Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Terceiro domingo da Quaresma

Terceiro domingo da Quaresma

Mais abraços e menos pedras

 

Frei Gustavo Medella

A dor humana é território Sagrado. Dela devemos nos aproximar com reverência e espírito de acolhida. No Evangelho deste 3º Domingo da Quaresma, Jesus dá uma aula do modo pelo qual devemos nos aproximar uns dos outros, especialmente daqueles que padecem dores e sofrimentos no profundo de seu ser. O Sol do meio-dia no deserto simboliza as lutas e desafios da vida que provocam no ser humano uma sede de sentido. O poço representa as muitas formas pelas quais as pessoas buscam saciar esta sede. A samaritana é símbolo da humanidade ferida, já cansada da rotina de buscar água para saciar suas sedes profundas.

Jesus, ao se aproximar da finitude humana que ele mesmo se dispôs a provar, vem de modo discreto e dialogal. Nada deseja impor, mas propor. Mostra-se sedento e solidário ao mesmo tempo. Sedento porque participa da natureza humana; solidário porque consciente da missão que o Pai lhe confiara.

Oxalá aprendêssemos a saciar nossa sede na água que o Senhor nos oferece. Certamente nos tornaríamos mais solidários e menos solitários; mais inclusivos e menos seletivos; mais adeptos do abraço e menos dispostos a nos apedrejar por conta de nossas faltas e limites, dores e sofrimentos que, uns mais outros menos, todos nós carregamos.


FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011.


Imagem ilustrativa de Frei Fábio Melo Vasconcelos

Textos bíblicos para este domingo

Primeira Leitura: Êx 17,3-7

Naqueles dias, 3o povo, sedento de água, murmurava contra Moisés e dizia: “Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?”

4Moisés clamou ao Senhor, dizendo: “Que farei por este povo? Por pouco não me apedrejam!”

5O Senhor disse a Moisés: “Passa adiante do povo e leva contigo alguns anciãos de Israel. Toma a tua vara com que feriste o rio Nilo e vai. 6Eu estarei lá, diante de ti, sobre o rochedo, no monte Horeb. Ferirás a pedra e dela sairá água para o povo beber”. Moisés assim fez na presença dos anciãos de Israel. 7E deu àquele lugar o nome de Massa e Meriba, por causa da disputa dos filhos de Israel e porque tentaram o Senhor, dizendo: “O Senhor está no meio de nós ou não?”


Salmo Responsorial: 94

— Hoje não fecheis o vosso coração,/ mas ouvi a voz do Senhor!

— Hoje não fecheis o vosso coração,/ mas ouvi a voz do Senhor!

— Vinde, exultemos de alegria no Senhor,/ aclamemos o Rochedo que nos salva!/ Ao seu encontro caminhemos com louvores,/ e com cantos de alegria o celebremos!

— Vinde, adoremos e prostremo-nos por terra,/ e ajoelhemos ante o Deus que nos criou!/ Porque ele é o nosso Deus, nosso Pastor,/ e nós somos o seu povo e seu rebanho,/ as ovelhas que conduz com sua mão.

— Oxalá ouvísseis hoje a sua voz:/ “Não fecheis os corações como em Meriba,/ como em Massa, no deserto, aquele dia,/ em que outrora vossos pais me provocaram,/ apesar de terem visto as minhas obras”.


Segunda Leitura: Rm 5,1-2.5-8

Irmãos: 1Justificados pela fé, estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo. 2Por ele tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos, na esperança da glória de Deus.

5E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.

6Com efeito, quando éramos ainda fracos, Cristo morreu pelos ímpios, no tempo marcado. 7Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa muito boa talvez alguém se anime a morrer. 8Pois bem, a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores.


Jesus sacia a sede do homem

Evangelho: Jo 4,5-42

-Chegou, então, a uma cidade da Samaria chamada Sicar, perto do campo que Jacó tinha dado ao seu filho José. 6 Aí ficava a fonte de Jacó. Cansado da viagem, Jesus sentou-se junto à fonte. Era quase meio-dia. 7 Então chegou uma mulher da Samaria para tirar água. Jesus lhe pediu: «Dê-me de beber.» 8 (Os discípulos tinham ido à cidade para comprar mantimentos). 9 A samaritana perguntou: «Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou samaritana?» (De fato, os judeus não se dão bem com os samaritanos). 10 Jesus respondeu: «Se você conhecesse o dom de Deus, e quem lhe está pedindo de beber, você é que lhe pediria. E ele daria a você água viva.»

