Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

As ameaças da Grande Transformação

06/08/2014

 

  Imagem ilustrativa (fonte: Acervo Província da Imaculada)

Leonardo Boff (*)

A Grande Transformação consiste na passagem de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado. Ou em outra formulação: de uma sociedade com  mercado para uma sociedade só de mercado. Mercado sempre existiu na história da humanidade, mas nunca uma sociedade só de mercado. Quer dizer, uma sociedade que coloca a economia como o eixo estruturador único de toda a vida social, submetendo a ela a política e anulando a ética. Tudo é vendável, até o sagrado.

Não se trata de qualquer tipo de mercado. É o mercado que se rege pela competição e não pela cooperação. O que conta é o benefício econômico individual ou corporativo e não o bem comum de toda umasociedade. Geralmente este benefício é alcaçado às custas da devastação da natureza e da gestação perversa de desigualdades sociais. Nesse sentido, a tese de  Thomas Piketty em O capital no século XXI é irrefutável.

O mercado deve ser livre, portanto,  recusa  controles e vê o Estado como seu grande empecilho, cuja missão, sabemos, é ordenar com leis e normas a sociedade,  também o campo econômico e coordenar a busca comum do bem comum. A Grande Transformação postula um Estado mínimo, limitado praticamente às questões ligadas à infra-estrutura da sociedade, ao fisco, mantido o mais baixo possível e à segurança.Tudo o mais deve ser buscado no mercado, pagando.

O gênio da mercantilização de tudo penetrou em todos os setores da sociedade: a saúde, a educação, o esporte, o mundo das artes e  do entretenimeno e até grupos importantes das religiões e das igrejas.  Estas incorporaram a lógica do mercado: a criação de uma massa enorme de consumidores de bens simbólicos, igrejas pobres em espírito, mas ricas em meios de fazer dinheiro. Não raro no mesmo complexo funciona um templo e junto a ele um shopping. Enfim, se trata sempre da mesma coisa: auferir rendas seja combens materiais seja com bens “espirituais”.

Quem estudou em detalhe este processo avassalador foi  um historiador da economia, o húngaro-norte-americano Karl Polanyi (1886-1964). Ele cunhou a expressão A Grande Transformação,título do livro escrito antes do final da Segunda Guerra Mundia em 1944. No seu tempo a obra não mereceu especial atenção. Hoje, quando suas teses se veem mais e mais confirmadas, tornou-se leitura obrigatória para todos os que se propõem entender o que está ocorrendo no campo da economia com repercusão em todos os âmbitos da atividade humana, não excluída a religiosa. Desconfia-se que o próprio Papa Francisco tenha se inspirado en Polaniy para criticar a atual mercantilização de tudo, até do ser humano e órgãos.

Essa forma de organizar a sociedade ao redor dos interesses econômicos do mercado cindiu a humanidade de cima a baixo: um fosso enorme se criou entre os poucos ricos e os muitos pobres. Gestou-se uma espantosa injustiça social com multidões feitas descartáveis, consideradas óleo gasto, não mais interessante para o mercado: produzem irrisoriamente e consomem quase nada.

Simultaneamente à Grande Transformação dasociedade em mercado criou também uma iníqua injustiça ecológica. No afã de acumular, foram explorados de forma predatória bens e serviços da natureza, devastando inteiros ecossistemas, contaminando os solos, as águas, os ares e os alimentos, sem  qualquer outra consideração ética, social ou sanitária.

Um projeto desta natureza, de acumulação ilimitada, não é suportado por um planeta limitado, pequeno, velho e doente. Eis que surgiu um problema sistêmico, do qual os economistas deste tipo de economia, raramente se referem: foram atingidos os limites físico-químicos-ecológicos do planeta Terra. Tal fato dificulta senão impede a reprodução do sistema que precisa de uma Terra, repleta de “recursos” (bens e serviços ou ‘bondades’ na lingugem dos indígenas).

A continuar por esse rumo, poderemos experimentar, como já o estamos experimentando, reações violentas da Terra.Como  é um Ente vivo que se autoregula, reage para manter seu equilíbrio afetado através de eventos extremos, terremotos, tsunamis, tufões e uma completa desregulação dos climas.

Essa Transformação, por  sua lógica interna, está se tornando biocida, ecocida e geocida. Destrói sistematicamente as bases que sustentam a vida. A vida corre risco e a espécie humana pode, seja pelas armas de destruição emmassa existentes seja pelo caos ecológico, desaparecer da face da Terra. Seria a consequência de nossa irresponsabilidade e da total falta de cuidado por tudo o que existe e vive.

