Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Novembro 2018

NOVEMBRO 2018

Na tela de seu computador a edição de novembro do “Tirando do Baú coisas novas e velhas”. Há, de fato, coisas novas. Há a presença do vigoroso José Tolentino Mendonça com seu estilo contundente e provocativo. Ele nos convida a escutar. Há orientações de vida emanadas pela  Cúria  Geral dos Frades Menores.  Há um discorrer sobre o tema das jovens.  Há  coisas  velhas: chispas e faíscas de Jean Sulivan e uma rápida viagem à  República Independente de Ipanema, no Rio.  Boa leitura.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Escutar é uma arte

Oxalá ouvísseis hoje a voz do Senhor!

José Tolentino Mendonça tem nada mais do nove livros publicados entre nós  (Paulinas). O autor é  português. Transparece nele o poeta, o ensaísta, o teólogo, o homem que fala das coisas da vida espiritual a partir do chão firme. Tolentino é padre e prelado. Seus livros não têm notas de rodapé. A vida está no meio de tudo o que escreve.

Companheiros seus são os que pensam bem. Misturam-se imperceptivelmente trechos dos filósofos da Grécia antiga com as falas de pensadores de todos os cantos e de todos os tempos. Nós que estamos em clima de Capítulo Provincial queremos e precisamos ouvir.  Eis algumas pérolas do Tolentino sobre a arte de escutar.  Todas são do livro “A mística do instante” (Paulinas). Os capitulares de Agudos somos pessoas que para lá nos dirigimos no intuito de escutar.

 

>> Não tenhamos dúvidas: tudo aquilo que escutamos, mas verdadeiramente tudo, deve ser apenas a preparação para a escuta do que permanece em silêncio. Só no habitat do silêncio, nas jornadas longas de silêncio e de exposição em oração, a escuta pode amadurecer (p. 109).

>> A nossa escuta é permanentemente interrompida por urgências que se impõem, sobretudo falsas urgências, ficções que nos povoam e barram o abraçar o instante. Sempre que a nossa escuta desiste de ir até o fim, ela desiste de si. Por isso, Evágrio recomenda: “Torna-te surdo”. A verdade é que, se não formos capazes disto, não mergulhamos no silencioso oceano da escuta (p. 114).

>> Numa cultura de avalanche como a nossa, a verdadeira escuta, só pode configurar-se como um recuo crítico perante o frenesi das palavras e das mensagens que a todo minuto pretendem aprisionar-nos. Experimentamos como os modelos da vida impostos são atordoantes. A compensação para nossas existências extenuadas é o entretenimento. No entanto, a própria palavra “entreter” é reveladora: entre-ter, ter ou manter  entre, numa espécie de suspensão que nos captura. E em determinado momento  já  não vivemos  em lado nenhum, numa terra de ninguém  que é ao mesmo tempo nossa morada e nosso exílio. A arte da escuta é, por isso, um exercício de resistência. Ela estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa de contatos, à enxurrada que a telenovelização do cotidiano (político, econômico ou cultural)  A escuta constitui, por vezes, uma incisão, um corte simbólico, uma recusa, uma deslocação.  Uma coisa é certa: sem ela rapidamente a nossa vida  se torna invadida, colonizada, uma vida que não nos pertence.  Na sociedade da comunicação há um déficit de escuta (p. 116).

Os tempos estão mudando. E os tempos de mudança são inspiradores, não o esqueçamos. O inverno conspira para que surjam inesperadas flores. “O que está sendo dito para nós?”, é a pergunta necessária. O que esta avalanche cultural nos revela?  De fato, a grande crise, a mais aguda, não é sequer a dos acontecimentos, decisões e deserções que nos trouxeram aqui. Dia a dia sobrepõe-se um problema maior: a crise da interpretação. Isto é, a falta de um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos ( p. 123).

Novas formas de vida e missão na OFM

O Secretariado Geral para Evangelização da OFM publicou um texto com diretrizes  sobre novas formas de vida e missão na Ordem (Ite, nuntiate… Roma,  2017). Num determinado momento da exposição, os autores elencam elementos  que sempre deverão estar presentes nas novas  formas de vida e missão (p. 30-31).

