Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Quarta-feira de Cinzas

Quarta-feira de Cinzas

Quando o que resta é solidão

 

Frei Gustavo Medella

O que acontece ao ator quando as cortinas se fecham e as luzes do palco se apagam? Para onde vai o palhaço depois que deixa o picadeiro, desfaz a maquiagem e tira a fantasia larga e colorida? Termina o espetáculo, começa a solidão. Não é mais hora de representar ou de estar preocupado em arrancar risos ou lágrimas da plateia. Ninguém mais os vê. Agora é cada um diante de si e ambos diante de Deus.

Iniciar o tempo da Quaresma é retirar-se do palco da vida. É colocar-se à sós e responder com a honestidade de quem não consegue se enganar – embora às vezes possa desejar – as perguntas que teimosamente rondam o coração humano. Na busca de dar estas respostas para si e para Deus, a pessoa percebe que aí não há lugar para performances ou atuações, muito menos a preocupação em receber vaias ou aplausos. Agora, a protagonista do espetáculo é a honestidade sem glosas e nua que acompanhou Adão e Eva ainda na inocência do paraíso. “O ser humano vale pelo que é diante de Deus, e nada mais”, lembrava São Francisco de Assis.

É nesta solidão fundamental, descrita por Jesus, como a privacidade silenciosa do quarto, que o ser humano consegue superar os medos, as inseguranças e os traumas que o afligem para mais uma vez redescobrir-se como filho amado de Deus: À medida que ele consegue desvencilhar-se da necessidade de interpretar determinado papel na busca de ser reconhecido ou respeitado, também se sente mais livre e leve nos relacionamentos com Deus – expresso no exercício da oração, com o próximo – simbolizado na prática da esmola, e consigo mesmo – reapresentado no desafio do jejum.

De fato não passamos de um punhado de pó. Mas foi sobre este resto de cinza que cada um de nós encerra que o Senhor resolveu “apostar as fichas”, derramar o seu amor, depositar todo o seu bem-querer. Quaresma é tempo de conversão. Deixemos cair todas as máscaras! Por mais feios e indignos que nos percebamos, Deus nos ama e deseja contar conosco!


FREI GUSTAVO MEDELLA, OFM, é o atual Vigário Provincial e Secretário para a Evangelização da Província Franciscana da Imaculada Conceição. Fez a profissão solene na Ordem dos Frades Menores em 2010 e foi ordenado presbítero em 2 de julho de 2011. 

Leituras bíblicas do dia

Primeira Leitura:  Joel 2,12-18

12“Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; 13rasgai o coração, e não as vestes, e voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo.” 14Quem sabe se ele se volta para vós e vos perdoa, e deixa atrás de si a bênção, oblação e libação para o Senhor, vosso Deus? 15Tocai trombeta em Sião, prescrevei o jejum sagrado, convocai a assembleia; 16congregai o povo, realizai cerimônias de culto, reuni anciãos, ajuntai crianças e lactentes; deixe o esposo seu aposento, e a esposa seu leito. 17Chorem, postos entre o vestíbulo e o altar, os ministros sagrados do Senhor e digam: “Perdoa, Senhor, a teu povo e não deixes que esta tua herança sofra infâmia e que as nações a dominem”. Por que se haveria de dizer entre os povos: “Onde está o Deus deles?” 18Então, o Senhor encheu-se de zelo por sua terra e perdoou ao seu povo.

Palavra do Senhor.


Salmo Responsorial: 50(51)

Misericórdia, ó Senhor, pois pecamos.

1. Tende piedade, ó meu Deus, misericórdia! / Na imensidão de vosso amor, purificai-me! / Lavai-me todo inteiro do pecado / e apagai completamente a minha culpa! – R.

2. Eu reconheço toda a minha iniquidade, / o meu pecado está sempre à minha frente. / Foi contra vós, só contra vós, que eu pequei, / pratiquei o que é mau aos vossos olhos! – R.

3. Criai em mim um coração que seja puro, / dai-me de novo um espírito decidido. / Ó Senhor, não me afasteis de vossa face / nem retireis de mim o vosso Santo Espírito! – R.

4. Dai-me de novo a alegria de ser salvo / e confirmai-me com espírito generoso! / Abri meus lábios, ó Senhor, para cantar, / e minha boca anunciará vosso louvor! – R.