Analisamos no artigo anterior, as ameaças que nos traz a transformação  da economia de mercado em sociedade de mercado com a dupla injustiça que acarreta: a social e a ecológica. Agora queremos nos deter em sua incidência no âmbito da ecologia tomada em sua mais vasta acepção, no ambiental, social, mental e integral.

Constatamos um fato singular: na medida em que crescem os danos à natureza que afetam mais e mais as sociedades e a qualidade de vida, cresce simultaneamente a consciência de que, na ordem de 90%, tais danos se tributam à atividade irresponsável e irracional dos seres humanos,mais especificamente,  àquelas elites de poder econômico, político, cultural e mediático que se constituem em grandes corporações multilaterais e que assumiram por sua conta os rumos do mundo. Temos, com urgência, fazer alguma coisa que interrompa este percurso para o precipício. Como adverte a Carta da Terra: “Ou fazemos uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscamos a nossa destruição e a da diversidade da vida”(Preâmbulo).

A questão ecológica, especialmente após o Relatório do Clube de Roma em 1972, sob o título “Os Limites do Crescimento”, tornou-se tema central da política, das preocupações da comunidade científica mundial e dos grupos mais despertos e preocupados pelo nosso futuro comum.

O foco das questões se deslocou: do crescimento/desenvolvimento sustentável (impossível dentro da economia de mercado livre) para a sustentação de toda a vida. Primeiro há que se garantir a sustentabilidade do planeta Terra, de seus ecossistemas, das  condições naturais que possibilitam a continuidade da vida. Somente garantidas estas pré-condições, se pode falar em sociedades sustentáveis e em desenvolvimento sustentável ou de qualquer outra atividade que queira se apresentar com este qualificativo.

A visão dos astronautas reforçou a nova consciência. De suas naves espaciais ou da Lua se deram conta de que Terra e a Humanidade formam uma única entidade. Elas não estão separadas nem justapostas. A Humanidade é uma expressão da Terra, a sua porção consciente, inteligente e responsável pela preservação das condições da continuidade da vida. Em nome desta consciência e desta urgência, surgiu o princípio  responsabilidade (Hans Jonas), o princípio cuidado (Boff e outros), o princípio sustentabilidade (Relatório Brundland), o princípio interdependência, o princípio cooperação (Heisenberg/Wilson/Swimme/Morin/Capra)e o princípio prevenção/precaução (Carta do Rio de Janeiro de 1992 da ONU), o princípio compaixão (Schoppenhauer/Dalai Lama) e o princípio Terra (Lovelock e Evo Morales).

A reflexão ecológica se complexificou. Não se pode reduzi-la apenas à preservação do meio ambiente. A totalidade do sistema mundo está em  jogo. Assim surgiu uma ecologia ambiental que tem como meta a qualidade  de vida; uma ecologia social que visa um modo sustentável de vida e uma sobriedade compartida (produção, distribuição, consumo e tratamento dos dejetos); uma ecologia mental que se propõe erradicar preconceitos e visões de mundo, hostis à vida e  formular un novo design civilizatório, à base  de princípios e de valores para uma nova forma de habitar a Casa Comum; e por fim uma ecologia integral que se dá conta que a Terra é parte de um universo em evolução e que devemos viver em harmonia com o Todo, uno, complexo e perpassado de energias que sustentam a vitalidade da Terra e carregado de propósito.

Criou-se destarte uma grelha teórica, capaz de orientar o pensamento e as práticas amigáveis à vida. Então, torna-se evidente  que a ecologia mais que uma técnica de gerenciamento de bens e serviços escassos representa uma arte, uma nova forma de relacionamento com a vida, a natureza e a Terra e a descoberta da missão do ser humano no  processo cosmogênico e no conjunto dos seres: cuidar e preservar.

Por todas as partes do mundo, surgiram movimentos, instituições, organismos,  ONGs, centro de pesquisa, cada qual com sua singularidade: quem se preocupa com as florestas, quem com os oceanos, quem com a preservação da biodiversidade, quem com as espécies em extinção, quem com os ecossistemas tão diversos,  quem  com as águas e os solos, quem com as sementes e a produção orgânica. Dentre todos estes movimentos cabe enfatizar o Greenpeace pela persistência e coragem de enfrentar, sob riscos, aqueles que ameaçam a vida e o equilíbrio da Mãe Terra.

A própria ONU criou uma série de instituições que visam acompanhar o estado da Terra. As principais são o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), a FAO (Organização das Nações Unidas para a alimentação e a agricultura), a OMS (Organização Mundial para a Saúde), a Convenção sobre a Biodiversidade e especialmente o IPPC (Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas) entre outras tantas.