Não há dúvida. Renovar ou morrer. Com todas as adaptações e atualizações, aggiornamentos e novas diretrizes necessitamos estar abertos  ainda e sempre a novas formas de vida franciscana.  É um crime para com o nosso passado franciscano, preguiçosamente, repetirmos as coisas como eram, sobretudo não acreditando de verdade no que realizamos e, monotonamente repetindo as coisas.  Nossos encontros, capítulos, congressos haverão de ser espaços de  estudo e de decisões. Evangelizar, sim, de verdade, mas nunca fazendo apenas girar uma máquina aparentemente brilhante, numa “pseudo” modernidade.. É preciso ir ao fundo.  Não se trata de mudar por mudar.  Talvez não se trata mesmo de deixar muita coisas, mas de fazê-las diferentemente, com alma, com fogo, com o interior, treinando-nos para ler os sinais dos tempos, caligrafia do  Espírito  Santo.   Vejamos  alguns dos princípios  que deverão estar presentes em todas as mudanças.  Cuidado: quando se joga fora a água com que lavou a criança, prestar atenção para lançar não sei onde a criança que  estava na água…

 

1. Primado da vida de oração e da escuta da Palavra –  O Documento fala da  lectio cotidiana  ou semanal; uma hora por dia de oração pessoal; reza “contemplativa” da Liturgia das Horas.

Comentário  

Não há outro modo de reverter as coisas. Os frades haveremos de redescobrir a intimidade pessoal com o  Senhor e a vontade de rezar juntos.  Não só vontade, mas decisão.  Sabemos que a oração será fecunda quando deixa de ser um palavreado meio vazio e apressado. Uma hora por dia… que pode incluir o saborear um salmo, ler páginas de homens e mulheres de Deus,  reflexões feitas por membros da Ordem ou por “vigilantes”, outros “Diógenes”    que andam à escuta do Deus e dos sinais dos tempos, sentinelas suscitados pelo Senhor. Haveremos sempre de cuidar que a  lectio  não seja mera ocasião de preparar a homilia para o domingo seguinte.

Liturgia das Horas “contemplativa”:  silêncio antes de começar, como pessoas que estão entrando na sala do amor e depois,  saindo devagar, com alguns raios de claridade na fronte.  Sem pressa frenética, sem gritos externos e internos.

Vale a pena refletir sobre este parágrafo: “A  profundidade e a velocidade das mudanças de nossas sociedades, a quebra das crenças, a hiperestimulação a que vivemos submetidos, o ruído, as tecnologias, a competitividade, a precariedade das referências… e poder-se-ia alongar indefinidamente a exposição dos fatores que, na atualidade tornam agudo o sentimento de falta de raízes.  A “sociedade líquida”  a que se  refere  Z. Baumann gera uma espécie de “náufragos existenciais” que necessitam encontrar solo, casa, paz.  A interioridade se converte deste modo numa sorte de promessa, refúgio e, quando bem entendida, retorno”  (Maria José Mariño, Recuperar el corazón, la interioridad como cuestión hoy,   Revista de Espiritualidad, 75, 2016, p. 167).

2. Cuidado para que haja autênticas e profundas relações fraternas que irradiem um testemunho de vida fraterna.  (Capítulos locais frequentes; momentos cotidianos de diálogo fraterno, defendidos  pela disciplina no uso  dos meios de comunicação, como a internet, o celular, a televisão).

Comentário

Nada de substancial a comentar ou acrescentar.  Trata-se de rever seriamente  o Capítulo local.  Uma pauta suculenta e não sobrecarregada de elementos para que as coisas caminhem.  Um pauta meramente funcional.  Um cuidado para que o mais simples dos frades coloque em pauta a mensagem que o Altíssimo andou lhe sussurrando  discretamente. Nada de dominação de ninguém sobre ninguém.  As pessoas de fora percebem nitidamente quando há um clima de irmãos que gostam dos irmãos. Como, de fato, seremos fraternidades?  Ninguém atire a primeira pedra em ninguém.  Todos temos nossa parte de responsabilidade.