Segunda Leitura: 2 Coríntios 5,20-6,2

– Irmãos, 20somos embaixadores de Cristo, e é Deus mesmo que exorta através de nós. Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus. 21Aquele que não cometeu nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornemos justiça de Deus. 6,1Como colaboradores de Cristo, nós vos exortamos a não receberdes em vão a graça de Deus, 2pois ele diz: “No momento favorável eu te ouvi, e no dia da salvação eu te socorri”. É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação.

Palavra do Senhor.


Evangelho: Mateus 6,1-6.16-18

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: 1“Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens só para serdes vistos por eles. Caso contrário, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus. 2Por isso, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens. Em verdade vos digo, eles já receberam a sua recompensa. 3Ao contrário, quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita, 4de modo que a tua esmola fique oculta. E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. 5Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar em pé, nas sinagogas e nas esquinas das praças, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo, eles já receberam a sua recompensa. 6Ao contrário, quando tu orares, entra no teu quarto, fecha a porta e reza ao teu Pai, que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa. 16Quando jejuardes, não fiqueis com o rosto triste como os hipócritas. Eles desfiguram o rosto para que os homens vejam que estão jejuando. Em verdade vos digo, eles já receberam a sua recompensa. 17Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, 18para que os homens não vejam que tu estás jejuando, mas somente teu Pai, que está oculto. E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa”.

Palavra da salvação.

Reflexão do exegeta Frei Ludovico Garmus

Quarta-feira Feira de Cinzas: A, B, C

Oração: “Concedei-nos, ó Deus todo-poderoso, iniciar com este dia de jejum o tempo de Quaresma, para que a penitência nos fortaleça no combate contra o espírito do mal”.

  1. Primeira leitura: Jl 2,12-18

Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes.

O texto lido na primeira leitura é do profeta Joel (séc. IV a.C.). O país sofreu uma terrível invasão de nuvens de gafanhotos que arrasaram as plantações, frustrando a colheita: “…o trigo está destruído, o vinho está em falta, o azeite se esgota” (Jl 1,10). A fome castiga homens e animais. A calamidade é vista como um castigo de Deus pelos pecados cometidos. O profeta fala do “dia do Senhor”, isto é, uma manifestação grandiosa e punitiva de Deus na história de Israel (cf. Am 5,18-20; Is 2,6-22). Os sacerdotes deviam convocar o povo para um solene jejum, incluindo anciãos, jovens e até crianças de peito, e clamar: “Perdoa, Senhor, a teu povo”. O jejum era expresso com o uso de vestes grosseiras de luto e acompanhado de choro e lamentações. Para expressar a dor era costume rasgar as vestes. O profeta, porém, alerta que não bastam as expressões externas de luto e conversão. É preciso “voltar” para Deus (arrepender-se) de todo o coração, rasgar o coração e não as vestes, “porque Deus é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo” (…) “Quem sabe ele se volte para vós e vos perdoe (…) De fato, Deus voltou a abençoar a terra e perdoou ao seu povo (v. 18). (2ª leitura). A Quaresma é um tempo favorável para “rasgar” nosso coração e voltar-se de coração aberto para Deus.

Salmo responsorial: Sl 50

Piedade, ó Senhor, tende piedade,

pois pecamos contra vós.

  1. Segunda leitura: 2Cor 5,20–6,2

Deixai-vos reconciliar com Deus. Eis agora o tempo favorável.

O texto lido prepara nossos corações para viver com intensidade o tempo da Quaresma. Destacam-se dois pensamentos. O primeiro é uma súplica que Paulo faz aos cristãos de Corinto: “Deixai-vos reconciliar com Deus”. Não é o homem que se reconcilia com Deus; é Deus que reconcilia o homem por meio de Cristo. Ele é o bom pastor que vai em busca da ovelha perdida ou desnorteada. O segundo pensamento diz: “É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação”. Deus está sempre disposto a nos perdoar, desde que o busquemos de todo o coração. A quaresma, porém, é este tempo favorável para voltarmos ao nosso Deus; é também um tempo de graça e reconciliação com o próximo. Tempo de abrir nosso coração, para que Deus nos purifique com seu perdão misericordioso (1ª leitura: “rasgar o coração”).

Aclamação ao Evangelho

Louvor e glória a ti, Senhor, Cristo, Palavra de Deus.