11 A mulher disse a Jesus: «Senhor, não tens um balde, e o poço é fundo. De onde vais tirar a água viva? 12 Certamente não pretendes ser maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu este poço, e do qual ele bebeu junto com seus filhos e animais!» 13 Jesus respondeu: «Quem bebe desta água vai ter sede de novo. 14 Mas aquele que beber a água que eu vou dar, esse nunca mais terá sede. E a água que eu lhe darei, vai se tornar dentro dele uma fonte de água que jorra para a vida eterna.» 15 A mulher disse a Jesus: «Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem precise vir aqui para tirar.»

A verdadeira religião sai de dentro do homem -* 16 Jesus disse à samaritana: «Vá chamar o seu marido e volte aqui.» 17 A mulher respondeu: «Eu não tenho marido.» Jesus disse: «Você tem razão ao dizer que não tem marido. 18 De fato, você teve cinco maridos. E o homem que você tem agora, não é seu marido. Nisso você falou a verdade.» 19 A mulher então disse a Jesus: «Senhor, vejo que és profeta! 20 Os nossos pais adoraram a Deus nesta montanha. E vocês judeus dizem que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar.»

21 Jesus disse: «Mulher, acredite em mim. Está chegando a hora, em que não adorarão o Pai, nem sobre esta montanha nem em Jerusalém. 22 Vocês adoram o que não conhecem, nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. 23 Mas está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade. Porque são estes os adoradores que o Pai procura. 24 Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade.» 25 A mulher disse a Jesus: «Eu sei que vai chegar um Messias (aquele que se chama Cristo); e quando chegar, ele nos vai mostrar todas as coisas.» 26 Jesus disse: «Esse Messias sou eu, que estou falando com você.»

Os discípulos continuam a missão de Jesus -* 27 Nesse momento, os discípulos de Jesus chegaram. E ficaram admirados de ver Jesus falando com uma mulher, mas ninguém perguntou o que ele queria, ou por que ele estava conversando com a mulher. 28 Então a mulher deixou o balde, foi para a cidade e disse para as pessoas: 29 «Venham ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Será que ele não é o Messias?» 30 O pessoal saiu da cidade e foi ao encontro de Jesus.

31 Enquanto isso, os discípulos insistiam com Jesus, dizendo: «Mestre, come alguma coisa.» 32 Jesus disse: «Eu tenho um alimento para comer, que vocês não conhecem.» 33 Os discípulos comentavam: «Será que alguém trouxe alguma coisa para ele comer?» 34 Jesus disse: «O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra. 35 Vocês não dizem que faltam quatro meses para a colheita? Pois eu digo a vocês: ergam os olhos e olhem os campos: já estão dourados para a colheita. 36 Aquele que colhe, recebe desde já o salário, e recolhe fruto para a vida eterna; desse modo, aquele que semeia se alegra junto com aquele que colhe. 37 Na verdade é como diz o provérbio: ‘Um semeia e outro colhe’. 38 Eu enviei vocês para colher aquilo que vocês não trabalharam. Outros trabalharam, e vocês entraram no trabalho deles.»

O encontro com a palavra de Jesus produz a verdadeira fé -* 39 Muitos samaritanos dessa cidade acreditaram em Jesus, por causa do testemunho que a mulher tinha dado. «Ele me disse tudo o que eu fiz.» 40 Os samaritanos então foram ao encontro de Jesus e lhe pediram que ficasse com eles. E Jesus ficou aí dois dias. 41 Muitas outras pessoas acreditaram em Jesus ao ouvir sua palavra. 42 E diziam à mulher: «Já não acreditamos por causa daquilo que você disse. Agora, nós mesmos ouvimos e sabemos que este é, de fato, o salvador do mundo.»

* 4,1-15: Conversando com uma mulher que era samaritana, Jesus supera os preconceitos de raça e as discriminações sociais. Como qualquer pessoa, essa mulher tem sede de vida. Todos buscam algo que lhes mate a sede, mas encontram apenas águas paradas. Jesus traz água viva corrente e faz com que a fonte brote de dentro de cada um.

