ele assumiu e viu que era necessário nessa vida missionária ter uma nova identidade. Ele não era mais Fernando, filho de um nobre português. Ele deixava para trás esse passado de posses para se tornar um pobre franciscano e sentiu a necessidade de assumir um novo nome, tornando-se Antônio”, detalhou.
Sobre a personalidade do santo, segundo o jornalista, da época há registros muito mais literários do que históricos, do que jornalísticos. “O que dá para perceber da personalidade dele é de alguém muito carismático na comunicação, alguém com muita facilidade de comunicação. Claramente, ele conseguia, como intelectual que era, traduzir essas coisas de forma simples. Eu acho até que aquele milagre do sermão aos peixes, muito famoso no começo da trajetória na Itália, ilustra muito bem isso. Esse milagre é uma metáfora bonita da capacidade de comunicação, de sedução pela palavra. Acho que esse milagre revela essa capacidade de comunicação que ele tinha, de cativar plateias com sua oratória. Mas também dá para supor que ele era grande entusiasta das boas relações humanas. Ele era uma pessoa boa para contar histórias, para bater papo. Numa ida a Pádua para pesquisar, eu comentei com um frade que estava na igreja naquele dia, sobre as simpatias que existe no Brasil, como dessa tradição de pendurar a imagem de cabeça para baixo, enfim essas simpatias que a pessoa apronta em cima da imagem do santo em troca de alguma coisa. E ele falou uma coisa que me marcou: ‘Olha, na Itália não tem essas tradições – é uma coisa muito mais portuguesa e brasileira -, e ele falou que sabia da tradição brasileira, mas que ele, no fundo é aquele santo que não fica no altar, não fica no púlpito. Ele gosta de sentar no banco, ao lado do fiel. Ele é aquele santo amigo. Com um amigo você faz uma piada, você brinca. É por isso que as pessoas têm liberdade com ele. Se fosse um santo que ficasse lá em cima no altar, talvez tivesse uma relação de respeito tão grande que não se teria liberdade com ele. E ele é o santo amigo que você pode fazer uma brincadeirinha, pois ele dá essa liberdade. Ele estava sempre circulando, mas ao mesmo tempo era acolhido. Não se sentia estrangeiro. Então, dá para entender esse santo como das boas relações humanas. E também aí dá para trazer todas essas tradições, como do casamento, que depois foram criadas”, refletiu.
O INTELECTUAL NA ORDEM FRANCISCANA
Sobre o pedido de São Francisco a Santo Antônio para que ensinasse teologia aos frades, Edison lembra que São Francisco se dirigia a ele como “meu bispo”. “E também é um sinal desse respeito, dessa ideia de que ele era mais gabaritado intelectualmente, porque no começo a Ordem Franciscana era muito mais da experiência de vida do que da base intelectual. A base intelectual foi sendo construída depois. Existem relatos de que, logo no começo, ali nas andanças pela Itália, depois do primeiro Capítulo das Esteiras que ele participa e é deslocado para um convento, queixa-se de que não tinha livros no convento. Livros era um item muito caro naquela época. Essa simbologia dele como intelectual acabou sendo reconhecida pelo Papa Gregório, que foi o primeiro a chamá-lo de Doutor e depois a Igreja concedeu a ele esse título oficialmente. Há relatos que o Papa o chamava com certa frequência a Roma para dialogar com ele, para ouvir suas pregações, que foi até convidado para se tornar cardeal e viver na Cúria, mas ele recusou. Ele entendia que a vida dele era pregando. Ele tem um papel importante no começo da Ordem Franciscana para ajudar sistematizar a Regra Franciscana, teve um papel importante na formação de jovens franciscanos, tanto que em Bolonha, na Itália, ele foi coordenador do trabalho de formação numa casa que os franciscanos ganharam na década de 1220, como também num período meio curto que ele passou na França, onde esteve em várias cidades, um pouco antes de ir para a Pádua, que foi a derradeira missão ou trabalho dele. Ele tinha essa formação intelectual que vinha do berço, mas que também foi burilada no período do convento agostiniano, e isso não foi rejeitado pelos franciscanos. Muito pelo contrário. Foi acolhido e utilizado. São Francisco viu em Santo Antônio alguém que seria útil para a construção dessa nova Ordem que estava nascendo. Afinal, o próprio Papa cobrava uma Regra dos franciscanos. Eles não tinham uma Regra escrita e Santo Antônio foi importante nesse momento”, recordou.