  1. Evangelho: Mt 6,1-6.16-18

Teu Pai, que vê o que está oculto,

            te dará a recompensa.

No Evangelho Jesus fala aos seus discípulos da oração, do jejum e da esmola, práticas normais dos judeus de seu tempo. Jesus ensina como não se deve executar tais práticas e como se deve fazê-las. Usa seis vezes a palavra “não”, para criticar o modo como os fariseus rezavam, jejuavam ou davam esmolas. Eles queriam aparecer diante dos outros como justos e perfeitos na observância da Lei (veja Lc 18,9-14: o fariseu e o publicano). Assim, não colocavam Deus no centro de suas ações, mas a si mesmo. Ao dar esmolas, devemos ser discretos: “que tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita”; procurar o silêncio do quarto para rezar; não mostrar um rosto triste quando jejua, mas lavar-se e usar perfumes. Porque Deus vê o coração e não as aparências.

As duras críticas aos fariseus devem ser entendidas no contexto em que Mateus escreve, pelo ano 80 d.C. Houve uma ruptura entre a sinagoga comandada pelos fariseus e as comunidades cristãs, expulsas da participação do culto judaico.

A esmola, o jejum e a oração fazem parte do dia a dia da vida cristã. A Igreja as recomenda especialmente para os tempos fortes da liturgia, como o Advento e a Quaresma. O jejum se exige para os católicos na quarta-feira das Cinzas e na Sexta-feira Santa, para quem tem entre os 15 e os 60 anos de idade. A esmola é um gesto de amor e solidariedade com o próximo, ligado à “Campanha da Fraternidade”. Tornou-se um belo exemplo de amor em tempos de calamidades, como na pandemia do Coronavírus (cf. Mt 25,31-40).


FREI LUDOVICO GARMUS, OFMé professor de Exegese Bíblica do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis (RJ). Fez mestrado em Sagrada Escritura, em Roma, e doutorado em Teologia Bíblica pelo Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, do Pontifício Ateneu Antoniano. É diretor industrial da Editora Vozes e editor da Revista “Estudos Bíblicos”, editada pela Vozes. Entre seus trabalhos está a coordenação geral e tradução da Bíblia Sagrada da Vozes.

Esmola, jejum e oração intensa

Frei Clarêncio Neotti

Os textos litúrgicos do início da Quaresma sugerem, como ajuda de conversão e como expressão concreta de nosso esforço, a esmola, o jejum e a oração intensa. O jejum se refere em primeiro lugar à boca. Há um pecado capital chamado gula. O jejum não é apenas o contrário da gula, é também um abster-se, propositadamente, de alimentos e bebidas ou coisas que satisfazem o sentido do gosto (cigarro, por exemplo). Quando nos privamos de determinado alimento todos os dias da Quaresma ou em determinados dias (de carne, por exemplo), praticamos a abstinência. O jejum de alimentos recorda a frase dita por Jesus ao demônio, que o tentava pela gula: “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4), uma citação do Antigo Testamento (Dt 8,3). Quaresma é um tempo de alimentar a alma por meio da escuta da Palavra de Deus.

A esmola extingue a avareza. Ela mexe com o nosso bolso. Ela lembra que não somos donos de coisa nenhuma, que tudo pertence a Deus. Que somos uma fraternidade, cujos bens devem ser condivididos. Ela nos recorda de que a criatura apegada às coisas terrenas não consegue alçar-se ao céu. É dando aos necessitados, que recebemos de Deus. Dizia Santo Antônio: “Assim como fechamos instintivamente muitas vezes as pálpebras para conservar límpidos os olhos, também devemos dar esmola com frequência para conservar a beleza da graça de Deus em nós”. A esmola deve refletir essa beleza de graça divina, que está em nós; por isso o carinho com que damos a esmola é mais importante que a soma que desembolsamos. A Quaresma é um tempo especial de partilha do que temos e somos.

A oração se faz com os lábios, sim. Mas se for feita só com os lábios será como a fumaça dos sacrifícios de Caim: não sobe para o alto (Gn 4,5). Nossa oração deve partir do coração e ser participada pelo coração, isto é, pelo nosso ser inteiro. Nossa oração é como música envolvente que acompanha nosso jejum, nossa esmola, nossa abertura aos outros e ao mesmo tempo nosso elevamento a Deus. A Quaresma é um tempo privilegiado de oração.