* 16-26: Enquanto os judeus adoravam a Deus no templo de Jerusalém, os samaritanos o adoravam no templo do monte Garizim. Jesus supera o nacionalismo religioso, mostrando que Deus quer ser adorado na própria dimensão da vida humana. A própria vida, dedicada ao bem dos outros, como a de Jesus, é o verdadeiro culto a Deus, a adoração em espírito e verdade. Como Pai, Deus está presente na família humana e não quer que os homens separem religião e vida.

* 27-38: Com sua palavra e ação, Jesus realiza a obra do semeador. Todos os que fazem a experiência de Jesus partem para anunciá-lo, como a samaritana, provocando a vinda do povo. A vontade do Pai é reunir a humanidade em torno de Jesus, e cabe aos discípulos continuar essa tarefa, iniciada pelo próprio Jesus.

* 39-42: Os judeus se consideravam escolhidos por Deus, mas não compreenderam e não aceitaram a mensagem de Jesus, e até o obrigaram a sair da Judeia (4,1-3). Os samaritanos, que eram considerados como povo marginalizado e herege, acolheram Jesus como o Salvador do mundo.

Bíblia Sagrada – Edição Pastoral

Reflexões do exegeta Frei Ludovico Garmus

3º Domingo da Quaresma, ano A

 Oração: “Ó Deus, fonte de toda misericórdia e de toda bondade, vós nos indicastes o jejum, a esmola e a oração como remédio contra o pecado. Acolhei esta confissão de nossa fraqueza para que, humilhados pela consciência de nossas faltas, sejamos confortados pela vossa misericórdia”.

 Primeira Leitura: Ex 17,3-7

O Senhor está no meio de nós ou não?

Moisés, em nome de Deus, apresenta o plano de libertação: Deixar de servir ao Faraó com trabalhos forçados, para servir somente ao Senhor, numa terra prometida aos antepassados. A primeira parte do plano foi concluída e o povo já não era mais escravo. Mas entre o Egito e a terra prometida havia um deserto; no Egito era abundante a água do rio Nilo e a terra irrigada era muito fértil. No deserto, só a penúria e escassez de água. Daí a revolta: O povo tenta a Deus, contesta a autoridade de Moisés e quase o apedreja. A reclamação – “Deus está, ou não está no meio de nós?” – mostra uma fé abalada no Deus libertador. Deus intervém e ordena que Moisés reassuma a liderança, tomando o seu bastão, símbolo do poder divino, bastão que estendeu para ferir o Egito (rio Nilo) e abrir um caminho no Mar Vermelho para o povo passar. Acompanhado pelos anciãos devia ir à frente do povo, bater na rocha perto do monte Horeb, na presença do Senhor. Moisés assim o fez e da rocha saiu água para matar a sede de todo o povo. Paulo diz que o povo bebeu uma água espiritual e que a rocha da qual saiu água era Cristo (1Cor 10,3-4). O símbolo da água nos remete para o tema quaresmal e pascal, o batismo. No Evangelho, Jesus se apresenta à Samaritana como a fonte de água viva.

Salmo responsorial: Sl 94

Hoje não fecheis o vosso coração,

mas ouvi a voz do Senhor!

  1. Segunda leitura: Rm 5,1-2.5-8

O amor foi derramado em nós

pelo Espírito que nos foi dado.

No trecho da Carta de Paulo aos Romanos, hoje lido, o Apóstolo nos fala das assim chamadas virtudes cardeais; elas são as mais importantes entre dons do Espírito: a fé, a esperança e a caridade/amor, dons que recebemos pelo batismo. Na primeira Carta aos Coríntios, Paulo já exaltava a primazia do amor: “No presente permanecem estas três coisas: fé, esperança e amor; mas a maior delas é o amor” (1Cor 13,13). Paulo lembra aos romanos que, por meio de Cristo, somos justificados pela graça da fé, confirmados pela esperança da glória e pelo dom do “amor de Deus derramado em nossos corações pelo Espírito Santo”. Este dom nos foi dado por meio de Jesus Cristo, que “morreu por nós… quando éramos pecadores”, prova máxima do amor de Deus.

Aclamação ao Evangelho

            Glória e louvor a vós, ó Cristo.

Na verdade, sois Senhor, o Salvador do mundo.

Senhor, dai-me água viva a fim de eu não ter sede!

  1. Evangelho: Jo 4,5-42

Uma fonte de água viva que jorra para vida eterna.