Esta Grande Transformação da consciência opera uma complicada travessia, necessária para fundar um novo paradigma, capaz de transformar a eventual tragédia ecológico-social numa crise de passagem que nos permitirá um salto de qualidade rumo a um patamar mais alto de relação amistosa, harmoniosa e cooperativa entre Terra e Humanidade. Se não assumirmos esta tarefa, o futuro comum estará ameaçado.

         Para pormos em curso outro tipo de Grande Transformação que nos devolva a sociedade com mercado e elimine a deletéria sociedade unicamente de mercado, precisamos fazer algumas travessias improstergáveis. A maioria delas está  em curso mas elas precisam ser reforçadas. Importa passar:

– do paradigma Império, vigente há seculos  para o paradigma Comunidade da Terra;

– de uma sociedade industrialista que depreda os bens naturais e tensiona as relações sociais para uma uma sociedade de sustentação de toda a vida;

– da Terra tida como meio de produção e balcão de recursos sujeitos à venda e à exploração para a Terra como um Ente vivo, chamado Gaia, Pacha Mama ou Mãe Terra;

– da era tecnozoica que devastou grande parte da biosfera para a era ecozoica pela qual todos os saberes e atividades se  ecologizam e juntas cooperam na salvaguarda da vida.

– da lógica da competição de se reger pelo ganha-perde e que opõem as pessoas para a lógica da cooperação do ganha-ganha que congrega e fortalece a solidariedade entre todos.

– do capital material sempre limitado e exaurível, para o capital espiritual e humano ilimitado, feito de amor, solidariedade, respeito, compaixão e de uma confraternização como todos os seres da comunidade de vida;

– de uma sociedade antropocêntrica, separada da natureza, para uma sociedade biocentrada que se sente parte da natureza e busca ajustar seu comportamento à logica do processo cosmogênico que se caracteriza pela sinergia, pela interdependência  de todos com todos e pela cooperação.

Se é perigosa a Grande Transformação da sociedade de mercado, mais promissora ainda é a Grande  Transformação da consciência. Triunfa aquele conjunto de visões, valores e princípios que mais congregam pessoas e melhor projetam um horizonte de esperança para todos. Essa seguramente é a Grande Transformação das mentes e dos corações a que se refere a Carta da Terra. Esperamos que se consolide, ganhe mais e mais espaços de consciência com  práticas alternativas até assumir a hegemonia da  nossa história.

Há um documento acima  citado a  Carta da Terra por seu alto valor de inspiração e  gerador de esperança. Ela é fruto de uma vasta consulta dos mais distintos setores das sociedades mundiais, desde os povos originários, das tradições religiosas e espirituais até notáveis centros de pesquisa. Foi animada especialmente por Michail Gorbachev, Steven Rockfeller, o ex-primeiro ministro da Holanda Lubbers, Maurice Strong, sub-secretário da ONU e Mirian Vilela, brasileira que, desde o início coordena os trabalhos e dirige o Centro na Costa Rica. Eu memo faço parte do grupo e tenho colaborado na redação do documento final e de sua difusão por onde posso.

Depois de 8 anos de intensos trabalhos e de encontros frequentes nos vários continentes, surgiu um documento pequeno mas denso que incorpora o melhor da nova visão nascida das ciências da Terra e da vida, especialmente  da  cosmologia contemporânea. Ai se traçam princípios e se elaboram valores no arco de uma visão holística da ecologia, que podem efetivamente apontar um caminho promissor para a humanidade presente e futura. Aprovado em 2001 foi assumido oficialmente em 2003 pela UNESCO como um dos materiais educativos mais inspiradores  do novo milênio.

A Hidrelétrica Itaipu-Binacional (foto), a maior do gênero no mundo, tomou a sério as propostas da Carta da Terra e seus dois diretores Jorge Samek e Nelton Friedrich conseguiram envolver 29 municípios que bordeiam o grande lago onde vive cerca de um milhão de pessoas. Deram início de fato a uma Grande Transformação. Lá se realiza efetivamente a sustentabilidade e se aplica o cuidado e a responsabilidade coletiva em todos os municípios e em todos os âmbitos, mostrando que, mesmo dentro da velha ordem, se pode gestar o novo porque as pessoas mesmas vivem já agora o que querem para os outros.

Se concretizarmos o sonho da Terra, esta não será mais condenada a ser para a maioria da humanidade um vale de lágrimas e uma via-sacra de padecimentos. Ela pode ser transformada numa montanha de bem-aventuranças, possíveis à nossa sofrida existência e uma pequena antecipação da transfiguração do Tabor.

Para que isso ocorra, não basta sonhar, mas importa praticar.


(*) Leonardo Boff, ecoteólogo e escritor, escreveu com Jürgen Moltmann, Há esperança para a criação ameaçada? Vozes 2014.

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