3. Estilo de vida simples e sóbrio, minoridade e testemunho  ( escolhas concretas como fidelidade ao trabalho manual desejado por São Francisco; assumir os serviços da casa, possivelmente sem pessoas assalariadas, compromisso com o autossustento).

Comentário

Em muitos lugares do mundo as casas franciscanas não contam mais com  funcionários assalariados.  O tema precisa ser estudado com vagar.  Compreende-se e deseja-se que religiosos cheios de entusiasmo  adotem um estilo de vida sóbrio.  O Documento da Ordem aponta para o caso de frades  fazendo o trabalho manual em casa e fora de casa.  Casas simples, bem arrumadas, mas simples.  Espaços cuidados quando se volta  dos trabalhos apostólicos.  Tudo simples.  Gênero de vida alternativo.  Tudo precisando ser feito com pé no chão.  Casas simples, simples de verdade.  Tudo funcional e simples.  A experiência mostra que, mesmo com intensa atividade em todos os campos, os frades  podem manifestar um gosto franciscano pelo trabalho manual.

4. Acolhida e partilha de vida com pessoas, sobretudo com os pobres.

Comentário

Muitas vezes nossos encontros com “as pessoas do povo”  se dão no quadro da missa e da administração dos sacramentos, quando, como frades assumimos o trabalho paroquial.  Há outros espaços. Os padres diocesanos  vão assumindo paróquias que antes nos  haviam sido confiadas. Os frades haveremos de inventar fóruns com jovens, com pessoas que estão sendo chamadas a uma vida santa, amigos da espiritualidade franciscana sem que sejam imediatamente “engessados”  em estruturas  pesadas e cheias de regulamentações que asfixiam.  Descobrir outros espaços de encontro  fecundo, suculento  com “pessoas do povo”.

5. Missão evangelizadora com caráter inter gentes, de itinerância, de presença em regiões desconhecidas, difíceis, de risco e de proximidade com os mais pobres, sofredores, excluídos, com uma atenção especial aos  lugares de fronteira e com novas formas de evangelização e fraternidades inseridas  (saindo do claustro conventual rumo ao claustro do mundo).

Comentário

Estamos diante de formas novas de vida franciscana  testadas aqui e  ali. São marcadas  fortemente pela itinerância. Quais são os lugares de fronteira?  Educação, cultura da sobriedade, encantamento diferente da frase de Francisco dizendo o Amor precisa ser amado? Criar espaços pequenos  de atenção ao humano?  Escutar, simplesmente escutar vozes roucas?

Pensamentos provocativos sobre coisas da vida e da fé

Diante de meus olhos um livro caindo aos pedaços, se desmilinguindo.    Trata-se “Provocação. A fraqueza de Deus”, de Jean Sulivan,  autor cristão francês, enfant terrible dos anos cinquenta- sessenta, responsável por  uma enxurrada de livros de literatura e de análise das coisas práticas  a respeito de gente de todos os dias e da vida da Igreja. Ele provoca. Provoca de verdade.  Talvez algumas de suas “espetadelas”  nos ajudem a viver. Quem sabe!   O livro que está em frente à tela de  meu computador  foi publicado pela  Editora Herder de São Paulo, no ano de 1996  ( o original francês datando de 1959!). Trata-se remexer bem lá no fundo do baú…

“As condecorações escondem ranhuras”

Precisamos lutar contra os objetos. Perdemo-nos neles. Rádio, imprensa, televisão, cinema, cidades, paisagens acumuladas: um homem não é feito para tantos objetos. Se não, ei-lo desmantelado, despedaçado, perdido em suas possessões. Quando fala, acumula  montes de palavras como montes de pedregulhos.

Os objetos, tanto quanto as fórmulas desertadas pelo espírito, são sinais de morte. Afundar uma boa cabeça na multidão ou nos objetos é uma forma de suicídio  silencioso.

O homem que procura altas funções, é a morte que o impele.  Sente-se inexistente e pobre se não lê o respeito, ou a adulação nos olhares.  Edificada sua estátua, ele se torna de mármore e feliz.