O evangelho de hoje é a realização plena do que a primeira leitura prefigura. A água pedida pelos israelitas no deserto prefigura a água viva, dada por Jesus. Os hebreus pediam uma água que conheciam, mas não matava a sede. Jesus pede à Samaritana que lhe dê de beber da água do poço de Jacó (1ª leitura). A mulher estranha que Jesus (um judeu) lhe peça água, sendo ela uma Samaritana. Jesus responde que se o conhecesse ela mesma lhe pediria uma “água viva”, capaz de matar a sede para sempre. “E a água que eu lhe der – diz Jesus – se tornará nela uma fonte de água que jorra para a vida eterna”. A Samaritana pede, então, a Jesus que lhe dê de beber desta “água viva” e recebe o dom de Deus, isto é, a fé no próprio Cristo Jesus. Torna-se ela mesma “uma fonte de água que jorra para a vida eterna”. De fato, ao final do diálogo, a Samaritana crê em Jesus e transforma-se em missionária do próprio povo: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo”? Jesus, que tinha sede, não bebe a água do poço de Jacó. Sua sede é dar a todos os que nele crêem a “água viva” (o Espírito Santo), a fim de que sejam para outros “uma fonte de água que jorra para a vida eterna”. A Samaritana, que buscava a água do poço de Jacó, recebe de Jesus a água viva que jorra para a vida eterna. Quando os discípulos insistiam que comesse alguma coisa Jesus responde: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra” (v. 34). – Como você busca saciar a sede de Deus em sua vida? A Samaritana missionária partilhou a “água viva” com seu povo. Você procura ser uma fonte da qual jorra a vida eterna para os outros?


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Jesus quebra costumes para buscar pecadores

Frei Clarêncio Neotti

O caminho que levava da Judeia à Galileia e vice-versa passava pela Samaria. Para os judeus era passagem penosa. Judeus e samaritanos se evitavam, odiavam-se. A Samaria já fora terra de hebreus. Lá estava o túmulo de José do Egito (Js 24,33). Lá estava o famoso poço, que Jacó dera de presente ao filho predileto José. Agora, sentado ao lado do poço, estava o Filho predileto do Pai do Céu, capaz de dar não apenas um poço de água corrente, mas água viva, que jorra para a vida eterna.

Em torno do ano 720 antes de Cristo, a Samaria foi invadida pelos persas, e, ao menos, 30 mil habitantes foram deportados. Em seu lugar trouxeram colonos assírios (2Rs 17,24). Com o tempo, esses colonos acabaram adotando a lei de Moisés e o monoteísmo judaico, conservando, porém, os costumes e as devoções próprias (2Rs 17,27-34). Construíam seus templos no alto dos montes, como o Ebal (938 m), onde a tradição dizia que Josué oferecera o primeiro sacrifício ao entrar na Terra Prometida (Dt 27,4-8) e o Garizim (868 m), defronte ao Ebal, até hoje sagrado para os habitantes.

Compreende-se, então, o duplo espanto da samaritana no Evangelho de hoje. Primeiro: nenhum homem decente abordava uma mulher em público, conforme o costume tanto judeu quanto samaritano. Segundo: um judeu que se prezasse não pedia jamais um favor a um samaritano. Jesus, portanto, quebrou dois preconceitos ao mesmo tempo, coisa que escandalizou os próprios discípulos (v. 27). E, pela narração do Evangelho, ficamos ainda sabendo que era uma mulher de vida irregular (v. 18), que vivia com homem que não era seu marido.

A história de Jesus com a samaritana é um exemplo claro da afirmação do próprio Cristo: “Eu vim chamar os pecadores à conversão”. Essa frase ou Jesus a pronunciou, muitas vezes, ou ela chocou muito os Apóstolos, já que três evangelistas a transcreveram (Mt 9,13; Me 2,17; Le 5,32). E por que teria chocado? Porque os hebreus evitavam os pecadores. No caso da samaritana, além de ser ‘pagã’ e de vida desregrada, era mulher. E nenhum rabino perdia tempo em passar ensinamentos a mulheres. Jesus hoje dá um exemplo da verdadeira misericórdia: abriu o coração a uma pessoa necessitada de ajuda.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