FREI CLARÊNCIO NEOTTI, OFMentrou na Ordem Franciscana no dia 23 de dezembro de 1954. Durante 20 anos, trabalhou na Editora Vozes, em Petrópolis. É membro fundador da União dos Editores Franciscanos e vigário paroquial no Santuário do Divino Espírito Santo (ES). Escritor e jornalista, é autor de vários livros e este comentário é do livro “Ministério da Palavra – Comentários aos Evangelhos dominicais e Festivos”, da Editora Santuário.

Para não se perder na estrada

Para não se perder na estrada

Frei Almir Guimarães

Quaresma, estrada nova a ser percorrida. Nova e velha. Cada ano podemos percorrê-la. Os que andam buscando o Senhor têm convicção de que precisam percorrer caminhos de interiorização, retomar o fôlego, recarregar as baterias e arrumar a casa da vida. Durante cinco semanas somos envolvidos pela atmosfera quaresmal. Quarenta dias! Dias de deserto do Povo de Israel, retiro de Jesus nas terras áridas, nosso tempo de atravessar uma parte do tempo da vida.

♦ Um punhado de cinzas, poeira, nada, um nadinha. Os que andam buscando estrelas colocam-se com toda singeleza diante de Deus na convicção de que a força de Deus só pode operar na fragilidade. “Tu és pó e ao pó hás de voltar”. Pedimos que o Senhor purifique nossos corações para podermos vivenciar e celebrar o mistério pascal, depois da travessia do deserto. Postura de humildade e de esperança.

♦ Joel, o profeta, pede que rasguemos os corações e não as vestes. Nada de espetáculos de religiosidade e de coisas feitas sem o coração. O importante é rasgar o coração. Novamente o tema da contrição. Vestes… nossos trajes nem sempre dizem o que somos. Eles dizem o que queremos que os outros saiba. Mais importante que as vestes é a nudez de coração. “O hábito não faz o monge”. Precisamos entrar na quaresma sem nada esconder em nossas roupas. Será que entendemos o que vem a ser rasgar os corações?

♦ Por vezes caminhamos pela vida com a repetição das coisas que sempre voltam. Quaresma, as mesmas leituras, o lilás e o roxo, os domingos celebrados sem o “glória”. O tempo da Quaresma pede que prestemos atenção na proximidade com o Senhor. “Como colaboradores de Cristo, nós vos exortamos a não receberdes em vão a graça de Deus, pois ele diz: “No momento favorável eu te ouvi e no dia da salvação eu te socorri”. É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação” (2Cor 6,1-2).

♦ Tempo de despojamento, tempo de visitar o deserto, tempo de cuidar que tudo parta do coração. Nada de exterioridade que camuflem a verdade. Transparência, sinceridade, coerência, pureza de coração. Nada de ficar praticando a justiça diante dos homens, para que eles vejam…

♦ Sempre a atenção para com o outro. Generosidade. Esmola. Dom da vida e dos bens. Partilha. Sem alarde. Nada de ficar trombeteando os dosn feitos. Discrição. Dar com generosidade. Se possível que ninguém fique sabendo. A mão esquerda não fique sabendo o que faz a direita. Quaresma, tempo de esvaziarmo-nos do que anda entupindo o armário de nossa vida. Esmola? Não, a oferta de si e do que se ganhou gratuitamente. Quem tudo de graça recebe, devolve de graça.

♦ Nada de muita oração espalhafatosa. José Tolentino Mendonça diz que orar é abraçar a vida. Não é questão de multiplicação de palavras e de fórmulas. Oração com os outros? O necessário. A oração sempre pedida, de modo especial, nesse começo de Quaresma, é aquela que se faz no silêncio, no quarto, na montanha, nos labirintos mais profundos de nosso ser, tão pouco visitados. Nada de requintes exagerados na liturgia. Requintes que podem visar promover os que os inventam. A oração litúrgica não pode ser momento de exibição de vaidades e de desejo de aplausos. O único que importa é o Senhor. Quaresma: tempo de uma oração quase escondida.