Esse o motivo de ser tão espalhada a ambição.  Pois, se uma pessoa não ama e não é amada, como se sentir necessária?  A política é uma boa solução para perder sua alma. Sabe-se que o homem público se assemelha por mais de um traço à mulher pública, que é também objeto.

Numa certa idade, um homem político não reeleito chega a morrer por causa disso. É comovente.  Ele estava morto, já antes.

O homem importante só cuida de mirar-se nos espelhos. Acaba partilhando o respeito fingido que lê nos olhares. Torna-se bom, virtuoso, defensor da lei que o protege, amigo da Providência que garante, pensa ele, a situação adquirida. Infeliz de vós se levantardes a máscara.  Ímpio, temei a cólera de Deus…

Assim, a função ajuda a viver, resolve os problemas familiares, apazigua a angústia do coração.

As condecorações! Não posso ver um homem recoberto delas sem pensar na morte. Tornados homens, não as usamos. É preciso reserva-las para os sarcófagos.

Fábula. Um príncipe tinha um diamante infinitamente precioso, mas com uma estria. E nenhum joalheiro conseguia apagar esse defeito.  Um deles, no entanto, teve uma ideia: gravou uma flor sobre a pedra preciosa e estria tornou-se a haste. As condecorações escondem ranhuras. (p. 53-54)

“Só o profeta pode conduzir a Deus”

A causa principal da perda da fé?

O ensino do catecismo. Acontece que o adolescente ou o adulto rejeita as fórmulas endurecidas, as imagens pueris, nas quais não se reconhece, e julga rejeitar a Deus.

As fórmulas são o que são. Que importa que se trate de catecismo diocesano ou do último catecismo, chamado progressivo! Trata-se de saber em que espírito essas fórmulas e imagens lhe foram comunicadas.

Que é que o adulto ou o adolescente rejeitam?  Uma mentira. O que para ele é uma mentira. A mentira de uma verdade organizada, esterilizada, materializada, fornecida em função do útil.

Toda verdade impessoal, nesta ordem, não transmitida em um contato de almas, e que vise fabricar o homem em um molde é uma mentira, uma verdade de pedra que um organismo são rejeita  como um corpo estranho.

– Voltarão a elas, depois de atravessado o mundo das paixões.

Por certo, uma vez ajuizados, ricos, instalados em um meio católico. Vejo também alguns que caem em Deus como em um vício. Ou outros, que esgotados todos os recursos, retornam à “linda fé de sua infância”.

A religião ensinada por funcionários conduz os fracos à escravidão, os fortes à revolta. Nessa perspectiva, não há afinal professor senão de ateísmo.

Os vocábulos têm o poder de ser portadores do espírito quando suscitados por uma palavra, mas podem também abafar. A religião não é coisa para professor. Só o profeta pode conduzir a Deus. (p. 48-49).

“Conciliar…”

A conciliação é obra do homem.

O homem do medo cerca-se de bens, reservas, capitais protetores, costumes, protocolos. Seu deus é a ordem. Gosta de fórmulas que dispensam a invenção, ou de preconceitos para não pensar. Ergue o castelo de cuja fachada cuida bem, e diz “meu” castelo, “meu” dinheiro, “minha” mulher, “minha” religião, “meu” horizonte. Dá esmola e guarda o castelo e só sabe conjugar o verbo ter.

Outro só conhece o verbo ser e tende a se definir como Deus.  Confunde em um mesmo horror o passado, as tradições, heranças e convenções. Quer nascer em todos os momentos.

Para um a Igreja é instalação, administração, encarregada de pensar por ele, de salva-lo contanto que ele esteja em ordem.

O outro deseja, sim, uma Igreja, mas espiritual, inventiva;  recusa o peso carnal.

O maniqueísmo é tentação permanente. Há, porém, duas maneiras de   escolher: tomar e excluir.  Ou então, tomar sem excluir. Conciliar. (p. 141)

Que Igreja para os jovens?