Edison ainda falou nesta Live sobre o significado da imagem de Santo Antônio carregando um livro e o Menino Jesus, o grande número dos milagres do santo num período curto, a forte devoção que chegou ao Brasil com os portugueses. “Eu acredito que Santo Antônio chegou ao Brasil com a frota de Pedro Álvares Cabral. No navio já tinham uma imagem de Santo Antônio. A gente precisa lembrar que, na frota, havia 8 frades franciscanos. Então, estamos falando de frades franciscanos e de franciscanos portugueses. Ou seja, há uma combinação muito provável de que a devoção fosse a Santo Antônio, porque é Santo de Portugal, Santo de Lisboa, mas é também santo franciscano. Não é de se espantar que tenha vindo essa imagem com a frota de Cabral”, acredita. “E logo começam a surgir os conventos no Brasil, que certamente ajudaram a espalhar essa devoção no Brasil”, acrescentou.
Depois, segundo o escritor, Santo Antônio está muito forte no folclore. “Ele está presente na cultura popular. Tudo isso foi construído ao longo da religiosidade popular. “É interessante porque o tema Santo Antônio não está restrito à Igreja. Se a gente olhar, na obra do Câmara Cascudo, ele trata Santo Antônio como elemento dessa sabedoria popular. E tem toda essa história do santo casamenteiro. Isso ficou forte no Brasil e em Portugal. Na Itália, ele é o santo das coisas perdidas”, lembrou, falando ainda do santo que é associado ao pãozinho distribuído às terças-feiras e ao amor que tinha pelos pobres.
No final de sua palestra, deu um depoimento sobre a influência que teve na trajetória pessoal e profissional o aprofundamento em conhecer a figura de Santo Antônio. “Acho que primeiro o que me motivou foi estudar e percorrer os passos de Santo Antônio, de ir às mesmas cidades onde ele pisou muito tempo, e tentar escrever não só o que ele fez, mas tentar colocar um pouco dessa poeira, dessa sujeira do chão das cidades onde pisou. Eu sempre, como jornalista, gostei de contar boas histórias. Eu não sou especializado em um assunto. A boa história, independentemente do tema, me atrai. A ideia de fazer esse livro de Santo Antônio surgiu em 2017, quando eu ainda morava no Brasil, porque eu tinha um plano de passar o ano seguinte na Itália trabalhando. E também queria justificar esse ano sabático. No fundo tinha essa culpa: ‘Como não fazer nada nesse ano?’ E me ocorreu que iria para Itália, o berço do catolicismo, e poderia descobrir algum assunto ligado à Igreja. E comecei a pesquisar vários temas que fossem interessantes para o Brasil, mas que tivesse uma fonte na Itália. Quando me deparei com Santo Antônio, imaginei que já se tivesse tudo o que se podia escrever sobre ele. Não vou conseguir fazer uma coisa diferente. Mas para minha surpresa, há livros muitos bons sobre Santo Antônio e cito vários na minha bibliografia, mas não tinha nada com essa metodologia que eu planejava, com essa perspectiva, que era de falar sobre os lugares que ele esteve e não ficar simplesmente pesquisando. Fui para a Itália com esse desafio. Muita coisa esse trabalho me trouxe para a vida: a mensagem, a postura do próprio exemplo que foi Santo Antônio. Mas para o nosso tempo, com tantos problemas, algo muito forte como o tema da xenofobia, das fronteiras no mundo. Quantos problemas de refugiados que têm de sair de seus lugares. Santo Antônio tem uma mensagem que não imaginava que fosse encontrar nele e não é a mais comum que a gente fala dele: o fato de que sempre foi estrangeiro ao longo da vida. Tirando a infância e adolescência, depois ele sempre estava em outro lugar: Coimbra, Norte da África, Itália, onde ficou em muitas cidades, muito possivelmente ele esteve na Eslovênia, e esteve na França. Em todos os lugares, ele tinha uma postura de acolhimento e, ao que parece, ele era acolhido. No fundo, Santo Antônio é um santo muito contemporâneo nesse tempo em que as pessoas são cada vez mais cidadãs do mundo e, ao mesmo tempo, enfrentam os problemas de xenofobia e das fronteiras. Eu acho que me identifiquei muito com isso, porque a pesquisa de Santo Antônio foi o começo de minha vida como estrangeiro, minha vida como imigrante. Então, eu carrego essa postura de tentar estar aberto ao diferente, mas também esperar ser acolhido como ele foi. Nessa troca, todo mundo ganha”, acredita o jornalista.
Moacir Beggo