A história de uma mulher da Samaria

Frei Almir Guimarães

Como a corça suspira pelas águas correntes, assim a minha alma suspira por ti, ó Deus. Minha alma tem sede do Deus vivo: quando virei a contemplar o rosto de Deus?
Salmo 42, 2-3

O desejo humano diferencia-se do desejo dos animais que se confunde com as necessidades, pois o destes visa unicamente no quadro da luta pela sobrevivência, à assimilação instintiva do objeto. O desejo do ser humano é uma sede diversa: é o desejo de ser amado, olhado, cuidado, desejado e reconhecido. Ser humano é sentir que a existência depende desse reconhecimento, mais do que de outra coisa qualquer, e por isso está pronto a ariscar tudo, até a própria vida. Enquanto desejamos objetos quaisquer que eles sejam, enquanto nos deixamos mover no encalço das coisas, carreiras, títulos, honorificências, o nosso desejar não é ainda um desejar verdadeiro. O puro desejo principia quando se formula, sem mais, como nua abertura ao outro.
José Tolentino Mendonça
Elogio da sede, Paulinas, p. 48

Quaresma, tempo que nos leva ao esplendor da noite pascal, tempo de revisão de vida, tempo em que desejamos aquilo que a sede provoca em nós. Tempo de renovar nosso mergulho batismal na morte e ressurreição do Senhor. O encontro de Jesus com a mulher de Samaria faz parte do patrimônio da quaresma. Os que se preparavam para o batismo no clássico período do catecumenato (sec. IV e V) se afeiçoaram a esse poço e a essa mulher tão cheia de perguntas e de questionamentos. Como desfecho do encontro ela exclama: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que fiz. Será que ele não é o Cristo?”

Assim a mulher poderia fazer o relato de seu inesperado e alvissareiro encontro:

“Quando eu cheguei ao poço aquele homem já estava se aproximando. Lembro-me que era um dia muito quente. Veio a Sicar e parecia exausto. Sentou-se à beira do poço. Era um judeu. Quando cheguei era bem por volta do meio-dia. Fui lá para encher o cântaro de água e nem podia imaginar o que ia acontecer.

Não é que aquele estrangeiro resolveu me dirigir a palavra! Pedia que lhe desse a beber. Fui categórica: “Onde se viu tu, judeu, pedir água a uma mulher samaritana!!” Ele não reagiu. Continuou a conversa.

Ele começou a me dizer que se eu soubesse quem ele era, eu que pediria a beber, que ele tinha uma água viva, e que quem dela bebesse não precisaria ir ao poço tantas vezes. Começou a dizer que eu deveria pedir o dom de Deus. Imaginem nem balde ele tinha. Como poderia me dar de beber? Ele queria ser maior do que nosso pai Jacó. Confesso que fiquei curiosa e quase revoltada.

Não esqueço nenhuma das palavras que ele disse. Elas martelavam em minha cabeça. Fiquei impressionada com aquela história de água viva que ele tinha a oferecer proveniente de Deus. Estas palavras calaram fundo dentro de mim: “Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo. Mas quem beber da água que eu lhe der, esse nunca mais terá sede. E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água para a vida eterna”. Essas palavras ficaram gravadas em mim. Eu poderia ter uma misteriosa fonte dentro de mim. Lembro-me que lhe disse então: “Senhor, dá-me desta água, para que eu não tenha mais sede e nem tenha que vir aqui para tirá-la”. Penso que naquele momento eu não dizia coisa com coisa. Água, sede… sei lá…

Depois fui me dando conta que ele me conhecia por dentro… estranhamente. Pediu que eu fosse chamar meu marido e já estivera ciente que já tivera cinco e o homem com quem eu vivia não era meu marido… Curioso. Pareceu um profeta, um leitor do profundo das pessoas.

A conversa continuou. Num determinado momento houve uma declaração extraordinária. Eu lhe disse, então: “Sei que o Messias deve chegar, que se chama Cristo e que vai ensinar todas as coisas”. Então, pasmem, ele me disse: “O Messias sou eu que estou falando contigo”.

Nesse momento chegaram os que andavam com ele… e nem tive tempo de continuar a conversa. Não conseguia assimilar aquilo que ele me dissera. Deixei o cântaro lá. A água poço ficara em segundo plano. Agora sentia dentro de mim uma estranha sede. Comecei a pensar que ele tinha no poço de seu coração uma fonte borbulhante de vida. Estava começando a me ligar ao fascínio desse homem sentado à beira do poço. Fui correndo para a cidade dizendo que havia encontrado um homem que havia lido as páginas do livro da minha vida. Comecei a pensar seriamente que ele era mesmo o Messias. Uma sede louca e diferente ardia em minha garganta”.