Refletir sobre o tema dos jovens é sempre fascinante. Certamente tarefa desafiadora. Trata-se de empreendimento que exige discernimento. O Sínodo dos Bispos, convocado pelo Papa Francisco para refletir sobre o tema, fez o seu caminho. Qual é a verdadeira identidade dos jovens que constituem a riqueza da vida? Por onde devem caminhar reflexões e conclusões. Começamos evocando palavras do Papa Francisco durante o Te Deum de 2016: “Criamos uma cultura que, de uma parte, idolatra a juventude, procurando fazer com que ela se eternize e, no entanto, paradoxalmente, condenamos nossos jovens a não terem espaço de real inserção porque gradativamente os fomos marginalizando da vida pública e  os obrigando a mendigar ocupações que não existem ou que não permitem que eles venham a se projetar em vista de um amanhã. Privilegiamos a “especulação” em vez de trabalhos dignos e verdadeiros que lhes permitissem serem protagonistas ativos na vida de nossa sociedade. Alimentamos esperanças  a seu respeito, exigimos que sejam fermento do futuro, ao mesmo tempo os discriminamos e os condenamos a bater em portas que lhes permanecem fechadas”.

>> Os jovens são a riqueza da vida. A juventude seria  constituída, de maneira mais ampla, por pessoas entre 15 e 34 anos. Que significa ser jovem? Segundo uma certa etimologia digna de confiança a palavra jovem vem do latim  iuvare.  Jovens seriam aqueles que ajudam, os que sustentam, que auxiliam a sociedade. Nesse período da vida, as pessoas possuem o melhor da força física, da energia reprodutiva, da força intelectiva e espiritual. Um  jovem e uma jovem são, pois, extraordinário peso de energia uma verdadeira  “célula estaminal”, capaz de ajudar a sociedade.

>> Não somente isto. Se interrogarmos a língua de Homero sabemos que jovem é indicado por neos que significa literalmente novo, inédito, genuíno.  Jovem aponta não somente para força, mas também para o senso do novo, do frescor, do inédito.  O que seus olhos divisam nenhum outro olho viu antes.  O jovem se explica bem pela imagem do anão que  está de pé sobre o ombro do gigante. Devido à sua posição estratégica enxerga mais longe do que o próprio gigante.  Essa diversidade de visão é novidade, dilata o horizonte da coletividade. A genuinidade  do olhar aponta para genialidade.

>> Em síntese, pode-se dizer que jovem indica a força de uma novidade e a novidade de uma força, uma condição psicofísica e espiritual que se realiza para cada ser humano  somente entre os vinte e trinta anos.  O salmo 126  compara os jovens  às flechas que um guerreiro tem no alforje: “Os filhos são a herança do Senhor, o fruto do ventre é recompensa. Como flechas nas mãos do guerreiro, assim os filhos da mocidade. Feliz o homem que deles encheu sua aljava!  Não serão envergonhados quando discutirem com os inimigos à porta”.

>> Voltemos agora para as anteriores reflexões do Papa Francisco. Nossa sociedade é fortemente atraída pelo ser jovem, pela cultura do “juvenil”. Os adultos não querem envelhecer.  Alimentam uma cultura da imortalidade individualista e míope e literalmente condenaram os jovens – precisamente a riqueza da vida – a permanecerem sempre sentados contentando-se com as migalhas que caem da mesa dos poderosos e procurar bem longe de seu lugar de origem alguma  coisa que se revista de dignidade.

>> O indício mais forte nesse sentido é  a presença da geração net. Grande parte da juventude não busca formação ou não é dada formação adequada. Desta forma, os jovens não podem fazer jus ao nome que ostentam: força, novidade, poder criativo, de verdadeiro “acréscimo” de algo, de uma genuinidade, de uma genialidade. Tornam-se células de promessa de amanhã que ficam no congelador.