♦ Tudo bem: jejuar na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira da Paixão. Comer pouco ou quase anda. Propósito de “racionar” os alimentos nessas semanas quaresmais. Novamente, aqui também sem alarde. Nada de coisas espalhafatosas e rostos desfigurados. O jejum mais adequado para o tempo da Quaresma não seria o jejum de nossos caprichos, interesses pequenos e fogueiras de vaidade, enfim, o jejum de nós mesmos.
♦ Eis aí algumas diretrizes para o tempo da Quaresma: transparência, cultivo da virtude da humildade e cultivo da contrição do coração, oração densa e principalmente não ruidosa, jejum de nós mesmos e uma tentativa de esvaziar os celeiros de nossa vida tão cheio de nós mesmos, de coisas supérfluas e que a outros pertencem.


Texto para reflexão

O SACRAMENTAL DAS CINZAS

O batismo é uma morte que nos mergulha na morte de Cristo (Rm 6,3-4). Essa morte perdura ao longo de toda nossa vida: o rito batismal nada mais é do que sua inauguração, o sacramento nada mais é do que a imagem e a figura da humilde realidade que nos espera ao longo do tempo da vida e no seio da qual germina a glória que deve vir. Da mesma maneira, o sacramental da cinzas, traçada em nossa fronte, é como se fosse um novo ponto de partida anual nos caminhos que nos faz voltar à nossa poeira original. Mas também é a imagem e a figura da realidade banal de nossa vida cotidiana e da glória que ela esconde em si.
Karl Ranher


FREI ALMIR GUIMARÃES, OFMingressou na Ordem Franciscana em 1958. Estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral familiar. É o editor da Revista “Grande Sinal”.

Penitência: abrir espaço para Deus

Pe. Johan Konings

Matematicamente falando, a Quaresma, tempo dos “quarenta dias”, vai do 1° domingo quaresmal até a 4ª-feira da Semana Santa. O Tríduo Santo já é contado com a Páscoa. Mas, na Idade Média, os domingos foram descontados do tempo penitencial, cujo início foi então antecipado para a Quarta-feira de Cinzas. Mesmo não pertencendo à tradição litúrgica mais antiga, as leituras são muito significativas, pois têm teor diferente daquele dos domingos quaresmais, que acentuam a preparação para o batismo a ser administrado na noite pascal. Em Cinzas, o tema central é mesmo a penitência.

A liturgia insiste na autenticidade da penitência (“rasgar o coração, não apenas as vestes”, 1ª leitura) e no caráter interior do jejum, juntamente com as outras “boas obras”, a esmola e a oração (evangelho). A 2ª leitura (introduzida pela liturgia renovada) proclama o “tempo da reconciliação” com Deus, pregada por Paulo com vistas à iminência da Parusia.

O rito da imposição das cinzas, que quanto à literalidade contradiz um pouco as palavras do evangelho, antigamente era acompanhado da macabra citação de Gn 3,19: “És pó, e ao pó voltarás”; hoje em dia, a fórmula alternativa “Convertei-vos e crede no evangelho” combina melhor com o teor da liturgia. A “mortificação” pode ser um meio para libertar-se dos apegos e da vida superficial, mas não é um fim em si! O fim é a conversão, a volta para Deus, que na 2ª leitura ganha um tom de esperançosa alegria, bem de acordo com o evangelho, que manda usar perfumes para não ostentar o jejum. Conversão é encontro com Deus que se volta para nós (1ª leitura), portanto, uma razão de alegria. Oxalá fosse concebida assim o sacramento da penitência neste “tempo favorável”.

A oração do dia e a das oferendas falam do combate ao vício e do domínio de si. Mas o importante no jejum não é o que nós fazemos, mas a maravilha que Deus opera. Nossa parte é preparar-nos para receber a sua graça. A conversão não é tanto fazer algo quanto deixar-se fazer por Deus (prefácio). Na Quaresma vamos dar maior chance a Deus para agir em nós, refreando os instintos egoístas (todos eles, também os do ter e do dominar), tentando acompanhar aquele que se liberou completamente para, em obediência a Deus, doar-se por nós por amor.

Impondo certas restrições aos nossos impulsos, abrimos em nosso coração mais espaço para Deus e seus filhos. Por isso cabe neste dia a abertura da Campanha da Fraternidade. A melhor penitência é: abrir espaço para Deus e para nossos irmãos.


PE. JOHAN KONINGS nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colégio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (Jesuítas) e, desde 1986, atuou como professor de exegese bíblica na FAJE, Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Faleceu no dia 21 de maio de 2022.  Este comentário é do livro “Liturgia Dominical, Editora Vozes.