Concluindo:

♦ Esta admirável página do diário de uma mulher samaritana deve ser completa ainda com observações do quarto evangelista: “Muitos samaritanos daquela cidade abraçaram a fé em Jesus, por causa da mulher que testemunhava: Ele me disse tudo o que fiz. Por isso os samaritanos vieram ao encontro de Jesus e pediram que permanecesse com eles. Jesus permaneceu aí dois dias. E muitos outros creram por causa de sua palavra. E disseram à mulher: “Já não cremos por causa de tuas palavras, pois nós mesmo ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o salvador do mundo” (Jo 4, 39-42).

♦ Há homens e mulheres desejosos de plenitude e dos quais hoje o Cristo ressuscitado se aproxima questionando seus projetos de vida e insinuando-se em suas existências pela Palavra, pelos acontecimentos da vida, pelos apelos ao silêncio, pelos sinais dos tempos. Quem sabe, muitos de nossos contemporâneos, mesmo depois de certa caminhada de fé, podem também, como a mulher da Samaria, dizer: “Será que ele não é o Cristo?”

♦ “Hoje, torna-se cada vez mais claro que as sociedades capitalistas, organizadas à roda do consumo, explorando avidamente as compulsões de satisfação de necessidades induzidas pela publicidade, estão, na prática, removendo a sede e o desejo tipicamente humanos. O discurso capitalista promete liberta o desejo das inibições da lei e da moral em nome de uma satisfação ilimitada. Mas quando o gozo, a paixão, a alegria se esgotam no consumismo desenfreado, seja de objetos, seja das próprias pessoas, chegamos à extinção da sede, à agonia do desejo. A vida perde horizonte. Os tetos tornam-se cada vez mais baixos. Há nas nossas culturas, e nas nossas Igreja de igual modo, um déficit de desejo. Quando se adverte que estamos assistindo no presente à emergência, cada vez em escala maior, de sujeitos sem desejo, isto deve conduzir-nos a uma autocrítica eclesial. Nós, os batizados, formamos uma comunidade de desiderantes? Os cristãos têm sonhos?”

José Tolentino Mendonça
Elogio da sede, op.cit., p. 48-49


Oração

Tu não podes suportar, Senhor,
que um só dos teus se perca.
Tu nos procuras quando nos afastamos de ti.
Tu vais em busca dos que nós abandonamos.
E vais procurar aqueles dos quais ninguém sente falta.
Sempre te perdes entre os perdidos para encontra-los.
Nós nos entregamos a esta certeza,
a esta promessa que rompe nossos esquemas,
nos entregamos a teu amor cheio de ternura e imaginação
porque sentimos tua misericórdia e fidelidade
em nossa vida.
F. Ulíbarri


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

A religião de Jesus

José Antonio Pagola

Cansado da caminhada, Jesus se senta junto ao poço de Jacó, nas proximidades da cidade de Sicar. Logo chega uma mulher samaritana para saciar sua sede. Espontaneamente Jesus começa a falar com ela do que traz em seu coração.

No decorrer da conversa, a mulher lhe fala dos conflitos que enfrentam judeus e samaritanos. Os judeus peregrinam a Jerusalém para adorar a Deus. Os samaritanos sobem o monte Garizim, cujo cume se divisa do poço de Jacó. Onde se deve adorar a Deus? Qual é a verdadeira religião? O que pensa o profeta da Galileia?

Jesus começa esclarecendo que o verdadeiro culto a Deus não depende de um determinado lugar, por muito venerável que possa ser. O Pai do céu não está atado a nenhum lugar e não é propriedade de nenhuma religião. Não pertence a nenhum povo concreto.

Não devemos esquecer que para encontrar-nos com Deus não é necessário ir a Roma ou peregrinar a Jerusalém. Não é preciso entrar numa capela ou visitar uma catedral. Do cárcere mais secreto, da sala de terapia intensiva de um hospital, de qualquer cozinha ou lugar de trabalho podemos elevar nosso coração a Deus.