>> Fala-se da juventude como uma questão problemática, os jovens seriam “um problema”. É o que se diz. Na verdade, eles constituem riqueza e não um problema.  São um “reserva” e não uma questão social. Tudo parece indicar que a razão desta situação paradoxal se deva ao fato de que os adultos são incapazes de  reconhecer que a riqueza do jovem seja um bem insubstituível, qualquer coisa de especial, algo “único”. Os adultos, cegos pela cultura da eterna juventude, não conseguem ver o que está diante de seus olhos: a riqueza da verdadeira juventude. O drama da juventude de hoje é ser uma riqueza imensa de energia, de ideias, de abertura para o amanhã, de entusiasmo e continuamente ouvir dizer que são os protagonistas de um futuro que ninguém sabe quando vai começar.  Eles não são riqueza do futuro, mas do hoje, deste momento histórico. Os adultos precisam colocar na cabeça: nenhuma experiência acumulada pode ser imposta à força da vida e da renovação da qual temos urgentíssima necessidade.

>>Umberto Galimberti lançara um grito de alarme há dez anos. Havia afirmado que o crescente  niilismo que estava tomando conta da alma dos jovens se devia ao fato de que a sociedade vivia falando da inutilidade do mundo dos jovens. A insignificância sentida pelos jovens os leva a viver à noite e a drogar-se. São considerados como inexistentes, como um problema.

>> Em Cracóvia, na abertura da última Jornada Mundial da Juventude, o Papa Francisco pergunta várias vezes: “As coisas podem mudar?’ Vocês, jovens, respondestes com um fragoroso ‘sim’. Aquele grito nascia do coração de vocês que não suporta mais a injustiça e não quer cultuar a cultura do descartável, nem ceder à globalização da indiferença. Escutem esse grito que sai do mais íntimo de vocês. Mesmo quando vocês lembram a inexperiência de vocês como dizia o profeta Jeremias, devido à sua pouca idade. Deus dá coragem para que vocês caminhem na direção que ele indica. Nada de medo (…). Um mundo melhor haverá de ser construído com vocês, com o desejo que vocês têm de mudar e com sua generosidade (…). Que a Igreja possa colocar-se à escuta da voz de vocês, de sua sensibilidade, de sua fé e até mesmo de suas dúvidas e críticas. Que vocês façam com que seu grito seja ouvido; que ele ressoe na comunidade e seja ouvido pelos pastores!”.

Nota: Estas linhas tiveram com base e referência: Armando Matteo, Giovani, la ricchezza della vita Consecrazione e Servizio  2/2017, p. 39-43

Nossa Senhora da Paz de Ipanema

Aos poucos, a cidade do Rio de Janeiro foi aumentando as linhas e estações de seu sistema metroviário. Há um bom tempo tinha eu conhecimento de que se podia ir à  Praça Nossa Senhora da Paz de metrô.    Não se me apresentava uma ocasião. Num dia de sol, estando hospedado no Convento de Santo Antônio, tomei o metrô no Largo da Carioca e resolvi  rever Ipanema,  de modo especial a Igreja da Paz e o lugar onde, no passado, existiu o que chamamos de Casa Nossa Senhora da Paz e onde muitos frades desta Província viveram. Não tenho a mínima intenção de   fazer história. Simplesmente transcrevo algumas das impressões de uma visita que fiz numa manhã de sol em 2 de outubro de 2018.

As novas estações do metrô são bonitas, amplas. Arquitetos e decoradores tiveram até mesmo preocupações artísticas. Quando cheguei à estação Nossa Senhora da Paz  procurei a saída, caminhando em amplos, claros e limpos corredores. Parei para observar paredes revestidas de  azulejos com paisagens do bairro antigo, sobretudo da igreja da Paz,  azulejos com a imagem da Senhora da Paz que teria vindo da França…  Toda a imensa parede muito bem feita. Ao sair do “buraco” do metrô fui levando comigo as mensagens dos painéis: Maria, a paz, Ipanema, a república independente de Ipanema. Deixei que a escada rolante me levasse à superfície e de repente estava diante da fachada da Matriz da Paz. Entrei, saudei o santíssimo, sentei-me  e olhei..… tudo bem cuidado, limpo, um vigia à porta, e lá no centro a imagem da Senhora da Paz.  Maria , o Menino da paz, o ramo de oliveira. Paz na violenta cidade do Rio de Janeiro.

Um dia tudo aquilo era espaço da presença dos franciscanos.  Vi o luxo dos prédios, as calçadas bem cuidadas, as lojas de grife, as pessoas bonitas circulando. Bermudas, vestes sumárias, óculos escuros, homens engravatados, executivos. Abstraindo de tudo isso voltei meu pensamentos para os anos sessenta.  Lá estava o prédio da Casa da Paz, um prédio cinzento com 7 andares, se não me engano.  A igreja e o prédio.  Vi novamente o Cine Pax. Lá em cima, no alto, a residência dos frades à qual se acessava por meio de um pequeno elevador só dos frades. Os quartos, a sala de estar, a capela interna, o refeitório… e mesmo um cobertura  onde Frei Erasmo gostava de plantar alface e outras  hortaliças.  Tudo isso não existe mais… não existe mais a patinação no gelo, nem os andares de casa de retiro e de atendimento aos carentes.   Saindo da boca do metrô vi os novos prédios e as novidades imobiliárias que já conhecia mas aquela casa cinzenta não saía de mim. Havia uma escola modesta, mas franciscana. Conheci pessoas que foram marcadas pelo ambiente daquela escola. Pessoas que se lembravam dos frades com carinho. Calil me falava sempre de Frei  Apolônio, diretor da escola…  Lourdes  Barros estimava demais Frei Osmar  Dirks.

Espero que as crônicas e os cronistas  tenham enaltecido a presença dos frades nessa região. Nos tempos de nossa instalação nada existia, de grandioso. Era um fim de linha. Lá estivemos e de lá saímos.  Os padres diocesanos assumiram tudo. Souberam se organizar bem e se implantaram no bairro.

Os “ipanemenses”  que conheceram os frades que estiveram ali até maio de 1992 aos poucos vão desaparecendo.  Os que frequentaram as sessões do Cine Paz, as senhoras da Corte de Nossa Senhora a Paz, os irmãos da Ordem Terceira foram desaparecendo, os jovens e menos jovens que lotavam o templo para as missas de Frei Clemente  Kesselmeier já morreram ou então  são septuagenários ou octogenários.

Os painéis do metrô nada falam dos franciscanos.  Talvez seja bom que assim seja. Servos inúteis. Mas foi pena.  Não julgamos ninguém.  As circunstâncias que nos levaram a sair de Ipanema eram delicadas e envolviam situações irregulares e incômodas que não podiam ser resolvidas.  Saímos.  Mas foi pena.  Foi pena que o espírito de  Francisco de Assis não pudesse  continuar a  ser lembrado e cultivado naquelas plagas. Pena que a cortesia de São Francisco não pudesse continuar caminhando com a graça e o balanço da Garota de Ipanema de Tom Jobim.

Procurei falar com uma pessoa responsável pela parte administrativa da paróquia, uma leiga. Ela me levou até o 6º andar do predinho novo onde nós, frades, passamos a viver e as dependências paroquiais.  Fui ao refeitório. Não entrei nos quartos.  Nos últimos tempos  que lá vivi tive como colega  Frei Otávio  Schneider,  aquele homem sem  prosa, simples, pobre que visitava o Hospital de Ipanema e que vivia mais no céu do que na terra.

Depois da visita à igreja e ao sexto andar quis ainda ver o mar. O sol estava quente, não demais. Percorri a Joana Angélica,  troquei meia dúzia de palavras com o português dono da antiga  padaria. Esqueci seu nome. hoje com quase oitenta anos. Passei pela entrada da Universidade Cândido Mendes erguida também no terreno da Paz. Sentei-me num banco da praia. Deixei que o sol me penetrasse. Procurei deixar as imagens do passado descansando dentro de mim. Espiei na direção da  rua Vinicius de Morais na esperança de que pudesse ver, sei lá, a garota de Ipanema.  Foi em vão.  Voltei para a Praça do Paz e  não tive condições de sufocar tantas e tantas outras lembranças.  Quase ia me esquecendo de dizer que foi no Teatro Candido Mendes, na pequena e aconchegante sala de teatro, que vi o  monólogo de Beatriz Segall sobre a poetisa norte-americana Emily Dickson.  Beatriz morreu faz pouco tempo… mas minhas lembranças também fui deixando nas brumas do passado.