Jesus não fala à samaritana de “adorar a Deus”. Sua linguagem é nova. Até por três vezes lhe fala de “adorar o Pai”. Por isso não é necessário subir a uma montanha para aproximar-nos um pouco de um Deus longínquo, alheio aos nossos problemas, indiferente aos nossos sofrimentos. O verdadeiro culto começa por reconhecer a Deus como Pai querido que nos acompanha de perto ao longo de nossa vida.

Jesus lhe diz algo mais. O Pai está buscando “verdadeiros adoradores”. Não está esperando de seus filhos grandes cerimônias, celebrações solenes, incensos e procissões. Corações simples que o adorem “em espírito e em verdade” é o que Ele deseja.

“Adorar o Pai em espírito” é seguir os passos de Jesus e deixar-nos conduzir como Ele, pelo Espírito do Pai, que o envia sempre para os últimos. Aprender a ser compassivos como o é o Pai. Jesus o diz de maneira clara: “Deus é Espírito, e aqueles que o adoram, devem fazê-lo em espírito”. Deus é amor, perdão, ternura, sopro vivificador … e os que o adoram devem assemelhar-se a Ele.

“Adorar o Pai em verdade” é viver na verdade. Voltar constantemente à verdade do Evangelho, sermos fiéis à verdade de Jesus sem fechar-nos em nossas próprias mentiras. Depois de vinte séculos de cristianismo, será que aprendemos a dar culto verdadeiro a Deus? Somos os verdadeiros adoradores que o Pai está buscando?


JOSÉ ANTONIO PAGOLA cursou Teologia e Ciências Bíblicas na Pontifícia Universidade Gregoriana, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. É autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia. Atualmente é diretor do Instituto de Teologia e Pastoral de São Sebastião. Este comentário é do livro “O Caminho Aberto por Jesus”, da Editora Vozes.

O batismo, “água viva”

Pe. Johan Konings

A água é tão vital que sua escassez até poderá provocar uma terceira guerra mundial. Sem água não há vida. Quando os hebreus no deserto desafiaram Deus exigindo água, Deus lhes deu água física (1ª leitura). No evangelho, Jesus conscientiza a mulher samaritana de sua sede bem mais profunda, não por água material, mas por “espírito e verdade”. Esta sede é aliviada pelo dom de Jesus Cristo.

Ele é a “água viva”, que acaba definitivamente com a sede e faz o mundo viver para Deus. Paulo, na 2ª leitura, evoca “simbolismo da água para falar do amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. O batismo é a efusão do Espírito sobre os fiéis.

Esse dom de Deus é gratuito. Os hebreus, no deserto, desconfiaram de Deus e acharam que deviam desafiá-lo. Mas o dom do Espírito trazido por Cristo, que dá sua vida por nós, e pura graça. Nem sequer conseguimos pedi-lo como convém, porque ultrapassa o que pedimos. Por isso, devemos deixar Deus converter e educar o nosso desejo, para que nosso desejo material nos leve ao desejo da vida no Espírito.

Por outro lado a consciência do dom espiritual (= divino) não leva a desprezar o desejo materialista daqueles que realmente estão necessitados. O desejo fundamental conforme a vontade de Deus orienta também a busca dos bens materiais necessários e sua justa distribuição.

Precisamos de verdadeira “educação do desejo”. Nossa sociedade consumista não “cultiva” o desejo, mas exacerba-o e o torna desenfreado. Em vez disso, devemos aprofundar nosso desejo, para que ele reconheça a sua meta verdadeira: a “água viva”, Cristo, o dom de Deus na comunhão com o nossos irmãos… O desejo da água natural significa o desejo de viver. Aliviada a sede, o desejo continua. Qual é o seu fim? O desejo não é pecado: é bom, é vital, mas deve ser orientado; através das criaturas para seu verdadeiro fim, o Criador.

A Quaresma é na tradição da Igreja, o tempo da preparação para o batismo. A água do batismo significa uma realidade invisível, aponta para a satisfação de nosso grande desejo: a vida que Cristo nos dá, o Espírito de Deus, derramado em nossos corações. A “educação” de nosso desejo pode ser a preparação da renovação do nosso compromisso batismal. E a melhor pedagogia para isso é começar a não mais satisfazer qualquer desejo mesquinho e egoísta, mas concentrar nossa vida em torno do desejo profundo – material e espiritual – de nós mesmos e dos nossos irmãos.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.

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